sábado, 14 de março de 2009

Seiva, de Eduardo Barreto (no Rio)


Conheço Eduardo Barreto há muito tempo, desde o ciclo de exposições "2a. sim 2a. não", que teve curadoria do artista Gastão Manoel Henrique, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 1981, quando o Diretor era o artista, colecionador e, depois, marchand, Rubem Breitman . Fomos - Barreto, eu, João Magalhães, Rubem Grilo, Luísa Interlenghi, Enéas Valle... alguns dos expositores do ciclo que movimentou o Parque Lage entre a gestão do Gerchman e a Geração 80, mas isto é assunto para outra postagem...
Enfim, acompanho o trabalho do Eduardo Barreto desde esta época, um trabalho que vem desde os anos 1970 e que tem, até hoje, muito o espírito daqueles anos de rebeldia e contestação. Fizemos alguns trabalhos juntos, bebemos juntos e discutimos sobre arte, mercado, realizamos alguns projetos e fizemos muitos projetos irrealizados... tanta coisa... Tenho até hoje o projeto (completo, com perspectivas, plantas baixas, cotas, detalhamento de fachadas) feito pelo artista para o Museu dos Ventos, uma casa/galeria/museu/atelier que iríamos construir em um terreno de cara para o oceano Atlântico e o por do sol (não tínhamos o terreno nem o dinheiro para a construção, claro...) no Pontal do Atalaia, em Arraial do Cabo. E em todo este tempo, Eduardo segue, construindo sua obra, coerente, sem concessões, inovador, erótico, profundo, visceral, transcendente.
Seu trabalho foi visto em alguns espaços no Rio, como a Galeria Sergio Milliet (Funarte), o Centro Cultural Candido Mendes (nos bons tempos), e durante um tempo o atelier/loft/moradia do artista, um prédio encravado na ruazinha ao lado do Consulado dos USA no Rio (em plena paranóia de segurança pós 11 de setembro) foi palco de ocupações por ele e diversos outros artistas.
Assim, para mim é uma alegria e um prazer estético ver esta exposição, mais uma oportunidade de vermos um trabalho que se desenvolveu ao longo do mainstream do mercado, pela coerência do artista. No pequeno e simpático espaço da galeria, Eduardo Barreto conseguiu fazer como que uma retrospectiva de seu trabalho, selecionando obras emblemáticas em sua trajetória, sem perda da coerência e sem overdose de informação, o que é um acerto.

O ponto alto para mim são as Caixas Seminais, objetos, construções que tangenciam os Bichos da Lygia Clark, e são como modelos das topologias impossíveis do Escher; que brincam com o bi e o tridimensional: são esculturas, são quadros? e que mostram de uma forma construtiva a dualidade macho-fêmea que nos outros trabalhos é emocional, sensual, expressionista...
Outras caixas já são montagens de objetos em pequenas caixas de madeira; como as caixas surrealistas, imagina-se a caixa neutra fechada que, aberta, deixa saltar elementos, objetos, em uma mistura contraditória, política, erótica, absurda.

A artista Virgínia Paiva, logo na abertura da exposição, ficou fascinada por uma caixa que mostra o Papa Bento XVI ao lado (muito parecidos) do Homem de Neandertal.
Entre os outros trabalhos apresentados estão as séries de fotografias "Seiva" e "Labirinto da Sombra", e o vídeo "Pedra Animal".
E, para mim o que é bom sempre rever: três ampliações de fotografias que eu fiz, no alto da Pedra da Gávea, de uma incrível performance do artista, durante a filmagem de um vídeo fantástico, com a videomaker Renata C. Subimos a Pedra da Gávea, julho de 1978; era um sábado, dia de um dos jogos finais da Copa, a cidade estava silenciosa, mas do alto ouvíamos o rumor da cidade em alguma jogada que não sabíamos qual seria. Renata filmava, eu ajudei na produção e fiz a "fotografia de still"; e Eduardo Barreto fazia uma performance iconoclasta, visceral, violenta, libidinosa.
De um mapa da América Latina, o artista rasga os outros países, descarta-os até ficar com o mapa do Brasil; que corta em pedaços, e os come, mastiga, engole; regurgita; e, nu, defeca moedas. O artista, nu, amarra um crucifixo em seu penis; jornais com notícias de viloência se mesclam com fileiras de um pó branco como cocaína; cabeças cortadas e cabeças de ex-votos; toda uma mitologia do artista é espalhada no alto da Pedra da Gávea e se traduz em ações, em gestos, em uma performance onde Eduardo Barreto decifra os seus enigmas, propondo novos enigmas ao espectador.
Durante a filmagem, eu, espírito prático, sempre preocupado que o artista e a videomaker não caiam no abismo de onde sempre se acercam; é tudo um risco, e o abismo está lá, na beira, na borda, onde transita o trabalho de Eduardo Barreto.
Outras imagens do vídeo foram feitas no atelier no artista (à época um belo lugar em Santa Teresa que foi envolvido pelo crescer do tráfico até o ponto em que Barreto teve que se mudar e vender a casa para o traficante): nu, ele faz uma tanga (como um selvagem) de bifes de carne; assim coberto em sua nudez, começa a se vestir com um terno, sobre as carnes: terno, camisa social, gravata; e no sorriso final ele é um modelo, é um executivo, é um ser social por sobre as carnes sangrentas, por sobre o instinto selvagem, por sobre a loucura e o desejo...
A exposição é dedicada ao filósofo Gerd Bornhein, com quem o artista tanto dialogou e tanto argumentou... Segundo o artista, "com o desdobramento do projeto das caixas, como proposta progressiva, existe uma didática quase mecanica em que podem se engendar num jogo de relações - essencialmente inextrincável, dentro da temática da SEIVA - os elos entre o desejo, a FÔRMA e a forma, como 'três' espaços psiquicos com suas linguagens/produções próprias - como a seiva/libido vai se amalgamando e sendo modelada, mas compondo uma gênese - evolução/trama das sublimações - dentro das etapas de uma mesma exposição e tendo como desfecho uma configuração saia justa e politicamente correta, mas sublime e sacra"

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