quarta-feira, 9 de março de 2011

Cinzas

Lembra-te que és pó.
E ao pó retornarás. Um dia. Um carnaval.
Um dia a gente dizia, para quem não quer curtir carnaval a melhor coisa é ficar no Rio, a cidade fica vazia, a praia fica ótima. Ah, mas nós queríamos curtir carnaval e enfrentávamos engarrafamentos monstruosos para a Região dos Lagos, lá era um carnaval feito de pequenos blocos de rua, lá tudo era nosso, tudo era sempre, tudo, tudo. No Rio, o carnaval era ver pela televisão o desfile das escolas e no máximo uma banda de Ipanema que desfilava contida entre as calçadas do bairro mágico.
Hoje, é diferente, o Rio não fica mais vazio, cresceu no carnaval de rua, os blocos e bandas se espalham enormes, e não se consegue fugir do clamor das ruas, do som sincopado, do alaa-ô-ô-ôô...
Mijar se tornou um problema, uma interdição, um crime hediondo.
Penso que tudo mudou e tudo se renova, bebo uma latinha de vodka ice (prefiro não beber cerveja para não querer mijar), beijo na boca e me deixo beijar, e a vida segue. Mais um. Carnaval.
(nas cinzas separo as contas, amanhã dia 10, não perder as datas dos pagamentos, programar a agenda para o resto de março, um mês que ficou tão curto, agendar médicos, apresentações de projetos, portfolios, enfim: cinzas)
Respirar fundo, mais um, mais um ano. Obrigado, obrigado, obrigado, ainda não retornei. Ao pó.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Um outro Carnaval

Era Carnaval, eu era uma criança. A melhor lança-perfume era a Rodo metálica, um cilindro dourado esguichando um líquido frio perfumadamente enjoativo. As crianças ganhavam a sua quota de Rodo metálica, os adultos adoravam, cheiravam, caiam, pediam para as crianças uma prise no lenço de linho, as crianças não entendiam qual a graça daquilo tudo. Eu matava formigas, saúvas, tanajuras com o jato de minha Rodo metálica, ou jogava aquele jato gelado na nuca de uma menina. Um dia imitei os adultos e fiquei cheirando um lenço gelado de Rodo metálica, achei horrível.
Era Carnaval, a cerveja era quente, não dava tempo de gelar, a gente comprava nos bares a garrafa grande de 600ml e bebíamos no gargalo, quente mesmo, eu não era mais uma criança e queria ser um adulto mas a melhor parte era quando íamos mijar juntos e trocávamos cerveja quente no gargalo, éramos muito jovens e não tinha problema em nada, mesmo quando nos beijamos no banheiro sujo do boteco bebendo cerveja quente enquanto mijávamos, depois voltamos cada um para a sua namorada, suados, era Carnaval.
Era Carnaval, a cerveja que nunca gelava e uma peixada, panelas cheirosas na cozinha, pirão, arroz de cuxá, quem sabe o que é isso? minha namorada olhou para mim, eu beijei o pescoço dela, linda, como uma fruta silvestre, taperebá açai cupuaçu, ela riu e deu um gole grande na sopa de peixe, me beijou e passou com a língua a sopa para a minha boca, ficamos nos beijando e trocando de bocas aquela peixada e eu pensei, agora sou um adulto, não preciso mais matar formigas com a minha Rodo metálica, é meio nojento mas a vida de adulto é toda ela nojenta.
Era Carnaval, e falaram no auto-falante do clube no meio do desfile, um carro, um Galaxie pegando fogo, no estacionamento, era o nosso, fomos correndo, um cigarro mal apagado talvez. e lá estava o carro pegando fogo como uma carruagem do deus Apolo, era Carnaval.
Um Carnaval destes eu falei, chamei, gritei, é impossível que o Carnaval acabe hoje, na terça-feira, eu quero eu desejo eu imploro a todos os meus amigos, amanhã minha casa está aberta para continuarmos o Carnaval que eu não acredito que possa acabar. No dia seguinte acordei perplexo, falei com minha família sobre a bobagem que eu tinha feito, a noite fechamos a casa e apagamos as luzes, vimos chegar vários carros, os que acreditaram em mim, buzinaram, pararam na porta, a campainha, e nós silenciosos dentro de casa.
Arraial do Cabo, o Bloco do Feijão, outros Carnavais onde parece que se vai encontrar outro grande amor mas aos poucos se vê que o amor é escasso. Pouco. Pessoas que nem lembro o nome, mas que beijei bem, e pessoas que lembro bem o nome mas que foram para outros universos, vou beijar-te agora não me leve a mal, tudo é Carnaval. E depois dormindo na rede sempre estendida na varanda.
Um Carnaval, ainda faziam bailes no Theatro Municipal, desfiles de fantasia de luxo ou originalidade. Faziam corso, circulando com os carros, a gasolina era barata. Nos blocos e bandas, as pessoas trepavam transavam faziam amor faziam sexo, meu amigo que hoje é avô dizia contava enumerava quantas bocas. Eu não. Vou beijar-te agora.
No Bloco do Feijão é assim, os homens se vestem de mulher e as mulheres se vestem de homens. O segredo é, não sei qual é o segredo.  Só sei que o mascarado ou mascarada tirou a máscara de clóvis, abriu a roupa de losangos e nos beijamos, e era lindo, como eu, e a noite foi nossa. Era Carnaval.
No dia seguinte, na varanda da casa, contei minha história de amor no Carnaval. Ninguém acreditou. Eu sei como é isso, na verdade nem eu acreditei mesmo.