domingo, 29 de maio de 2016

Luiz Lopes Coelho, precursor da literatura policial brasileira




O escritor Luiz Lopes Coelho, morto em 1975, é pioneiro da literatura policial brasileira e referência no gênero para os leitores - e escritores como Rubem Fonseca e o jovem Raphael Montes. Acabei de ler/reler seus três livros de contos: "A morte no envelope" (1957), "O homem que matava quadros" (1961) e "A ideia de matar Belina" (1968), parte de uma pesquisa para meus novos trabalhos em ficção, e recomendo a leitura. A linguagem elegante, bem característica da época e do mundo onde transitam seus personagens - alta roda paulista com interseções com a marginalidade de bookmakers, empresários falidos, mulheres caça-dotes, sequestradores - é o sabor especial, embora alguns contos acabem ficando datados (sem spoilers...). O que acho melhor é "O homem que matava quadros", o conto que dá título ao livro é uma pequena obra-prima, e transportando o embate abstratos x figurativos para pintores x multimidias ou mesmo artistas x curadores se poderia dizer um texto contemporâneo. Os livros estão esgotados, mas achei na Estante Virtual por preços irrisórios, e um site do "Projeto Mão em Mão", da Prefeitura de São Paulo, disponibiliza grátis uma coletânea, "Ninguém morre duas vezes", boa para se chegar ao autor; porém para mim esta leitura fica melhor em livro, com o cheiro e o tato do papel, a ortografia da época e as capas como a do Eugênio Hirsch para a Editora Civilização Brasileira.


domingo, 28 de fevereiro de 2016

Terra de casas vazias

Terminei "Terra de casas vazias", o terceiro livro que leio do autor goiano André de Leones. Lançado em 2013 e mais ambicioso que os outros, é um romance que se estende por Brasília, São Paulo e Jerusalém, tem 5 núcleos nos quais os personagens se cruzam em sua busca por algo inatingível. Os outros livros dele que li até agora: "Hoje está um dia morto" (2006), prêmio no Concurso SESC e "Dentes negros" (2011), o que mais gostei. Achei "Terra de casas vazias" interessante, mas me parece que falta "algo", talvez a força que aparece na escrita dos outros; os personagens deste novo romance são bem caracterizados e tem seu fundo negro, muito negro; o enredo tem situações forte, mas para mim tudo parece um pouco inconsequente, como se a narrativa não aprofundasse. Os outros livros do autor que já estão na minha fila de leitura são: "Paz na terra entre os monstros" (2008) e "Como desaparecer completamente" (2010), que consegui bem barato na Estante Virtual. Este último foi parte do projeto "Amores Expressos", que enviou alguns escritores a cidades onde escreveram seus livros - e que nos trouxe entre outros os ótimos livros do Bernardo Carvalho, do Joca Reiners Terron, do Daniel Galera - mas o do André de Leones ao final não foi aceito pelo projeto e acabou sendo publicado pela Rocco; bom, estou curioso.

domingo, 14 de outubro de 2012

Narrativas




Muita coisa acontecendo. O tempo não para. Não para, mesmo, eu sei.
Uma viagem, estive pela primeira vez em uma Documenta, em Kassel, uma exposição que aponta para o futuro. E para minha surpresa vejo que a Documenta mostra coisas que me são muito familiares. Uma arte sem formalismo, sem esteticismos. A volta da narrativa, da pesquisa, do texto, da historicidade, da memória. Uma exposição política, que ousa desafiar o circuito, ousa incorporar o passado, ousa questionar o mercado, a lógica do mercado.

Em conversas com pessoas que são importantes para mim e que respeito muito, me vem a coragem de ousar um trabalho novo, que, como meus trabalhos dos anos 1970 e 80, não tem medo da narrativa. Uma videoperformance, uma narração, um texto meu contado de uma maneira despojada, não é uma encenação, é uma narrativa, olhos nos olhos dos espectadores, simples assim.
E está lá, até dezembro, na exposição Transperformance 2, na Oi Futuro, com curadoria da Marisa Flórido: "A dona de tudo". Na inauguração as pessoas faziam fila para ver/ouvir, 6min20seg, um texto tenso que escrevi há algum tempo e que agora vem à luz e me anima a retomar trilhas que já estavam em meus trabalhos antigos, que agora me parecem tão atuais, tão "para o futuro". Paradoxos do tempo, o verdadeiro futuro está ancorado em um verdadeiro passado, "what's past is prologue" (Will.S.).


Para mim, uma retomada dos cadernos de xerox que mostrei na Galeria Macunaíma, das cópias heliográficas que mostrei no Parque Lage e na Radio-Novela nos pilotis da PUC, e uma junção dos textos (nos quais venho trabalhando com a Vivência Literária do Luiz Ruffato) com a pintura, o visual. Criar imagens, e também deixar livre o campo para o espectador/ouvinte criar suas imagens.
Escreveu Walter Benjamin: "Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia", e é isso o que eu quero mostrar nestes meus novos trabalhos, quero ser o narrador destas histórias para cada um dos ouvintes, individualmente, na luz tremeluzente de uma fogueira, como na Grécia o fez um poeta cego.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dobras e vincos, magia

Gabriela é uma artista portuguesa que, por estes mistérios do mundo globalizado, está no Brasil e no Parque Lage como está em NYC e em Portugal, mas cujo trabalho remonta a lembranças de infância, a cheiros e vivências de um mundo talvez perdido talvez reencontrado pela arte.
Gabriela me pede um texto sobre seu trabalho, penso, penso, e escrevo. Gosto do trabalho, gosto do jeito polido e discreto de Gabriela, gosto de conhecer mais sobre os artistas portugueses, tão perto de nós e ao mesmo tempo tão distantes, gosto de me sentir em uma viagem que talvez tenha começado séculos atrás, afinal o mundo globalizado do contemporâneo começou com as navegações portuguesas, com o "navegar é preciso". Pertos e distantes, faço meu dever de casa, um texto, vejo as imagens dos trabalhos de Gabriela, as dobras e vincos, e penso que as ondas dos tecidos que Gabriela representa em suas pinturas são as ondas e mares que, navegados, conquistados, trouxeram a nós, Império dos Trópicos, a sede do absoluto, a magia.
É preciso.
Sim, é. É preciso, mesmo que nos afoguemos neste mar impreciso, mas é preciso, totalmente.
Aqui vai meu texto sobre o trabalho de Gabriela:





A Fábrica de Magia


Visitar A Fábrica foi sempre um momento mágico para a menina. O pai comandava tudo, de sua sala. Na parede, reproduções de pinturas clássicas, santos, paisagens, naturezas mortas. O silêncio reverente, a calma e o aroma de mentol, de lavanda, de tempo, da sala do pai contrastavam com o barulho ritmado, o movimento incessante e o cheiro acre das salas das máquinas, onde gigantescas bobinas comandavam a dança do tecido: enrolar, desenrolar, cortar, vincar, enrolar, desenrolar... A Fábrica era toda em tons de cinza sob um sol ibérico, mas o tecido era multicor, e ao se movimentar nas bobinas adquiria novos reflexos, tonalidades vibrantes, brilhos como o de pedras preciosas, de penas de pavão, de carpas imperiais, de borboletas dos trópicos. As bobinas se movimentavam em seu ritmo, com vida própria, e os finos fios eram, por este movimento, unidos, trançados, transformados em luz, em cor. Em magia.

Muito tempo depois, as bobinas da infância de Gabriela Simões Henriques (há décadas substituídas por outras tecnologias) voltam a se mover e a criar beleza, através do trabalho da artista. Não mais fios produzindo tecidos, não mais tecidos que enrolam, desenrolam, e sim: tela, papel, pincel, pigmentos, utilizados por Gabriela para, em suas pinturas, trazer ao espectador o encantamento sentido nas visitas à Fábrica e nunca esquecido. A menina talvez não soubesse, mas hoje a artista sabe, que o ritmo e o movimento das bobinas são arte, e uma arte mais viva que a que a menina via nos passeios aos museus ou nas reproduções na sala do pai na Fábrica.

Em algumas das pinturas de Gabriela, as bobinas se mostram quase que realistas, com sugestões de volume; às vezes se dissolvem, aparecendo como movimento; e em outras como pura cor, luz, ou matéria pictórica, em abstrações. Como se aqueles momentos na Fábrica não coubessem em um só trabalho, em uma só técnica, em uma só linguagem; e que vivência infantil cabe inteira em uma só linguagem?

(A artista termina uma pintura, e olha para ela. No cavalete, a pintura retribui o olhar, e vê a artista. A menina também está presente no ateliê, e olha a pintura, e olha a artista, e fica feliz. Ao longe, talvez se ouça o ritmo de máquinas, ou será o Carnaval nos trópicos cheios de magia e borboletas azuis onde a artista agora mora?) 



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Lugar quente é... no Bola Preta

Um convite irrecusável, apesar da logística de acordar cedo e tudo o mais. Sair no Cordão do Bola Preta, em seu aniversário de 93 anos, mas não no chão e sim com "a Diretoria", em um carro, irrecusável... e o Bola Preta é a abertura do Carnaval carioca, mesmo com os blocos antecipados de 6a.feira, um Carnaval que nestes anos cada vez mais se transformou em um mega-evento (como tudo na sociedade do espetáculo).
Convite irrecusável, lá estamos nós, minha paranóia me faz arquivar em casa o iPhone e levar um celular simplezinho, pouco dinheiro, documentos só o essencial. Bobagem, depois eu vi. Pois lá estamos, no caminhão com som e boca-livre de cerveja, água, maçãs e preciosos sanduíches, para quem madrugou às 6 da matina e ralou muito até que às 10h o cordão finalmente se movimentou. Um mar de pessoas, a Av.Rio Branco enchendo o cálculo é 1 milhão e meio de pessoas, mas às 10h as ruas perpendiculares também estavam todas cheias, a estimativa é de 2 milhões ou 2 milhões e meio. Um pouco de saudade de quando a passeata dos 100 mil enchia a mesma Rio Branco, mas o Cordão anda, chega de saudade, estamos aqui de cima dos carros e a multidão cada vez maior.
(antes, esperando a concentração, conversando com Rafa, 27 anos, sorriso lindo, um biólogo que estuda direito e quer fazer direito ambiental, e que veio de Sampa para o Carnaval no Rio sem lenço sem documento, na segunda-feira a noite ele tem uma hospedagem mas até lá ele, jovem, circula e curte o Carnaval no Rio e as pessoas, não vai dormir, na mochila tudo o que precisa e no sorriso tudo o que tem, eu sei como é ficar dois ou três dias de Carnaval sem dormir, já fiz isso, e digo, Rafa, faz isso sim, você está na idade de fazer isso, um dia teu sorriso vai se fechar e você vai saber como a vida é pesada e como o Carnaval é isso, a vanitas, a carne que se vai e nos prepara para a morte, mas isso é um segredo que não te digo, não quero estragar teu primeiro Carnaval no Rio, este peso é meu e ainda não divido com você, mas se nos encontrarmos de novo, quem sabe? mas a multidão é cruel, a camisa azul-turquesa do time da URSS logo se perde no campo visual de quem está vendo tudo de cima, e perco)
Perco para ganhar ou perder definitivamente. Padrões, bolas pretas sobre fundo branco, losangos, grupos fantasiados, rosa sobre verde, rosa sobre negro. Um grupo de negros parrudões faz a fantasia que os artistas adoram: simples camisetas brancas com furos circulares, as bolas pretas são a cor da pele. Correto, sensual, inesquecível.
O Cordão segue. De cima, acompanhamos pessoas lindas, ou que para nós são lindas, grupos de rapazes, grupos de moças, grupos que bebem cerveja no latão, vodka, sacolé de cachaça, e seguem o cordão, se beijam, se abraçam, cantam. Como nos carnavais de antigamente, o Corso da Avenida, no mesmo lugar da Avenida é um Corso do terceiro milênio, mandamos beijos para os que estão na planície e eles nos mandam beijos. Como um corso, eu cheguei a sair em corsos no Carnaval dos anos 1960, ninguém fala sobre isso mas os corsos morreram com o aumento do preço da gasolina nos anos 1970, a OPEP acabou com os corsos e era tão bom, circular, a gente usava uma pic-up Ford, um motorista paciente, jovens cantando, a pic-up ia e vinha sempre pelo mesmo percurso, às vezes parava e a gente saía e ia beijar na boca alguém de outro carro ou mijar juntos no banheiro se olhando nos olhos, tudo é carnaval, mas tudo isso acabou, estou aqui no Carnaval de 2012 e não existe mais corso mas o Cordão do Bola Preta está lindo e vivo, e as pessoas cantam, gritam: "quem não chora não mama, meu bem..."
Eu canto também, e grito, de cima vejo as pessoas sensualizadas e eu também estou sensualizado, queria descer mas elas me olham pois estou no carro, se eu descer acaba esta magia e vou ter que ir para a realidade de um sexo rápido em uma esquina, como já fiz tantas vezes. "Lugar quente é na cama, ou então, no Bola Preta".
Uma diferença em relação aos eventos mais antigos (bom, eu desfilei em escola de samba, saí nas Bandas de Ipanema heróicas, curti muitos anos o Bloco do Feijão em Arraial do Cabo etc), eu acho, na verdade duas diferenças: a primeira, hoje tudo é um mega-evento, a Banda de Ipanema onde conheci o amor de minha vida nos anos 1970, tinha talvez 50, 100, 200 mil pessoas, hoje tem 2 milhões, acho que tudo embola: metrô, banheiros, tudo, mas não tem jeito de voltar atrás.
Ah sim e outra diferença é que hoje são todos japoneses, 2 milhões de japoneses, que tiram suas fotos com o celular, se colocam a disposição para as fotos, o tempo todo posando. Não tenho problema em relação a isso, tirei muitas fotos com o celular velho, vou tentar postar aqui no blog, mas... É uma nova cultura, a dos japoneses, que só sabem se as férias foram boas quando vêm as fotinhas, rsrsrsr então tudo bem...
Enfim enfim enfim
Lugar quente é sim, no Bola Preta!!!!!!
Enfim, enfim. Um dia lindo, céu azul, sol gostoso. É bom, foi bom. Acabou e dá vontade de sair de novo, ano que vem, no outro ano, para sempre, talvez encontrar de novo o sorriso aberto de alguém que está sem pouso, só curtindo seu primeiro Carnaval, e talvez guardar de novo, dele, o meu segredo: que a carne se vai.

sábado, 4 de junho de 2011

Dona Paula

Um pedido de uma amiga é uma ordem. Daniela Name pediu a quatro pintores cariocas algumas frases ("três frases, sintético mesmo", ordenou) para seu blog sobre a exposição da artista portuguesa Paula Rego na Pinacoteca de São Paulo. Os artistas: Patrizia d´Angello, Bruno Miguel, Jozias Benedicto e Raul Leal.
Uma das super-exposições que vi em São Paulo na intensa semana da SP Arte. E que não virá ao Rio, shame! shame! Como a do Leonilson no Itaucultural de SP, maravilhosa, e a do Gerhard Richter (que está na Caixa Cultural de Brasília e que vai a São Paulo e até a Salvador). Será que é porque ainda somos um balneário? Enfim, nada que uma passagem com desconto ou com milhagem não resolva, mesmo se for uma ida bate-e-volta a SP como fiz em horários absurdos mas a preço mais-barato-que-o-Expresso-Cometa.
Os textos estão no blog da Daniela Name, ao lado da análise, como sempre enriquecedora, feita sobre a trajetória e a obra da artista, complementada com boas imagens de algumas obras expostas.
Aqui vai o meu texto, um registro apenas de uma exposição marcante, inesquecível, de um trabalho forte e visceral, ao mesmo tempo eterno e tão contemporâneo.
"Domínio técnico completo: óleo sobre colagem, tinta acrílica, desenho, pastel, gravura em ponta-seca, água-forte, lito. Mas o trabalho de Paula Rego é muito mais que isso, que o virtuosismo técnico. É o desvendar de um universo completo em sua estranheza e pervesidade, infantil e adulto, mulher e homem e andrógino, feto abortado e animais à espreita, personagens de contos de fada e de Sade. Em salas e quartos de classe média-alta, famílias se dedicam a jogos dúbios, de prazer e de horror, enquanto sobre o tapete passeia um inocente animal de estimação, um pequeno javali de dentes afilados ou a filha masturba a bota do pai ao engraxá-la. Bailarinas musculosas, um anti-Degas, ajeitam os tutus e se preparam para entrar em um palco  que nunca aparece, o espetáculo é a espera do espetáculo. Mulheres que abortam, solitárias, dor e sangue discretos, recolhidos, fetos, bonecas destruídas, criaturas do mar. Azulejos portugueses, Portugal que lida com as décadas de brutal repressão e atraso, a tristeza do fado e a nostalgia de um antigo império hoje decadente, a herança moura, os muxarabis, as mulheres encarceradas. Uma exposição para ser vista e revista, com vagar, mergulhando neste mundo cruel e pulsante, ameaçador e ao mesmo tempo tão familiar, de histórias infantis, de dores e de sangrar. Ao mesmo tempo um mundo tão real: basta olhar em volta. Basta ter olhos e ver. Ou fechar os olhos e sonhar os pesadelos de Paula Rego."


Clique aqui para o blog da Daniela Name, uma referência em comentários, notícias, tudo sobre arte

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Pinturas 2009-2011

Admirava as pinturas medíocres, bandeiras de portas, cenários, telões de saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; a literatura antiquada, (...) romances do tempo da avó, contos de fadas, almanaques infantis, óperas antigas, refrões simplórios, ritmos singelos.”  Uma estação no inferno,  A.Rimbaud (citado por Eco, U. em “A História da Feiúra”)

Revisando as pinturas que fiz a partir de 2009, anoto algumas características que me parecem comuns. Um exercício, busco ver estas muitas dezenas (centenas) de telas como um conjunto, em sua diversidade de temas e procedimentos, à semelhança da minha série Polkianas, exposta no Largo das Artes em fevereiro de 2011, onde as 35 pequenas telas se agrupam em uma só pintura.
Esta é exatamente uma primeira característica que está presente em meu trabalho:  Ele se desenvolve em séries, se agrupa em polípticos, séries que não se encerram e que são sempre retomadas. Serialidade, repetição, multiplicidade, camadas. Obsessão em dividir, em contar as partes e em agrupá-las, em propor elementos em quantidades precisas, em números ímpares, o 3, o 7, o 12+1 (este uma metáfora da Última Ceia)... Pedaços de mundo que se agrupam em um todo, um todo que é bem maior que a soma das partes, uma completeza que está sempre em aberto.
Trabalho cada pintura em camadas, sobrepondo formas, manchas, técnicas, matérias, universos. Sobreponho citações de imagens da História da Arte e cito procedimentos de pintura, “estilos”: os gestuais da action-painting, as cores fortes do fauve, as pinceladas do expressionismo abstrato... Os polka-dot do Sigmar Polke, as Vanitas do Philippe de Champaigne, os rostos e corpos que se desfazem como no Francis Bacon... A coexistência entre estas camadas nem sempre é pacífica, em muitos trabalhos me interessa mesmo o embate entre mundos pictóricos: o abstrato-orgânico versus o geométrico-metálico.
Recorrentes em meu trabalho são as imagens do kitsch, em especial o kitsch religioso: sagrados corações, coroas de espinhos, mantos de nossa senhora aparecida, as Vanitas. Fora do contexto de uma pintura sacra ou mística, no meu trabalho estes elementos não significam transcendência, ao contrário, estão pairando sobre a aridez de um mundo inóspito.
Utilizo uma paleta exuberante, tons fortes, cores falsas, berrantes, tons neon, tintas metálicas, superfícies cheias, texturas, matéria, pigmentos, excesso de acontecimentos. Passo longe do clean.  Tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Uma teatralidade de ópera: nos autorretratos eu sou eu e sou o Rei Sol, o Cardeal Richelieu, nas paisagens o trampolim de Icaraí é como um palco, há uma história que está sendo contada mas o que é fixado é o momento entre duas falas, o silêncio que precede a ária, a expectativa do salto mortal sem a rede de proteção.
Deixo muito espaço para o acaso, para o aleatório, para o erro. A mancha, o escorrido, o sem-controle. O feio. Trabalho com incertezas, muitas vezes buscando os limites da percepção: manchas que são figuras humanas ou não, paisagens apenas sugeridas, imagens dúbias, espaços dúbios.

*   *  *
Sobre o que falam estas pinturas? São paisagens, vanitas, retratos e autorretratos.
As paisagens são praias com o esqueleto de uma construção, um trampolim. São ruínas de usinas nucleares, um mirante abandonado no alto de uma serra, pedaços da arquitetura modernista de Brasília. São cenários de um mundo destruído ou em destruição, onde o tempo está congelado. O apocalipse nuclear já veio e nós ainda não notamos.
As vanitas repetem à exaustão uma cena clássica: sobre uma mesa, um crânio ladeado por um vaso com flores e uma ampulheta: em uma série com 50 pinturas dissequei a pintura de Philippe de Champaigne. Em outras pinturas, as caveiras de príncipes e imperatrizes dançam, esqueletos dos Habsburgos e dos Bragança. Crânios aparecem, ou se escondem no limite da percepção, em paisagens, em retratos. Memento mori, a vida como um teatro.
Retratos de ídolos mortos ou eternamente vivos, de estátuas de museu de cera, de crianças com lábios leporinos. Paródia de um expressionismo, de um Francis Bacon ou de um Lucian Freud ou de um Graham Sutherland – mas as carnes à mostra são de plástico, as cores são de um cenário de teatro, o sangue é puro Alizarim Crimson 346 Acrilex.
Dos retratos aos autorretratos, a teatralidade se exacerba: eu sou personagens, meu verdadeiro eu está na superfície, na tinta metálica que reflete o espectador, no rosa-neon que desmascara a seriedade do expressionismo. Um cardeal, um pintor com uma taça de vinho e uma tela em branco, um jogador de futebol e seu duplo, um homem com o coração exposto, com os olhos fechados, com os dentes arreganhados como um cão de guarda. Como o Rei Sol. Teatro.
Vendo o conjunto, observo que um tema se mostra presente em todo o meu trabalho: a transitoriedade. Não quero falar da morte de um indivíduo, da minha morte, da morte de alguém querido, não quero falar de um ponto de vista psicológico, não busco ser triste, não quero ser sério, ser deprimente. Luto, talvez; mas não melancolia. Não quero ser óbvio fazendo uma pintura sóbria em tons fechados: as minhas caveiras dançam, as cores explodem, busco exatamente este contraste. Busco falar da transitoriedade da vida e do Universo, dos papéis neste teatro de sombras. Nada é absoluto, as certezas se dissolvem em tinta e em pedaços de História, as imagens se apagam e reaparecem, as camadas se somam e ao fundo se vê restos de vidas neste palimpsesto em que vivemos.

“We are dying, we are dying, we are all of us dying
and nothing will stay the death-flood rising within us
and soon it will rise on the world, on the outside world.”
The Ship of Death, D.H.Lawrence

domingo, 10 de abril de 2011

KJ no Rio

Sim, KJ. Palmas.
Keith Jarrett no Municipal, retornando ao Rio depois de 22 anos. Não vi, perdi, não vou perder esta por nada no mundo. KJ e os improvisos de piano.
(Adoro. Köln Concert, o CD que vendeu mais de 3,5 nilhões de CDs (eu comprei, meu CD sumiu, depois dei download na internet, como eu muitos, então os três milhões se multiplicam. Outros muitos outros. Mais de 60 CDs gravados, em solo ou com o grupo, standards, clássicos, improvisações. Para mim os melhores as improvisações, o concerto no Scala de Milão quando no meio dos improvisos ele toca um Over the Rainbow. Não precisa mais de nada, só isso).
E lá está ele, todo de preto, e o piano, o piano. Ele esquenta aos poucos, como nós mortais; o primeiro improviso é delicado, inocente, como uma planta carnívora nos chama com a beleza e a leveza para um mundo onde seremos devorados pelas teclas que fluem, agora leves, inocentes, exageradamente inocentes, flores no campo. Depois ele esquenta, a segunda peça já tem os aromas terciários, como um vinho, como uma música que não é mais somente primavera, e assim vai.
Hoje, peças curtas, muitas. Finalizações abruptas, como para marcar um universo de peças curtas. Ah um desejo de ouvir uma peça longa, um lado de um CD ou mais.
Recebe as palmas com uma reverência, retorna ao palco e ao piano, aplausos consagradores, volta ao palco e toca um bis. Outro. Outro. Além da performance irrepreensível, ele trouxe uma sequencia de bis que é simplesmente divina, sem palavras, vejo tudo e entendo finalmente o que é deus. Palmas.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Cinzas

Lembra-te que és pó.
E ao pó retornarás. Um dia. Um carnaval.
Um dia a gente dizia, para quem não quer curtir carnaval a melhor coisa é ficar no Rio, a cidade fica vazia, a praia fica ótima. Ah, mas nós queríamos curtir carnaval e enfrentávamos engarrafamentos monstruosos para a Região dos Lagos, lá era um carnaval feito de pequenos blocos de rua, lá tudo era nosso, tudo era sempre, tudo, tudo. No Rio, o carnaval era ver pela televisão o desfile das escolas e no máximo uma banda de Ipanema que desfilava contida entre as calçadas do bairro mágico.
Hoje, é diferente, o Rio não fica mais vazio, cresceu no carnaval de rua, os blocos e bandas se espalham enormes, e não se consegue fugir do clamor das ruas, do som sincopado, do alaa-ô-ô-ôô...
Mijar se tornou um problema, uma interdição, um crime hediondo.
Penso que tudo mudou e tudo se renova, bebo uma latinha de vodka ice (prefiro não beber cerveja para não querer mijar), beijo na boca e me deixo beijar, e a vida segue. Mais um. Carnaval.
(nas cinzas separo as contas, amanhã dia 10, não perder as datas dos pagamentos, programar a agenda para o resto de março, um mês que ficou tão curto, agendar médicos, apresentações de projetos, portfolios, enfim: cinzas)
Respirar fundo, mais um, mais um ano. Obrigado, obrigado, obrigado, ainda não retornei. Ao pó.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Um outro Carnaval

Era Carnaval, eu era uma criança. A melhor lança-perfume era a Rodo metálica, um cilindro dourado esguichando um líquido frio perfumadamente enjoativo. As crianças ganhavam a sua quota de Rodo metálica, os adultos adoravam, cheiravam, caiam, pediam para as crianças uma prise no lenço de linho, as crianças não entendiam qual a graça daquilo tudo. Eu matava formigas, saúvas, tanajuras com o jato de minha Rodo metálica, ou jogava aquele jato gelado na nuca de uma menina. Um dia imitei os adultos e fiquei cheirando um lenço gelado de Rodo metálica, achei horrível.
Era Carnaval, a cerveja era quente, não dava tempo de gelar, a gente comprava nos bares a garrafa grande de 600ml e bebíamos no gargalo, quente mesmo, eu não era mais uma criança e queria ser um adulto mas a melhor parte era quando íamos mijar juntos e trocávamos cerveja quente no gargalo, éramos muito jovens e não tinha problema em nada, mesmo quando nos beijamos no banheiro sujo do boteco bebendo cerveja quente enquanto mijávamos, depois voltamos cada um para a sua namorada, suados, era Carnaval.
Era Carnaval, a cerveja que nunca gelava e uma peixada, panelas cheirosas na cozinha, pirão, arroz de cuxá, quem sabe o que é isso? minha namorada olhou para mim, eu beijei o pescoço dela, linda, como uma fruta silvestre, taperebá açai cupuaçu, ela riu e deu um gole grande na sopa de peixe, me beijou e passou com a língua a sopa para a minha boca, ficamos nos beijando e trocando de bocas aquela peixada e eu pensei, agora sou um adulto, não preciso mais matar formigas com a minha Rodo metálica, é meio nojento mas a vida de adulto é toda ela nojenta.
Era Carnaval, e falaram no auto-falante do clube no meio do desfile, um carro, um Galaxie pegando fogo, no estacionamento, era o nosso, fomos correndo, um cigarro mal apagado talvez. e lá estava o carro pegando fogo como uma carruagem do deus Apolo, era Carnaval.
Um Carnaval destes eu falei, chamei, gritei, é impossível que o Carnaval acabe hoje, na terça-feira, eu quero eu desejo eu imploro a todos os meus amigos, amanhã minha casa está aberta para continuarmos o Carnaval que eu não acredito que possa acabar. No dia seguinte acordei perplexo, falei com minha família sobre a bobagem que eu tinha feito, a noite fechamos a casa e apagamos as luzes, vimos chegar vários carros, os que acreditaram em mim, buzinaram, pararam na porta, a campainha, e nós silenciosos dentro de casa.
Arraial do Cabo, o Bloco do Feijão, outros Carnavais onde parece que se vai encontrar outro grande amor mas aos poucos se vê que o amor é escasso. Pouco. Pessoas que nem lembro o nome, mas que beijei bem, e pessoas que lembro bem o nome mas que foram para outros universos, vou beijar-te agora não me leve a mal, tudo é Carnaval. E depois dormindo na rede sempre estendida na varanda.
Um Carnaval, ainda faziam bailes no Theatro Municipal, desfiles de fantasia de luxo ou originalidade. Faziam corso, circulando com os carros, a gasolina era barata. Nos blocos e bandas, as pessoas trepavam transavam faziam amor faziam sexo, meu amigo que hoje é avô dizia contava enumerava quantas bocas. Eu não. Vou beijar-te agora.
No Bloco do Feijão é assim, os homens se vestem de mulher e as mulheres se vestem de homens. O segredo é, não sei qual é o segredo.  Só sei que o mascarado ou mascarada tirou a máscara de clóvis, abriu a roupa de losangos e nos beijamos, e era lindo, como eu, e a noite foi nossa. Era Carnaval.
No dia seguinte, na varanda da casa, contei minha história de amor no Carnaval. Ninguém acreditou. Eu sei como é isso, na verdade nem eu acreditei mesmo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Na madrugada

É a hora em que os que estão com alguém dormem saciados. É a hora em que os lobos uivam famintos, a lua cheia adquire um tom de vermelho-sangue, a dama-da-noite recolhe seu perfume. Os que não estão com alguém continuam tomando chopp quente em pé e baixam o nível de exigência.
É a hora em que são cometido os assassinatos, as invasões, os estupros, os incestos.
No meu prédio tem um vigia, que deve estar dormindo. É a hora em que até os vigias mais sérios dormem, em que nas boates só ficam os solteiros, os que procuram e ficam até o final exatamente porque procuram.
É a hora em que os sites de relacionamento na internet estão cheios de pessoas nuas, que se masturbam para o mundo, ou para o verdadeiro amor que nunca terão, que está sempre além, sempre. É a hora em que as crianças choram dormindo ou acordam com pesadelos.
(uma noite eu acordei chorando, gritando, mais ou menos nesta hora, eu gritava e apontava para o teto da casa, eu via uma bruxa gargalhando entre as vigas, entre os caibros de madeira, no dia seguinte subiram e viram que as madeiras estavam carcomidas por milhares de cupins e que a casa ia ruir, depois reformaram a casa mas eu continuo até hoje vendo aquela bruxa, ela está comigo em todas as minhas madrugadas)
É a hora em que os suicidas despencam de um andar alto segurando apertado na mão uma imagem de um santo. É a hora em que os santos entram em êxtase. É a hora em que o êxtase é fácil e vem como um preparativo para o sono ou para a morte.
O vigia deve estar dormindo, eu posso interfonar para ele e perguntar se está tudo bem, claro que ele vai demorar para atender, deve estar em um sono profundo, mas vai dizer que está tudo bem, evidente. É que ele não sabe, ele não viu a bruxa que ri sempre entre as vigas.
Nos sites, webcams ligadas, todos procuram. Nos bares, chopps ligados, todos procuram. Nos becos escuros, na areia da praia, nas esquinas, todos procuram, sempre. Os suicidas também, os carentes, os destituídos de tudo, os que viram a novela e os que leram um livro, os que foram ao supermercado que abre 24 horas, os que foram à praia e os que ficaram em casa.
(um dia, ele virá, como no apocalipse, brilhante mas ao mesmo tempo negro como a minha bruxa, e ordenará, cessem todos os chopps, cessem os sites de relacionamento, as webcams, cesse toda a espera, eu vim e estou aqui e sempre estarei pois sou o êxtase total, o princípio e o fim)
Mas ninguém vai ouvir o que ele diz.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dia de los Muertos

Happy-hour em Ipanema, tantas happy-hours, penso em você, lembro de você, tanto tempo, tantas happy-hours que curtimos juntos, 20 anos é uma vida ou quase, e em um momento tudo se acaba, pra sempre; bebo e penso no rio, no Aqueronte, você está lá, na barca, e olha pra mim, e segue, a barca segue; você olha pra mim, a barca segue, a happy-hour no feriado do dia de Finados continua...

Elisa comenta:
Sempre continua, Jozias.
Sempre.
;)  
   
                              
Um dia, um dia, um dia, eu também seguirei nesta barca, aí estaremos juntos, de novo; por enquanto eu tenho que brincar que estou vivo, que você não me faz falta, tenho que seguir, mas você me faz muita falta, mesmo depois de tanto tempo. Não adianta chorar, a barca segue e te leva pra mais longe de mim, e eu continuo bebendo caipivodka e rindo, sou feliz, tenho amigos, mas sei que um dia estarei de novo com você em uma happy-hour sem tempo pra acabar.


domingo, 31 de outubro de 2010

Sobre a dificuldade de escrever

Amigos me perguntam, quando você vai postar no blog as impressões sobre a Bienal? sobre a visita a ateliês? sobre o trabalho de artistas novos? sobre tua vida, tua visão subjetiva dos acontecimentos, em um momento de ruptura? sobre a programação cultural no Rio, tão intensa? sobre teu trabalho? sobre os artistas que você está pesquisando, sobre Daniel Buren, sobre Sigmar Polke, sobre...
A exposição está fechando, o trabalho do artista está mudando, o ateliê não é mais o mesmo, teus sentimentos reais só tem sentido mediados pela poesia do texto, por que pesquisar estes artistas tão pesquisados quando novos artistas emergentes são lançados ou são recuperados, por que escrever sobre a Bienal de São Paulo sem os urubus quando nos países asiáticos dezenas de Bienais estão em exibição, por que mostrar/falar de pintura quando as outras mídias são as queridas da mídia, por que pintar (a cozinha, o demorado, o sutil, o permanente) quando o momento é do imediato, do provisório, do descartável. Por que. por que, por que?
Muitas pautas, muitas trocas, muitas deadlines.
A realidade de que, hoje, escrever um texto, um simples texto, 2 laudas, é um trabalho penoso. Bom, claro, acabou o trabalho penoso de datilografar, corrigir, redatilografar... os editores de texto são a maior invenção desde Mr.Gutemberg.
Mas, paradoxalmente, o escrever se torna mais exigente. Checar as fontes, todas elas, estabelecer os links, procurar as imagens, preocupar-se com direitos de imagem (ainda na internet uma brincadeira, mas uma tendência forte para o futuro). A preocupação em ser politicamente correto. A auto-censura.
Enfim, tudo isso para dizer que:
Dei um tempo no blog. 
Não dei um tempo em criar, pelo contrário, estou pintando e desenhando sem parar, meu ateliê está vivo e movimentado (bom, um pouco sujinho demais, minha Ivanete tirou uma licença de 2 semanas para se casar de véu e grinalda e com tudo que tem direito), continuo visitando ateliês e exposições. Reflexão. Estou escrevendo também, bastante, os contos que discuto nos workshop com o Luiz Ruffato (e que não posto mais no blog para manter o ineditismo).
Ou seja: não estou morto, pelo contrário.
Apenas inaugurei a temporada de hibernação aqui no blog.
Volto após hibernar.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Erotismo e Apropriação (Fábio Baroli)

Em janeiro deste ano escrevi aqui no blog sobre uma "descoberta": Narrativas Privadas, série de pinturas do artista Fábio Baroli, de Brasília, que me impressionaram de maneira muito forte.
Depois disso, conheci melhor o Fábio, conversamos bastante sobre arte, e em julho fui surpreendido com um convite do artista para escrever, com base no texto que escrevi para meu blog, uma apresentação de sua exposição individual no Centro Cultural Adamastor, em Guarulhos. Esta individual veio em decorrência da premiação recebida pelo artista no 9 Salão de Guarulhos (2009).

Foi uma encomenda interessante, transformar um texto escrito descontraidamente, em linguagem de blog, em outro texto que falasse sobre a obra do Fábio sem perder a informalidade, um texto "de artista para artista" e não um "texto crítico".

A exposição ficou bem bonita, mostra um apanhado da obra do artista, incluindo além das pinturas alguns trabalhos de cunho mais conceitual, e aconteceu ao mesmo tempo da primeira individual do Fábio no Rio, no Anexo da Galeria Laura Marsiaj, com boa repercussão. Na galeria do Rio foram apresentadas pinturas da série Narrativas Privadas; já em Guarulhos as demais séries, com as imagens fortes que descrevo em meu texto, causaram polêmica que teve que ser contornada para que a exposição fosse mantida.

As imagens deste post são o projeto do Fábio para sua exposição de Guarulhos, e dão bem a ideia do que foi a mostra.

Segue também o texto que escrevi para essa exposição:

 
Erotismo e Apropriação

Estava navegando na internet, sem compromisso, quando aquelas imagens me pegaram pelo pé, me derrubaram, me nocautearam. Assim descobri, como um voyeur, a pintura de Fábio Baroli.
Narrativas Privadas é uma série de pinturas concebidas a partir da apropriação de imagens de sites pornográficos. Homens e mulheres, distraídos, tomando seus banhos, com sexos e celulites à mostra, observados de longe, através de basculantes, pelo voyeur-pintor escondido, que se apropria de seus corpos e que ao pintá-los erotiza igualmente suas peles e os azulejos, as torneiras de metal gasto, os aparelhos de gilete. A sensualidade é minimizada, como se o artista "dissecasse" os corpos, ao invés de "expô-los". Os banhistas não são jovens nem belos, mas através da pintura o artista os retira de seus banheiros vulgares, e nos faz desejá-los, objetos de um olhar perverso polimórfico. O prazer de ver uma pintura, de possuir pela visão.
Já na série Semblantes o artista se apropria da tradição da pintura de retratos: o modelo encara o espectador; o claro-escuro destaca a figura centralizada; há a semelhança com as feições do retratado; mas o que domina tudo é um pensamento contemporâneo. O voyeurismo dá lugar a um olhar direto e mútuo, a uma nudez de intimidade; uma intimidade que “filtra” o corpo nu, o torna familiar. São pinturas que congelam em bem pintados retratos o momento anterior ou posterior ao clímax do desejo ou a familiaridade de uma amizade muito intensa.
Outra série, as Apropriações Textuais, apresenta pinturas que tem a tensão de um erotismo rebelde. O artista de novo se apropria da tradição da História da Arte, a domina e a expõe em toda a crueza, em toda a força de um erotismo século XXI, pós-liberação sexual. Uma versão sangrenta, menstruada, da “Origem do Mundo”, de Courbet. Um homem empalado, um Cristo clássico, tem o rosto do artista e genitais expostos na altura do olhar do espectador. Uma cabeça decapitada, um autorretrato, exibida por um carrasco nu com vigor erótico explícito. No auto-erotismo escandaloso do “Autômato”, uma metáfora da própria pintura.
A forte carga de erotismo aparece também nos trabalhos de cunho conceitual, as Intervenções. “Telúrico” é um obelisco, uma árvore exageradamente fálica que foi construída nos jardins do campus da Universidade de Brasília. Em outra instalação, ao se apropriar da Catedral de Brasília “pintando-a” com luz, o artista transmuda o concreto armado em carne, vibrante em um escandaloso tom de rosa. O templo, monumento arquitetônico modernista, se torna uma gigantesca vulva multifacetada.
Na internet, inscreva-se em um site pornô, veja as câmeras de vídeo que a cada momento oferecem a intimidade de várias pessoas, em cidades ou países distantes ou talvez suas vizinhas. Escolha uma imagem, é fácil, basta um clique, e pronto, você está acompanhando todos os detalhes de um corpo desconhecido que se expõe on-line para dezenas, centenas de espectadores anônimos. Você não precisa dizer nada, basta olhar; e para apagar aquela pessoa de sua vida basta fechar a janela do computador.
O erotismo hoje se escancara pela mídia, pela internet; e se torna banal, nada mais surpreende.  Mas ao internalizar o erotismo em sua pintura através do fetiche, da citação, da apropriação, Fábio Baroli consegue "se infiltrar" e "nocautear" o espectador desavisado, como eu naquela noite em que navegava descompromissadamente pela internet e fui parar em uma exposição de arte.  



Clique aqui para ler o post de janeiro de 2010 sobre o trabalho do Fábio Baroli