terça-feira, 24 de novembro de 2009

Luiz Aquila, em Brasília


Hoje, abertura da exposição Luiz Aquila e suas aventuras na arte, na Caixa Cultural de Brasília.
Dias antes da exposição, um susto, manchete de todos os jornais: as obras da exposição, já embaladas e a caminho de Brasília, foram roubadas, com o restante da carga do caminhão que as transportava; dois dias depois, a partir de uma denúncia anônima, foram recuperadas em uma casa na favela de Vila Pinheiros, no Rio de Janeiro.
Passado o susto, estão todas lá: coloridas, musicais, transbordantes de harmonia e movimento. Uma boa expoisção. Já é um lugar-comum chamar o artista de um dos pais da Geração 80, mas é uma verdade: os ensinamentos e a vivência com Luiz Aquila e com os demais professores do Parque Lage foram essenciais para que aqueles jovens no início dos anos 1980 redescobrissem a pintura, o prazer de pintar, o profissionalismo e a seriedade do ofício.
Na exposição, telas de 1987, 1999, convivem com telas recentes (2008, 2009), a linguagem é coesa, o estilo inconfundível, a qualidade homogênea. Em uma tela de 2009, A Pintura Retomada, uma surpreendente figuração em meio às manchas abstratas: quatro pássaros em traços vermelhos, voando, em diálogo com os campos de cor, com lilases e verdes que se misturam em massa de tinta, com grades e traços em sugestões de massas e de movimento. Em uma tela de 1999, Pintura Retangulada, os tons vivos e alegres cedem espaço a tonalidades baixas, escuras, de verdes, ocres e marrons; mas nem por isso tristes; sóbrios, sim, mas não tristes, para baixo.
Pinturas sobre papéis, sobre jornais, sobre serigrafias. Uma tela horizontalmente monumental, Canteiro de Obra, de 2002, com 1,57 x 17,96m, se estende, em seus fundo de azuis, como um horizonte em pulsação, como uma passarela para o céu, como um infinito melódico.
A Pintura e o Vermelho de Três Pontas, de 1992, com 2,40 x 2,60m, tem forte impacto pelo contraste entre os azuis e os vermelhos do triângulo; como uma vela sobre o céu com nuvens, o vermelho flutua; para se transformar talvez em um coração, e voltar a ser o que é: pintura, simplesmente pintura, da melhor qualidade!

domingo, 22 de novembro de 2009

No Rio (exposições)

Final de semana no Rio, ampliado pelo feriado do Dia da Consciência Negra em uma 6a.feira, eu sabia que tinha "algumas" exposições para ver; para minha surpresa, estas "algumas" foram tantas, que deixei várias para visitar apenas na próxima ida ao Rio (sem contar as que estão abrindo nesta semana corrente).
Isso com um sol e um calor que convidavam a mergulhos na praia ou na piscina, com uma arrumação nos vinhos há muito tempo na adega, com rever amigos e muitas tarefas do quotidiano.
As exposições que visitei:


1- Na Galeria Artur FidalgoRetratos, de Marcos Chaves. O artista trabalha buscando novos sentidos para cenas do quotidiano, com um humor sutil e inteligente. Nestas fotos, Marcos brinca com uma característica da percepção humana, que busca sentido em formas abstratas, que vê rostos onde há manchas. Um esfregão, destes comuns de chão, virado com o cabo para baixo, encostado em uma parede; a foto é vertical, nas dimensões que a pintura clássica estabeleceu como portrait; a moldura sóbria e a disposição das diversas fotos como uma galeria de retratos clássica; e pronto: o espectador  cabelos no que são os pelos do esfregão,  nariz e boca em detalhes do centro do esfregão, onde se encaixa o cabo; e vê olhos nas formas simétricas à linha central. Um rosto, outro rosto, vários rostos; e a contraposição de tantos rostos diferentes faz com que cada um deles imediatamente adquira personalidade própria. Incrível, a "contaminação" do espectador a partir do momento em que vê o primeiro rosto é intensa; até uma das fotos onde a simetria é destruída com os pelos do esfregão cobrindo uma das metades da "face", é vista como um retrato (algo como uma Veronica Lake com o cabelo em ondas cobrindo todo um lado do rosto). E a "contaminação" máxima é a foto onde só se vê o cabo e os pelos do objeto: entendida imediatamente pelo espectador como a cabeça de uma pessoa de costas, não se consegue mais vê-lo simplesmente como um esfregão encostado em uma parede. Witty, sim, mas profundo, ao questionar os limites da percepção de forma simples e criativa.


2- Na Galeria AmarelonegroHome... sweet home... sweet home... sweet home, exposição de Rogério Degaki. São 7 esculturas do artista paulista, em resina, agrupadas como uma instalação, um lar, com direito a "tijolinhos aparentes" brilhantes, em uma parede; segundo o artista, como disse Dorothy de “O Mágico de Oz”: “Não há lugar melhor do que a nossa casa!” E os personagens-esculturas, coloridos, estranhos e simpáticos, incrivelmente simpáticos, estão espalhados neste espaço que não é mais o Cubo Branco da galeria e sim um lar. Penso no "quero voltar para casa", do ET do Spilberg, e penso em como eu queria ter algum deles comigo em meu lar intergalático...



3- Na Caixa Cultural, gravuras de Wifredo Lam. Uma exposição importante, raramente vemos trabalhos do artista cubano, que faleceu em 1982: . A pintura certamente é o forte de seu trabalho (vi talvez duas pinturas grandes na exposição de artistas cubanos do CCBB, e alguma coisa no acervo do MoMA), mas a obra gráfica absolutamente não fica atrás. São monstros, seres alados, dentes e garras, um clima weird todo especial; gravuras formalmente bem resolvidas, com utilização perfeita dos espaços negativos e do contraste de tratamento de diversas técnicas.



4- Esculturas de Artur Pereira, no Instituto Moreira Salles. Ao entrar na Nova Galeria do IMS, um impacto: as esculturas de madeira espalhadas, acumuladas, no Cubo Branco, como uma arca de um louco Noé. Artur Pereira é um chamado "artista popular", autodidata, de origem humilde, e com temática ligada a sua região e camada social: animais, caçadores, um presépio cercado por uma cornucópia de animais de Mata Atlântica, um homem que agoniza tendo como espectadores seus animais domésticos, seu rebanho... Mas as soluções estéticas são perfeitas, precisas; com poucos traços marcados no cedro, seu Artur define uma fisionomia de um animal com uma personalidade própria - uma jibóia irônica, um cachorro amigável, outros cachorros ferozes que perseguem onças, o medo estampado no rosto das onças perseguidas... Não "arte popular" e sim Arte.



5- Na Galeria Arte em Dobro, “A Coleção 2”, dá continuidade à proposta de venda de "pacote" com múltiplos de artistas contemporâneos em ascensão, por preços bem acessíveis. Se a primeira edição, A Coleção 1, lançada no início de 2009 (comentei aqui no blog), teve uma boa acolhida, esta segunda edição, com múltiplos de Marcelo Solá, Graziela Pinto, Felipe Barbosa, Daniel Toledo e Julio Callado, foi um sucesso estrondoso: ao chegar na Galeria a exposição já estava sendo desmontada, pois em menos de uma semana toda a edição já havia sido vendida. Sendo que os múltiplos do Marcelo Solá, por problema no transporte, nem haviam chegado ao Rio (serão entregues depois aos compradores). Como na edição anterior, boa escolha de artistas e trabalhos interessantes; o globo terrestre murcho em uma caixa de acrílico, do Daniel Toledo, é um achado! E um exemplo de como há um mercado de arte ansioso por novidades de qualidade a um bom preço.


6- O Mundo Mágico de Chagall, no MNBA, é apresentada como a maior exposição do artista no Brasil, comemorando o Ano França-Brasil, porém na realidade não é uma mega-exposição. As 309 obras apresentadas, em sua grande maioria, são gravuras, de séries como A BíbliaAs Almas MortasDafne e CloéFábulas de La Fointaine... bonitas, mas em geral em preto e branco ou com pouca cor (para mim o colorido é o ponto forte de Chagall), e forte conotação ilustrativa. Nas pinturas, onde o esplendor da arte de Chagall se mostra todo, vemos coisas boas, porém não são muitas - e a maioria de coleções particulares brasileiras. Vale à pena ver, sim, uma boa exposição mas, da mesma forma que a exposição do Matisse apresentada na Pinacoteca de São Paulo, sem acreditar muito na grandiosidade indicada pela midia.

7 - No Instituto Moreira Salles, exposição Maureen Bisilliat: fotografias, com mais de 250 imagens da fotógrafa inglesa radicada no Brasil, trazendo fotos das séries mais conhecidas da artista, como as que retratam o universo de Guimarães Rosa, os índios do Xingu, os sertões de Euclides e as viagens ao altiplano boliviano, à China e ao Japão. Complementam a exposição objetos e documentos pessoais da fotógrafa, como o sensível caderno feito durante os meses da doença do pai de Maureen: a cada dia, a artista buscava um livro na estante, abria o livro e fazia uma xerox do trecho ao qual chegara aleatoriamente; e todos os textos e o caderno como um todo traziam uma relação com o momento de agonia que viviam pai e filha.


8- Na Galeria Márcia Barroso do Amaral, novas gravuras de Tomie Othake. Muito bonitas, impecáveis, e é bom ver o trabalho coerente da artista nos seus 96 anos.

9 - Exposição coletiva no Crânio, simpático espaço de artes e cultura na Rua Pacheco Leão, no Jardim Botânico, são pinturas, fotografias e objetos dos artistas Bianca MadrugaCláudio MontagnaLetícia TandetaMárcia de AlmeidaRicardo FerreiraUrsula Tautz e Vlad da Hora.


10 - Multiplo Coletivo, na Galeria Inox, uma coletiva dos artistas Afonso TostesAlê SoutoAlexandre OrionCarlos ContenteJosé TannuriMarcelo LagoMarcos CardosoMaurício BentesSmael  Toyota. São múltiplos, bem interessantes, e o acervo da Galeria, que abriu recentemente, também apresenta coisas muitos boas, em destaque a linda gravura da Beatriz Milhazes feita para o número especial da Parkett Magazine, que já comentei aqui no blog.


11 - Minha visita ao Paço Imperial, logo após a abertura das exposições, foi prejudicada pela greve dos servidores da cultura. Assim, desta vez, pude retornar ao Paço e ver: Ícones do Design Francês (bonita exposição, além dos ícones do design francês, alguns ícones do design brasileiro, um contraponto entre a Caneta Bic e a Sandálias Havaianas, less is more), Julio Villani (o artista trabalha com reprodução, em tamanho grande, de fotografias antigas, interferindo nas mesmas com formas geométricas em cores fortes, em tinta a óleo, bem espessa, o óleo da tinta se espalha como sombras pelo papel e as formas criam novas realidades para as fotografias; e também as formas geométricas a óleo sobre manuscritos antigos; além de um vídeo em díptico, com papagaios que brincam com objetos como uma reprodução da Monalisa; gosto do trabalho do artista) e as fotografias de Alair Gomes, A New Sentimental Journey, com fotos de estátuas greco-romanas e a renascentistas com o mesmo olhar lançado pelo fotógrafo sobre os meninos do Rio.
Transcrevo aqui o comentário que já fiz no blog sobre o trabalho do artista: Alair é um fotógrafo, morto de forma violenta no auge de sua produção, cuja obra - séries de fotos de rapazes se exercitando na praia - sempre é revisitada com muito prazer. Desta vez são fotos e texto, de uma viagem a Europa, onde as esculturas clássicas de homens ganham o mesmo tratamento terno e apaixonado dado às imagens dos rapazes. Miguel Rio Branco editou as centenas de fotos em sequencias, dentro da linguagem de Alair. Um livro, A New Sentimental Journey, registra e acompanha a exposição. Uma dúvida que tenho, Alair desenvolveu seu trabalho de uma foram discreta, só expôs em 1984 (Galeria do Centro Cultural Candido Mendes), com retorno altamente favorável. Se fosse hoje, onde o politicamente correto comanda, ele não seria acusado de pedofilia, voyerismo,  apropriação da imagem das pessoas fotografadas à revelia? Talvez nossos dias e o futuro acabem com a possibilidade de trabalhos que, através da transgressão, chegam ao sublime.


12- Na Casa França-Brasil, uma grandiosa instalação da artista Iole de Freitas, cujo trabalho vimos recentemente também na Galeria Laura Marsiaj. Se no espaço da Galeria a artista usa o peso, uma instalação que como que "voa baixo", ocupando todo o cubo branco, no espaço generoso da Casa França-Brasil a artista prefere voar alto, sutil, silenciosa, não interferindo e sim realçando a arquitetura e os detalhes de ornamentação do prédio. 

13- Galeria Paulo Figueiredo, com gravuras em madeira do artista Fernando Mendonça. São pequenas matrizes e xilogravuras, em traços rústicos, de cenas de quotidiano.

14- Galeria Movimento, No Risco do Traço de
Mateu Velasco, são pinturas ancoradas no grafite e no design, figuras humanas com cabelos que se transformam em tentáculos, forte lembrança de uma estética art-nouveau atualizada para o contemporâneo.


15- Margaret Mee, 100 anos de vida e obra, no Centro Cultural dos Correios, é a mesma exposição que vi na Pinacoteca de SP e que comentei, talvez de forma um tanto crítica, aqui no blog (veja o comentário).

16-
Bandeira de Mello, Eu existo assim, na Caixa Cultural. O artista, nascido em 1929 e com uma atuação voltada para a arte acadêmica, para o ensino e para obras em lugares públicos (os murais no próprio espaço da Caixa Cultural complementam a exposição) está sendo redescoberto nesta exposição.

17 -
J Bosco Renaud, na Galeria de Arte Maria de Lourdes Mendes de Almeida (Centro Cultural Cândido Mendes), objetos, desenhos e técnica mista, sob o tema de plungers (desentupidores de pia): no espaço, na Lua, invadindo paisagens, ampliados...



18-
Pierre et Gilles, A Apoteose do Sublime, no OI Futuro, curadoria de Marcos Lontra, design do Alvaro Seixas. A dupla de artistas franceses monta os cenários, fotografa, pinta sobre as fotos, seleciona molduras que acentuam o caráter kitsch-fantástico-hype dos retratos, de modelos desconhecidos (e belos) ou de famosos (Madonna...). Como escreve o curador, "O trabalho de Pierre et Gilles, cheio de vitalidade, é próximo do espírito brasileiro, especialmente da cidade do Rio de Janeiro, tendo em vista sua exuberância, intensidade cromática, sensualidade e mistura tipicamente Kitsch, nos fazendo remeter às alegorias e fantasias dos desfiles de escolas de samba brasileiras (…) o mundo contemporâneo está saturado de imagens, elas estão em toda a parte. Um dos papéis mais importantes da ação artística é selecionar dentre essas imagens, proporcionando-lhes novas direções e conceitos. Todas as imagens são, portanto, passíveis de manipulação artística, e é isso o que fazem, de forma singular, Pierre e Gilles." Vale à pena ver.




19 e 20 - E ainda duas exposições de Leilões: Bolsa de Arte e Soraya Cals, com ótimos catálogos (o da Soraya Cals, um livro muito bem editado, com texto do Frederico Morais, não é vendido, e o da Bolsa de Arte, mantem o bom padrão e é vendido por R$25,00 com renda revertida para obras beneficientes). Vale a pena circular por estas exposições de Leilões; normalmente são muito heterogêneas, mas sempre se encontra surpresas; e os catálogos são boa fonte de consulta, inclusive pelas estimativas de preço que trazem. Na Soraya Cals, uma surpresa para mim: 4 aquarelas de um artista dos anos 1970 que aparentemente havia "desaparecido", Luiz Gonzaga Beltrame, as aquarelas são dos anos 1970 e o catálogo tem uma pequena nota biográfica. Vi uma exposição individual do artista em 1974 na Galeria Real, no Rio, e também em alguns salões, o trabalho dele era um cult em meio à descobertas do Oriente ("Se Oriente, rapaz..." cantávamos como Gal e Gil), pequenas e delicadas aquarelas com espaços místicos e estranhos; depois, nos anos 1980, não vi mais nada sobre o artista; que agora aparece no leilão, está registrado no Catálogo e, logo depois, podemos já ler sobre ele na internet.

Algumas fotos dos vernissages destas exposições estão no site Só Arte Contemporânea

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

No Rio, outro viño, e pensamentos


É, mas a boa surpresa de ontem não se repetiu. O Chablis Denis Race 2003 (bem, não é um Chablis Grand Cru ou 1er Cru, dificilmente iria resistir tanto tempo, mesmo na adega climatizada, é um Chablis simples, comprado no supermercado Zona Sul) estava irremediavelmente passado. Uma pena. Ainda uma boa cor, não escureceu; e ao abrir, ainda um bom aroma, o metálico característico dos Chablis, o que me encheu de esperança; mas na boca sinto que a acidez se foi, está completamente chato, pesado. Que pena. Jogar fora, abrir outro vinho, e prometer a mim mesmo nunca mais ser negligente com o tempo. Senhor da razão, sim, o tempo, mas também o senhor da decadência, do perdido, do destruído, do irrecuperável. Prometer a mim mesmo sempre lembrar que, assim como os vinhos, como tudo, às vezes não adianta esperar demais. O que acumulamos para o futuro talvez não veja nunca este futuro, ou ao vê-lo talvez ele esteja chato como este Chablis. Bebido na época certa, divino; depois da época certa, um cadáver. Prometer a mim  mesmo isso: não esperar demais, não esticar a corda, gozar na hora certa; e: quando se é jovem, a hora certa pode ser o agora e pode ser o depois, o bem depois, a gente tem todo o tempo do mundo; mas quando se é maduro, a hora certa é sempre o agora, quando ainda se esta no auge ou se tem uma lembrança deste auge; pois o futuro pode ser um vinho que virou vinagre.
Prometer a mim mesmo não virar vinagre.
Feliz aniversário, Sr. J.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

No Rio, um viño

O Rio é maravilhoso, claro. Mas está muito quente.
Um dia belíssimo, mas quente; e ainda por cima a manhã inteira no programa de índio que é fazer vistoria de carro. É preciso, ou então serei vítima fácil de achaques em qualquer operação verão que o governo fizer. E pior que o calor, neste caso, é a inutilidade da manhã perdida: você sabia? que em Brasília não se faz vistoria de carro? e nem por isso vemos circulando carros sem condições de, não mais que aqui.
Enfim.

Na noite, uma agradável surpresa, na adega uma garrafa solitária de um vinho que foi meu companheiro de verões há alguns ano. Um Muscadet Sur Lie, Côtes de Grandlieu, Le Pavillon, Domaine du Haut Bourg. Apesar do nome pomposo, comprado no Zona Sul a um preço bem razoável. Branco, francês, leve, claro. Só que safra de 2005, e eu penso que certamente não resistiu estes 4 quase 5 anos de guarda, deve estar passado, e decido: abro, provo, cuspo e jogo fora.
Não, esta foi a agradável surpresa: está inteiro, está ótimo, mantem o frescor, o aroma de melão e maçã verde, mas ganhou outros aromas mais complexos. Deixou de ser o vinho para acompanhar uma tarde de verão na piscina e se tornou um vinho para uma noite quente desta primavera que mais parece um verão.
Na sessão "limpeza na adega", tenho ainda um Chablis de 2003, mas isso será para outra noite de calor e outro post...

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Auto-retratos como Cardeal Richelieu


Nos primeiros meses de 2009, a imagem de uma pintura - a Natureza Morta com um Crânio, uma vanitas do pintor francês do Século XVII Philippe de Champaigne - me perseguiu, e com isso eu trabalhei em pinturas, estudos sobre aquela imagem, uma série que chegou esta semana a 53 telas, de diversas dimensões (de 30x40 a 80x100cm).
Há pouco mais de um mês, outra imagem do pintor começou a me perseguir: o Retrato Triplo do Cardeal Richelieu, de 1642, que está na National Gallery em Londres. Não é o único retrato-múltiplo da época, vários outros artistas usaram o retrato duplo, inclusive usando o recurso de reflexo da imagem em um espelho ou superfície espelhada, o que também dá margem para virtuosismo na pintura; e a Royal Art Collection, também em Londres, tem um lindo Retrato Triplo do Rei Carlos I, de Anton Van Dyck.
A função dos retratos triplos, provavelmente, era a de captar vários ângulos da mesma pessoa, juntando-os na mesma tela, para dar uma visão mais completa do retratado, em uma época onde a pintura, o desenho, eram os únicos instrumentos para o registro de imagens; este registro poderia ser utilizado, por exemplo, pelo próprio pintor para fazer novos retratos da pessoa, freguês habitual, claro, sem ter que submetê-lo a posar em novas e tediosas sessões. Com o cubismo, o futurismo, o expressionismo e outros movimentos modernos, estes duplos e triplos adquirem novos sentidos, pictóricos e psicológicos, que certamente não tinham ao serem pintados; penso nos retratos em trípticos do Francis Bacon, por exemplo. Por estes novos sentidos, além, é claro, da beleza do colorido, da sobriedade associada ao luxo, da composição concisa, e talvez por outros motivos inconscientes, o retrato do Cardeal Richelieu me colocou a compulsão de nova série de pinturas.
São os Tríplices Auto-retratos como Cardeal Richelieu, a série de pinturas que está apenas no início; e como nas minhas outras séries, uso o tema e a composição apenas como  um motivo, uma desculpa, para viajar: em cor, em novas formas, em pintura, em misturas com outras imagens de meu trabalho, da História da Arte ou de midia, da arte urbana... Principalmente, pinturas que me dão muito prazer ao fazer.
Estas séries de pintura estão completas em álbuns no meu Facebook, que podem ser vistos (mesmo por quem não tem FB) nos links:
Estudos sobre Vanitas de Philippe de Champaigne
Tríplices Auto-retratos como Cardeal Richelieu

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Meu pai, Antonio Moraes Correia, 90 anos


Hoje, 4 de novembro, ele faria 90 anos. Meu pai. Escorpião (como eu, ou melhor, eu sou Escorpião como ele). Uma vida interessante, uma perpétua busca.
Família tradicional nordestina, uma família patriarcal como se lê em romances, e que existia realmente, no início do século XX. O pai de meu pai (meu avô, de quem herdei o nome), o Coronel Jozias, certamente cristão-novo, um mascate que construiu um Império, em um porto longínquo do Nordeste brasileiro, na beira do Delta do Parnaíba: Amarração, a cidade depois batizada Luiz Correia, como seu irmão mais novo, tio de meu pai. Quando meu pai nasceu, caçula de 14 irmãos, o Império já era comandado pelo filho mais velho do meu avô, o maquiavélico Zeca Moraes; meu pai, filho caçula-temporão, era como que neto do pai dele, o que lhe permitia ser um pouco mais moderno, o Antonio, o artista.
Estudou no Rio, início dos anos 1940, dividiu quarto em pensão na Rua das Marrecas com Augusto Rodrigues, era amigo de Santa Rosa, de Pancetti; com eles, artistas jovens, frequentava o atelier do mestre Portinari, no Cosme Velho; misturava tintas, tinha um bom desenho, recebeu uma menção honrosa com um desenho no importante Salão de Belas Artes. Enquanto isso, estudava, ia ser arquiteto (o primeiro arquiteto da familia patriarcal que tinha comerciantes, diplomatas, políticos, mas que girava em torno do dinheiro da exportação da então riqueza do Nordeste, a cera da carnaúba). E fazia aventuras, foi um dos pioneiros a escalar, com amigos, o pico das Agulhas Negras, no Itatiaia, então o ponto culminante do Brasil, o que rendeu uma grande matéria na revista O Cruzeiro, com muitas fotos.
Na Rua Santa Clara, em Copacabana, a casa da irmã, Maria Alice, costureira de alto nível, modista, o que hoje chamaríamos de estilista; nos finais de semana meu pai saía da pensão da Rua das Marrecas e ia almoçar na casa da irmã, se sentir na família patriarcal, manter os laços com o longínquo Piauí, o Delta, as carnaúbas, a riqueza verde, exportada para os Estados Unidos e matéria prima para tanta coisa antes da descoberta do plástico, até para os discos em 78 rpm que levavam em seus sulcos as vozes do momento. Carmem, a Miranda; Frank, o Sinatra; eles todos tinham suas vozes registradas para a eternidade graças à cera da carnaúba que saía dos campos do Piauí para a América do Norte nos navios dos Moraes Correia.
Uma lenda familiar diz que o sobrenome Correia é a maior prova de cristão-novos que somos, na verdade uma adaptação do sobrenome Cohen. E os Cohen-Correia, que fizeram a vida como mascates no Nordeste, do Rio Grande do Norte para o Ceará, para o Piauí, e acumulando, pouco a pouco, economizando, construíram este império de exportação da cera de carnaúba.
A vida de meu pai tem rupturas, em algumas ele é invadido pela realidade adversa, em outras me parece que ele opta por uma ruptura. Compreendo bem isso, eu também herdei esta compulsão por rupturas, por apagar tudo e começar de novo, o que hoje entendemos como a tecla DEL.
Ele estava muito bem no Rio, mas foi passar férias em Parnaíba; as férias devem ter sido maravilhosas, pois ele perdeu os prazos todos para entrar na Faculdade de Arquitetura, ia ser aluno do Lucio Costa; deixou malas no sótão da casa da irmã, nas malas nada menos que 3 telas do Pancetti, deixou tudo, e começou vida nova. (Os Pancetti perdidos são outra lenda na família, imaginamos que ficaram no sótão de Tia Maria Alice até que a casa da Rua Santa Clara foi vendida e derrubada para a construção de um prédio, o fato é que se foram, se perderam)
Vida nova: o novo patriarca, meu tio Zeca, achou que estava na hora do jovem Antonio entrar na realidade, e   o mandou para uma temporada de estudos em NYC. Em paralelo, ele estaria em contato direto com os compradores da preciosa cera de carnaúba, e atuaria, como uma pessoa da maior confiança, como irmão, nas manobras contábeis de super e sub faturamento das exportações.
Ah sim, e também nestas férias que imagino maravilhosas, meu pai conheceu, e teve um namoro, com minha mãe, na festa de 15 anos dela, o que antigamente era um evento, a debutante; isso também é outra história, que merece um capítulo a parte.
Assim, deixando o Brasil, a Faculdade de Arquitetura, as tardes no atelier do Portinari, as telas do Pancetti, o flerte com minha mãe, tudo isso, meu pai aperta a tecla DEL e chega em New York, para um curso na Columbia University e também para trabalhar, controlando de perto os importadores americanos da preciosa cera de carnaúba.
Era época da guerra, NYC não parava, como hoje, mas os homens jovens estavam, em sua maioria, fora, nas manobras da Guerra na longínqua Europa (muita literatura sobre isso, e alguma literatura sobre como ficou NYC vazia neste tempo).
Além de bonito, simpático, inteligente, uma aura de latin-lover, o Antonio se beneficiou da baixa na concorrência, e entre as aulas na Columbia, fazia a vida noturna em uma NYC maravilhosa... The Copa, Jazz in Harlem, Village... Uma das namoradas era modelo da Saks 5th Avenue, e as fotos da linda americana, sulista, com casacos de pele, ficaram com ele; uma carta onde ela diz que precisa casar com o noivo da cidade sulista, mas que se ele, Antonio, dissesse que sim, ela cancelaria o casamento.
Mas ele voltou (DEL), o Brasil, Parnaíba, o Império o esperavam. Trouxe novidades dos USA, hábitos considerados excêntricos pela família patriarcal (um deles, piada na família: em um almoço festivo, mandou servir uma salada de frutas como entrada; o pai, meu avô, apenas perguntou, com a voz rouca, se o almoço estava terminando pois já era servida a sobremesa).
Enfim, o casamento com minha mãe, moram em São Luiz do Maranhão, ele é um grande vendedor, grande negociante, os negócios vão bem, nascem os filhos, crescemos todos. Um casal perfeito, uma família perfeita; ideias avançadas para a época (exemplo, os filhos de todas as familias nordestinas nos anos 1950 eram costumeiramente espancados como método educativo; meus pais conversavam conosco sobre o certo e o errado, o que causava espanto entre as outras famílias).
Anos 1960-70, o auge e a débâcle. Os negócios vão bem, muito bem. Na estreita sociedade de São Luiz do Maranhão, meu pai e minha mãe são referências, em contato sempre com o que há de moderno.
Compram um apartamento no Parque Guinle, no Rio, uma obra-prima modernista; ao mobiliar, mesa de jantar do Terneiro; em temporadas no Rio frequentam a sociedade carioca, e em São Luiz mantém uma casa aberta para os intelectuais e políticos, uma tendência para a esquerda, claro.
Viagens frequentes aos Estados Unidos (meu pai passa a vender também aviões Piper, produzidos na Pensilvânia, e, nos seus quarenta anos, aprende a pilotar e passa a atuar como co-piloto em todos os aviões que importa). Fiz umas viagens destas com ele, e uma lembrança inesquecível é a do meu pai me apresentando o MoMA; me apresentando a NYC que ele tanto viveu, e me incentivando a voltar, a ficar, na Capital do Mundo.
Logo são os anos da ditadura. Uma lembrança, boba, que tenho, é a de meu pai me explicando que naquele ano (1964? 1965?) não teríamos férias no Rio; era o período do arrocho econômico feito pelo Roberto Campos, e a baixa na atividade econômica afetava todos; eu teria que me preparar para viver as férias no Olho d'Água mesmo (tudo bem).
A atividade de meus pais com a intelectualidade logo se torna uma atividade política. Eles se filiam ao MDB (não o PMDB de hoje, fisiológico, mas o autêntico, de combate à Ditadura). Em 1966 participam de uma campanha política, apoiando Renato Archer como candidato a Governador (contra o José Sarney), meu pai como candidato de protesto a Senador obtém expressiva votação e minha mãe é eleita vereadora de São Luiz. Quem ganhou a eleição? e como? o José Sarney que hoje todos conhecem.
Na época, Glauber Rocha esteve em São Luiz para fazer um documentário sobre a eleição do Sarney, o documentário existe e muitas cenas foram aproveitadas em Terra em Transe; o Glauber filmava o Sarney, mas às noites ele ia, com os intelectuais da cidade, à casa dos meus pais, no Olho d'Água, pois era o lugar onde havia uma conversa inteligente, um whiskey do bom e umas casquinhas de caranguejo deliciosas.
Mas a atividade política de meus pais, o combate à Ditadura, teriam consequencias.
Depois da política recessiva do Roberto Campos, o Brasil entra na época do Milagre Brasileiro. Expansão, crédito ilimitado, crescimento, este é um país que vai pra frente, 90 milhões em ação, pra frente Brasil...
Uma combinação fatal para o país, que gastou, se endividou e depois amargou concordatas e hiperinflação. No caso do Brasil, conseguimos nos recuperar, porém para meu pai, a combinação foi fatal. No Milagre Brasileiro, ele foi forçado a expandir ao extremo seus negócios, aplicando em devedores sem condições de saldar suas dívidas; os créditos podres que vimos depois em muitas crises do capitalismo; os devedores não pagaram e ele teve que assumir as dívidas com seu patrimônio. Aliado a isso, as posições políticas dele e de minha mãe não os tornavam exatamente simpáticos para os dirigentes, os ditadores.
Depois, tudo se precipita.
As empresas são fechadas. Oficiais de justiça acossam meus pais com citações. Os devedores aproveitam e não pagam, já que as contas todas vão para meu pai. As autoridades dão respostas negativas, em um massacre com fundamentos políticos. Os credores não fazem acordos, e muitos se aproveitam da situação para comprar "na bacia das almas" bens da família levados a leilão, inquilinos aproveitam para furtar coisas de valor, antiguidades, para se dizer posseiros de imóveis da família. A meta é: calar meus pais, humilhá-los, aniquilá-los.
E em 1977, setembro, a hipertensão do meu pai explode em um AVC. Momentos terríveis, a exigir a união de nós, filhos, em torno de minha mãe, a exigir muito de uma família que, em poucos anos, caiu violentamente.
Meu pai se recupera, mesmo com sequelas. A fala enrolada, difícil, o lado direito com poucos movimentos, o andar claudicante. E o espírito de luta. E começa outra vida, com uma deficiência, fazendo pouco caso das limitações. Recupera o que ele gostava de fazer, artes, a fotografia. Reaprende a empunhar a câmera, uma Nikon analógica; a desenhar, com o lado esquerdo apenas.
Transformado em um andarilho, viaja, sozinho, com sua câmera, pelo Brasil. Viaja, vai aos Estados Unidos várias vezes, visita minha irmã que mora em Atlanta, vai ao Rio aonde moramos eu e minha irmã mais nova, volta a Teresina onde minha mãe fixou residência para tomar conta de minha avó, sua mãe, doente; mas ele nunca é dependente, circula por todos os lugares, fotografa, expõe suas fotografias.
É outra ruptura, desta vez externa, provocada pela doença; que marca uma nova vida para ele; e que ele bem aproveitou, nunca deprimido, sempre animado, sempre disposto, viajando, pegando ônibus e às vezes carona em caminhão, sempre com a sua câmera e registrando o mundo em fotos.
Fotos, fotos, fotos. Meu pai, o Sr. Antonio. Uma obra que evoluiu silenciosa, que se fez de registros, que resistiu a ser calada, que se rebelou, que gritou, que estava à frente, que se alimentou de adversidades e de rupturas, que viveu uma transição entre um mundo patriarcal e um mundo moderno, que investiu nos filhos, na liberdade e no livre-arbítrio dos filhos, para o futuro; ancorado em um passado mas sempre voltado para um futuro; que nos ensinou a, sempre, sempre, nos superarmos. E nos ensinou o valor da tecla DEL. E, principalmente, da tecla FORWARD.
Em 1994, ele se foi. O corpo frágil (ficou um ano inteiro sem consciência, alimentado por tubos, sob a vigilância de minha mãe), as fotos se desbotam, a memória se esvai, as pinturas precisam de restauro, os filhos tem outras prioridades, ninguém mais se interessa pelo Milagre Brasileiro, muito menos pelas vítimas do Milagre, a memória é curta e o tempo é pouco.
Este é meu pai, o Sr. Antonio Severiano de Moraes Correia. Hoje, 90 anos, uma data. Mais que isso, uma presença, inesquecível, não só para mim e minhas irmãs, mas para quem conviveu com ele, em vários momentos, sempre sobrevivendo na adversidade.
Meu Pai. Parabéns. Estamos com você, sempre.