terça-feira, 28 de setembro de 2010

Erotismo e Apropriação (Fábio Baroli)

Em janeiro deste ano escrevi aqui no blog sobre uma "descoberta": Narrativas Privadas, série de pinturas do artista Fábio Baroli, de Brasília, que me impressionaram de maneira muito forte.
Depois disso, conheci melhor o Fábio, conversamos bastante sobre arte, e em julho fui surpreendido com um convite do artista para escrever, com base no texto que escrevi para meu blog, uma apresentação de sua exposição individual no Centro Cultural Adamastor, em Guarulhos. Esta individual veio em decorrência da premiação recebida pelo artista no 9 Salão de Guarulhos (2009).

Foi uma encomenda interessante, transformar um texto escrito descontraidamente, em linguagem de blog, em outro texto que falasse sobre a obra do Fábio sem perder a informalidade, um texto "de artista para artista" e não um "texto crítico".

A exposição ficou bem bonita, mostra um apanhado da obra do artista, incluindo além das pinturas alguns trabalhos de cunho mais conceitual, e aconteceu ao mesmo tempo da primeira individual do Fábio no Rio, no Anexo da Galeria Laura Marsiaj, com boa repercussão. Na galeria do Rio foram apresentadas pinturas da série Narrativas Privadas; já em Guarulhos as demais séries, com as imagens fortes que descrevo em meu texto, causaram polêmica que teve que ser contornada para que a exposição fosse mantida.

As imagens deste post são o projeto do Fábio para sua exposição de Guarulhos, e dão bem a ideia do que foi a mostra.

Segue também o texto que escrevi para essa exposição:

 
Erotismo e Apropriação

Estava navegando na internet, sem compromisso, quando aquelas imagens me pegaram pelo pé, me derrubaram, me nocautearam. Assim descobri, como um voyeur, a pintura de Fábio Baroli.
Narrativas Privadas é uma série de pinturas concebidas a partir da apropriação de imagens de sites pornográficos. Homens e mulheres, distraídos, tomando seus banhos, com sexos e celulites à mostra, observados de longe, através de basculantes, pelo voyeur-pintor escondido, que se apropria de seus corpos e que ao pintá-los erotiza igualmente suas peles e os azulejos, as torneiras de metal gasto, os aparelhos de gilete. A sensualidade é minimizada, como se o artista "dissecasse" os corpos, ao invés de "expô-los". Os banhistas não são jovens nem belos, mas através da pintura o artista os retira de seus banheiros vulgares, e nos faz desejá-los, objetos de um olhar perverso polimórfico. O prazer de ver uma pintura, de possuir pela visão.
Já na série Semblantes o artista se apropria da tradição da pintura de retratos: o modelo encara o espectador; o claro-escuro destaca a figura centralizada; há a semelhança com as feições do retratado; mas o que domina tudo é um pensamento contemporâneo. O voyeurismo dá lugar a um olhar direto e mútuo, a uma nudez de intimidade; uma intimidade que “filtra” o corpo nu, o torna familiar. São pinturas que congelam em bem pintados retratos o momento anterior ou posterior ao clímax do desejo ou a familiaridade de uma amizade muito intensa.
Outra série, as Apropriações Textuais, apresenta pinturas que tem a tensão de um erotismo rebelde. O artista de novo se apropria da tradição da História da Arte, a domina e a expõe em toda a crueza, em toda a força de um erotismo século XXI, pós-liberação sexual. Uma versão sangrenta, menstruada, da “Origem do Mundo”, de Courbet. Um homem empalado, um Cristo clássico, tem o rosto do artista e genitais expostos na altura do olhar do espectador. Uma cabeça decapitada, um autorretrato, exibida por um carrasco nu com vigor erótico explícito. No auto-erotismo escandaloso do “Autômato”, uma metáfora da própria pintura.
A forte carga de erotismo aparece também nos trabalhos de cunho conceitual, as Intervenções. “Telúrico” é um obelisco, uma árvore exageradamente fálica que foi construída nos jardins do campus da Universidade de Brasília. Em outra instalação, ao se apropriar da Catedral de Brasília “pintando-a” com luz, o artista transmuda o concreto armado em carne, vibrante em um escandaloso tom de rosa. O templo, monumento arquitetônico modernista, se torna uma gigantesca vulva multifacetada.
Na internet, inscreva-se em um site pornô, veja as câmeras de vídeo que a cada momento oferecem a intimidade de várias pessoas, em cidades ou países distantes ou talvez suas vizinhas. Escolha uma imagem, é fácil, basta um clique, e pronto, você está acompanhando todos os detalhes de um corpo desconhecido que se expõe on-line para dezenas, centenas de espectadores anônimos. Você não precisa dizer nada, basta olhar; e para apagar aquela pessoa de sua vida basta fechar a janela do computador.
O erotismo hoje se escancara pela mídia, pela internet; e se torna banal, nada mais surpreende.  Mas ao internalizar o erotismo em sua pintura através do fetiche, da citação, da apropriação, Fábio Baroli consegue "se infiltrar" e "nocautear" o espectador desavisado, como eu naquela noite em que navegava descompromissadamente pela internet e fui parar em uma exposição de arte.  



Clique aqui para ler o post de janeiro de 2010 sobre o trabalho do Fábio Baroli

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Cenas de uma ocupação

O cenário: Prédio neoclássico em ponto nobre do Rio, construído na década de 1920, por encomenda de Otávio Guinle, pelo arquiteto francês Joseph Gire, autor do Copacabana Palace e outros marcos históricos do Rio: o edifício A Noite, o Hotel Glória, o Palácio Laranjeiras, a mansão da ilha de Brocoió, o embarcadeiro da praça Mauá, entre outros. Um prédio com tudo o que uma construção de luxo da época tinha direito: vista para o mar, amplos espaços, pé-direito alto, simetrias, ornatos em mármore e ferro forjado, sancas, nichos, molduras douradas, tacos de madeira nobre, elevadores amplos, elevador de serviço com grades de ferro, daqueles tão comuns em Paris e, no último andar, uma chambre-de-bonne para cada apartamento. Um prédio surpreendentemente bem conservado em um Brasil e um Rio que odeiam as memórias do passado. Neste prédio, um apartamento que mantém os acabamentos luxuosos e que, recém-comprado, passará por uma planejada reforma para adequá-lo às necessidades de seus novos moradores.
Os personagens: artistas plásticos/performers/músicos, um deles a proprietária do apartamento.
A ação: Ocupar o local com instalações, performances, pinturas, esculturas, desenhos, ambientes, fotografias, propostas, vídeos, músicas, danças... por um final de semana inteiro
Cenas:
Inicialmente tímidos diante do espaço, os artistas negociam seus espaços com os organizadores, apresentam suas propostas, discutem a logística, fazem incursões ao apartamento de cobertura do prédio (fechado há 25 anos) e ao bar próximo ao prédio, onde o croquete apresentado como autêntico do Alemão de Petrópolis é a sensação.
Aos poucos os trabalhos vão tomando forma, as propostas se modificam à medida em que se sente melhor o espaço, em que a interação entre trabalhos aponta para outros caminhos.
Uma semana, cinco dias úteis de preparação, de uma 2a. até uma 6a.feira. Alguns trabalham em casa, e os que preparam suas instalações no local estranham: será que só nós estamos trabalhando? onde estão os outros? será que vai dar certo? será que o resultado final vai ser um conjunto harmônico, vai "ter uma cara" ou vai ser um agregado de divergências?
O convívio estabelece alianças, cria amizades, propicia troca de informações, troca de energia. Descansa-se trabalhando, ou visitando o trabalho dos outros artistas. Para os lanches ou o chopp do final do expediente, o Bar da Praia bomba como talvez nunca tenha bombado. Segunda-feira, terça-feira...
Sexta-feira no início da tarde, a maioria dos trabalhos está completa ou em fase final de instalação, mas a tal visão de conjunto ainda não se faz, talvez o barulho de artistas trabalhando ou conversando, talvez o lixo ainda por tirar, talvez os trabalhos que ainda não estão montados, uma certa sensação de uma coisa anárquica... Vou para casa, um banho, descansar um pouco antes da festa de abertura...
...e ao chegar no apartamento vejo que, aparentemente como uma mágica, a luz se fez: a exposição flui, os trabalhos dialogam, se integram, se reforçam, há uma organização no que parecia um caos, há linhas de leitura que fazem "um desvio para o azul", "um desvio do rosa para o vermelho" e outros percursos, há até um bar na cozinha do apartamento com um eficiente barman preparando a melhor caipirinha de morango que jamais bebi em minha vida.
Mágica? não, sincronicidade, e a atuação discreta e agregadora dos organizadores/curador.
(Sonho com possível percurso: ao se abrir a porta do elevador, o tapete persa com corte de silhuetas de corpos humanos e uma misteriosa fotografia de um rosto-meio-vegetal dão as boas-vindas. No palaciano hall do apartamento uma cascata de pérolas, que pode ser uma arquitetura desconstruída ou uma infiltração, e sugestões de paisagem anacrônica pintadas nos nichos dourados das paredes se somam em uma minúscula gruta que expõe as entranhas do prédio em pérolas e pigmento azul.
Desviando para o vermelho, passamos por uma saleta obsessivamente cor-de-rosa com pequenos faunos desafiando a gravidade e chegamos a outra sala com uma parede pintada com gestos também cor-de-rosa e uma cascata de maçãs vermelhas caindo das gavetas de um armário; um pano vermelho entra pela parede e se conseguirmos seguir por este pequeno buraco chegaremos a uma biblioteca ocupada por uma bateria e outros instrumentos de percussão, e uma pequena escultura; na parede, uma pintura feita de contas brilhantes e coloridas; na estante, uma coleção de pratos de porcelana pintados reconta a História do Brasil.
De novo no hall, o percurso para o azul leva a uma paisagem sugerida por discretas linhas em um enorme campo de azul brilhante, que  confronta uma parede ocupada por uma dança erótica em traços livres de tinta azul, leves como as azaléias brancas de papel em vasos em frente à varanda; desta sala, o verdadeiro acesso à biblioteca; ou o acesso a outra sala dominada por gigantesco animal feito de pedaços de móveis antigos e penas e plumas brancas, onde um pequeno desenho da paisagem externa em uma parede preta é companheiro de instalações que fazem brotar da parede o interior de um processo construtivo moderno, vergalhões e tijolos.
Volta-se ao hall marcado pelas pérolas, e o largo corredor/galeria que leva à antiga cozinha é palco de uma massiva instalação com fotos do desabitado apartamento de cobertura e com material recolhido em lixo. No meio do corredor, portas de correr levam a uma antiga sala de banquetes, hoje o espaço de performances, marcado por pinturas/desenhos que fazem referência a corpos.
Pelo apartamento, telas exibem videos, um deles mostra uma mulher de burca andando compulsivamente pelos corredores vazios do que parece o mesmo apartamento mas talvez seja outro apartamento no prédio; outro mostra um estranho despertar; mendigos à volta de uma fogueira; e outras imagens perturbadoras.
Em uma pequena saleta, uma parede com buracos e textos de filósofos mostra como "filosofar com um martelo"; já em um dos banheiros, delicados desenhos feitos com lágrimas e maquilagem escorrida, um diálogo com as pérolas, com as flores de papel; com as pequenas placas de gesso que se esgueiram em diversos lugares mostrando desenhos da paisagem externa, de detalhes do interior ou do exterior do apartamento e os pequenos retratos sobre pedaços de fórmica de pessoas desconhecidas mas possíveis, reais, como os fantasmas, como o fantasma da mulher de burca que vagueia pelos corredores, como os pombos mortos no apartamento de cobertura, como as asas brancas que se estruturam em pedaços de móveis, e se volta ao início e se retorna em outro percurso, agora já um percurso mental de links e reflexões.)
No fim de semana a visitação é grande, no cair da tarde o apartamento se transforma em uma happy-hour, à noite é uma festa. Mesmo com a concorrência de outros eventos importantes no Rio: exposições do Hélio Oiticica no Corredor Cultural, Santa Teresa de Portas Abertas... e a concorrência desleal do que é o evento mais importante para o Rio, um fim de semana com sol gostoso chamando para as praias.
Gratificante.
E também um exercício de despreendimento, de viver o efêmero: domingo à noite as portas se fecham, segunda-feira tudo está desmontado, daí a alguns dias as equipes de pedreiros entrarão, quebrando paredes, trocando azulejos, substituindo a fiação elétrica que passa com fios envoltos em papel dentro de tubos de ferro, atualizando as instalações hidráulicas que se entopem com o acúmulo de décadas...
A partir de agora, só os registros da ocupação. Só a memória.

Artistas:
Abel Duarte
Alessandro Sartore
Aleteia Daneluz
Bob N
Bruna Lobo
Claudia Bakker
Edu Monteiro
Evandro Machado
Fernando de La Rocque
Gimena Mello
Hugo Richard
Jozias Benedicto
Kunja Bihari
Leo Ayres
Luar Maria
Luiza Crosman
Marcelo Rocha
Matias Mesquita
Moises Alcuna
Natali Tubenchlak
Nora Stephens
Orlando Mollica
Pontogor
Rafael Inacio
Robson
Sandra Schechtman
Simone Michelin
Ursula Tautz
Virginia Paiva
Ze Carlos Garcia

Organização:
Aleteia Daneluz
Bob N

Barman:
Ricardo

meus registros em foto


Registros em vídeo:








FaceArte publica uma versão resumida deste texto





quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Em busca do ouro

Chegar a Ouro Preto é como, de repente, estar dentro de uma paisagem de Guignard, é claro que já devem ter escrito isto antes mil vezes pois é a mais pura e óbvia verdade, não me importo, para que tentar ser original quando do alto destas montanhas tantos séculos me contemplam, tanto ouro tirado da terra, entregue aos Bragança ou contrabandeado nas trancinhas dos cabelos pixaim ou nas entranhas dos santos-do-pau-oco, tantos escravos mortos ou alforriados, em busca do ouro, do ouro preto.
(o ouro encontrado na região tinha as pepitas escurecidas por uma camada de paládio, o que lhe dava uma  tonalidade escurecida, característica, diferente da cor do ouro de outros lugares).
O ônibus vem devagar, amanhece, eu estou totalmente aceso, a estrada é cheia de curvas, subidas, descidas; em uma curva do caminho se abre inesperada a paisagem, um panorama entremeado de névoa, neblinas, um sol insistindo em nascer, as montanhas que se sucedem em planos irregulares. Nos planos: palmeiras, igrejas, casas com telhas moldadas nas coxas dos escravos, rios, córregos, matas. E acima de tudo o céu onde provavelmente moram anjos e santos barrocos. Guignard puro.
Desço (aqui se desce e sobe o tempo todo) até a Praça Tiradentes, já é plena manhã com sol forte e céu azul, pego um mapa da cidade para programar passeios e, no lugar onde os pedaços de Tiradentes ficaram expostos, enquanto estudo o mapa, ouço conversas como música de fundo. No mais puro sotaque de mineiro, que sempre traz uma sensação de pureza, de ingenuidade, um rapaz conta para o outro o ciúme que sentia da mulher e como ela a traiu, o assunto passa abruptamente para como ele agora está "em condicional", o interlocutor pergunta "o que é condicional", ele explica. Com a impressão de que perdi para sempre alguma informação importante (provavelmente os detalhes de como a infiel foi morta), sigo minha descoberta de Ouro Preto, Vila Rica, a Imperial Cidade de Ouro Preto.
Para mim, apenas um lindo dia de sol, a sensação de caminhar sobre pedras, seguir o mapa até uma igreja, ficar deslumbrado com o poder, a grandiosidade das volutas barrocas, da pedra entalhada, dos dourados, dos azulejos, dos santos com roupas e cabelos de verdade e com olhos brilhantes de vidro; descobrir que as sacristias são mais bonitas que os altares-mor; desenhar em meu moleskine detalhes, detalhes, detalhes intermináveis; seguir o caminho, pelo mapa ou pedindo informações, uma cidade turística como outra qualquer, só que sem um MacDonalds, o que é um diferencial altamente positivo.
Mas não é só isso, à medida em que sigo e converso ou ouço conversas, percebo presenças, sinto que o Tiradentes exposto na praça continua exposto, que a paisagem está cheia de grupos de turistas mas também está cheia de fantasmas, de vultos que se intui ou se percebe apenas com a visão periférica ou com os olhos fechados.
Vila Rica, o nome já nasceu com o indicativo da riqueza que foi sua glória e sua derrota: o garimpo. E a rica vila , uma serra pelada do período colonial, deve ter sido um lugar bem estranho para se viver.
Há uma Vila Rica, expansiva, solar; no burburinho dos onibus escolares com turistas; nos garotos, as cuecas aparecendo sob as bermudas caídas, que tiram fotos com seus celulares e ao apito dos professores se aglomeram para ouvir as explicações sobre a história da cidade; nas famílias que fazem turismo ou festejam uma segunda lua-de-mel; nas igrejas cheias de fiéis mas mais cheias ainda de turistas que sempre querem fotografar; no movimento de estudantes que tomam café com pão de queijo no intervalo entre as aulas.
E uma outra Ouro Preto, noturna, misteriosa, feita do sangue dos garimpos e dos escravos, dos inconfidentes, dos poetas, e que aparece em lugares insuspeitos; na conversa ao meu lado na praça; nos calouros que circulam pelas ruas com cartazes pendurados em seus corpos indicando sua situação (como os escravos); nos crimes; no Tiradentes esquartejado e exposto; nos becos onde você pode se perder para sempre; nas noites onde o barulho das festas ao longe mal esconde o rumor de correntes arrastadas, de matracas da Paixão de Cristo, de novenas e Te Deums, de açoites, castigos e orgasmos.
Vila Rica começou com a Bandeira de Antônio Dias no final do século XVII, o primeiro bandeirante paulista a chegar na região, atraído pelas promessas de riqueza a partir do estranho ouro enegrecido. Um primitivo arraial se fundou no morro de São João com a celebração de uma primeira missa para um grupo pequeno, que depois se multiplicaria. O garimpo, terra de ninguém; as atividades tradicionais - agricultura, criação - são abandonadas pela busca do ouro, para que perder tempo plantando ou pastoreando quando em uma pepita se pode descobrir a riqueza instantânea?
Assim, no início do século XVIII, a região passa pelo que se chamou de A Grande Fome. Dois forasteiros se matam a faca por uma cuia de farinha. Cheias dos rios em terríveis estações de chuvas agravaram a situação e provocam o êxodo de populações para outros arraiais, uma marcha de famintos que caíam de inanição nos caminhos do Rodeio. Fala-se que existiria até hoje um Campo das Caveiras, com centenas de mortos no esforço de subir a serra fugindo da cidade famélica. Escravos e ciganos, armados, assaltavam os vivos e saqueavam os mortos. O horror.
Horror que continuou e talvez tenha tido seu auge na Inconfidência; penas cruéis: por enforcamento, amarrado a cavalos e arrastado pelas ruas, depois esquartejado. Tiradentes, enforcado em 1792, teve seu corpo esquartejado e os destroços espalhados pelos caminhos de Minas Gerais; outros, exílio da África; o poeta Cláudio Manuel da Costa encontrado morto na prisão, oficialmente por suicídio. A cabeça de Tiradentes foi exposta em plena Vila Rica, sumiu misteriosamente e nunca mais foi encontrada.
Já no século XXI, o horror foi outro, novas tecnologias na cidade colonial, um jogo de RPG (role-playing game) com toques de magia negra teria provocado o assassinato de uma jovem,  a estudante Aline Silveira Soares, que foi a um evento em Ouro Preto, a "Festa do Doze", em 11 de outubro de 2001. Com duas amigas, ficaram hospedadas em uma república; no dia 13, um túmulo do cemitério de Ouro Preto foi violado; e no dia seguinte, o corpo de Aline foi encontrado no cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia; sobre um túmulo, despida, de braços abertos e pés cruzados, e com 17 ferimentos feitos a faca. Os acusados pelo crime são três rapazes, moradores da república, e uma jovem, prima da vítima.
As repúblicas em Ouro Preto são um capítulo a parte; se espalham pela cidade, cheia de estudantes; de todos os níveis, umas ricas e tradicionais, ocupam casas maravilhosas; outras menos poderosas, improvisadas até; só de moças, só de rapazes, mistas, GLS ou homofóbicas. São muito parecidas com as fraternities e sororities das universidades americanas, tão descritas em livros (A História Secreta, de Donna Tartt, é um deles, com sua trama de cumplicidades e estudos clássicos) e filmes (um dos melhores talvez o Sociedade dos Poetas Mortos, do diretor Peter Weir, além de longas séries de terror+rir de Pânico e aparentados). Uma experiência que, no Brasil, não é onipresente como na cultura norte-americana; na Universidade em que estudei o campus era uma ficção, se resumia às conversas nos pilotis; assim para mim foi uma experiência engraçada ficar hospedado em uma república.
O ponto forte é a hospitalidade, a facilidade em se fazer amigos, a diversão sempre presente, a casa cheia todo o tempo. O que poderia ser um ponto fraco, a pouca privacidade, não cheguei a sentir; mesmo com a casa cheia há um cuidado com as individualidades. Enfim, uma boa experiência, como é interessante passear na noite na cidade e ver a movimentação nas repúblicas, o barulho de festas, a juventude. E também uma marca da cidade, de Minas, a interiorização: não há um "baixo Ouro Preto", como temos vários "baixos" no Rio, onde as pessoas vão para as ruas beber e confraternizar; as loucuras acontecem entre as paredes coloniais das repúblicas, das casas, das igrejas; sob a aparência tradicional, o desvio; sob as igrejas barrocas, o prazer, a transgressão, o êxtase.
Como no crime das irmãs Poni, em 1962; as irmãs Ethel e Edina Poni, da chamada alta sociedade de Minas Gerais, assassinaram em uma pousada em Ouro Preto, a sangue frio, a nova companheira do ex-marido de Edina, o milionário Fernando Melo Viana Filho. Uma história de amor e ódio, de traição, de dinheiro, violência e impunidade; um assassinato cometido na frente de testemunhas, em público; enquanto Ethel segurava os braços de Maria de Lourdes Dias Calmon, Edina, campeã de tiro ao alvo dos clubes tradicionais de Belo Horizonte, dispara dois tiros de seu revolver calibre 32 na nuca da vítima. As duas senhoras foram presas algumas horas depois; para recebê-las, a cadeia de Ouro Preto foi reformada; o julgamento teve a participação de juristas importantes, e o conservadorismo da sociedade mineira foi determinante para acolher a tese da defesa, de coação moral irresistível, e absorver as acusadas, culpabilizando a vítima.
Segundo a defesa (o texto é uma pérola ao descrever o conservadorismo brasileiro da época, onde o divórcio ainda não era legalizado e as separações eram vistas com estranheza, um casal formado após um desquite era um casal pária, apontado na rua, os filhos de desquitados marginalizados nas brincadeiras com os filhos de famílias),  "a vida de Edina tornou-se uma via crucis, n’uma sucessão de sobressaltos e angústias, permanentemente oprimida e coagida por sua impiedosa rival (...) se viu obrigada a privar-se de comodidades e da vida de conforto que sempre teve – pois passou faltar-lhe o mínimo para a sua subsistência – Maria de Lourdes deixava seu emprego (...) anunciando aos quatro ventos que descobrira uma “mina de ouro” e não precisava exercer um ganha-pão honrado: foi engrossar o número daquelas que vivem da mais triste e mais antiga das profissões... (...) Continua acentuado o contraste entre ambas, após a desgraça visitar a morada de Edina, na pessoa da Calmon: enquanto esta fazia freqüentes viagens a Europa (...), ostentava jóias de um luxo asiático (...), requintando em sempre fazer chegar a Edina a notícia dos presentes caríssimos que recebia do Dr. Fernando (...). Edina a esposa legítima, atravessava períodos de notórias privações, com os credores batendo-lhe humilhantemente às portas (...) com os próprios fornecedores de gêneros negando-lhe mais crédito e obrigando-a a ir as duras fainas do trabalho na propriedade agrícola do casal, onde se dedicava à fabricação de doce para vender junto ao seu círculo de relações.  (...) Senhora da situação como se julgava, confiante de sua ascendência de fêmea moça sobre o amante sexagenário (em números redondos a Calmon tinha 30 anos e o dr. Fernando o dobro, passou ela a infernar a vida da acusada Edina atormentando-a, amargurando-a e levando-a ao desespero, através de freqüentes (...) telefonemas urbanos e interurbanos em que, utilizando de linguagem sórdida, preservada na tradição das vivandeiras, à Edina dizia que devia conceder o desquite ao marido para que ele pudesse regularizar sua situação com ela; que Edina se convencesse que era uma mulher velha e superada, enquanto que ela tinha mocidade a oferecer a seu marido e coisas quejandas (...)"
Estão todos lá, vagando, enquanto caminho pelas ladeiras, enquanto fotografo com meu celular as sombras, os azulejos e as fontes, enquanto bebemos uma cerveja Backer, enquanto vamos de república em república, os vultos nos perseguem e se escondem nos becos, os barulhos ao longe, as estrelas, o céu do Guignard.
Sim, e o Museu Casa de Guignard, uma delícia; a casa onde o artista morou, uma casa muito simpática com um gostoso quintal, muito bem conservada e adaptada para um museu simples, sem grandiosidade, cool como o artista.
Museu com pouco acervo, nem meia dúzia de telas do Guignard (mas uma lindíssima, pintura sobre madeira, grande, com cores fortes); uma cama e outros objetos pintados pela artista; e uma coleção de pequenos desenhos, cartões, bilhetes de enamorado; apenas isso; mas não faz mal, se respira Guignard em toda parte, um lugar gostoso para se ficar horas como ficamos, e se sentir também um pouco enamorado por esta Ouro Preto de Guignard. Como esta casa fosse um par de parênteses, fosse como uma capa protetora a deixar fora o lado soturno, os espíritos.
(Guignard também tem um lado negro, sabemos; depressivo, os complexos a partir dos lábios leporinos; mas sua obra dificilmente é soturna, mesmo nas cenas de noite, há uma transcendência, uma elevação, uma alegria quase ingênua. Outro artista, ligado a Ouro Preto, que transcendeu as limitações do físico foi certamente Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, cuja deformação absolutamente não deixa marca na beleza de seus anjos. O barroco, a transcendência da pérola deformada, o êxtase)
E assim deixo Ouro Preto, já fazendo planos para voltar.
Uma residência, registrando em meus moleskines os azulejos e azulejos das igrejas, quem sabe?
Ou simplesmente voltar, sem motivo, sem desculpa, pois a vida é boa e melhor ainda se se consegue rever o passado e tornar realidade algo que ficou inconcluso há tantos anos. Ou séculos.
Buscando o ouro e o encontrando.