domingo, 14 de outubro de 2012

Narrativas




Muita coisa acontecendo. O tempo não para. Não para, mesmo, eu sei.
Uma viagem, estive pela primeira vez em uma Documenta, em Kassel, uma exposição que aponta para o futuro. E para minha surpresa vejo que a Documenta mostra coisas que me são muito familiares. Uma arte sem formalismo, sem esteticismos. A volta da narrativa, da pesquisa, do texto, da historicidade, da memória. Uma exposição política, que ousa desafiar o circuito, ousa incorporar o passado, ousa questionar o mercado, a lógica do mercado.

Em conversas com pessoas que são importantes para mim e que respeito muito, me vem a coragem de ousar um trabalho novo, que, como meus trabalhos dos anos 1970 e 80, não tem medo da narrativa. Uma videoperformance, uma narração, um texto meu contado de uma maneira despojada, não é uma encenação, é uma narrativa, olhos nos olhos dos espectadores, simples assim.
E está lá, até dezembro, na exposição Transperformance 2, na Oi Futuro, com curadoria da Marisa Flórido: "A dona de tudo". Na inauguração as pessoas faziam fila para ver/ouvir, 6min20seg, um texto tenso que escrevi há algum tempo e que agora vem à luz e me anima a retomar trilhas que já estavam em meus trabalhos antigos, que agora me parecem tão atuais, tão "para o futuro". Paradoxos do tempo, o verdadeiro futuro está ancorado em um verdadeiro passado, "what's past is prologue" (Will.S.).


Para mim, uma retomada dos cadernos de xerox que mostrei na Galeria Macunaíma, das cópias heliográficas que mostrei no Parque Lage e na Radio-Novela nos pilotis da PUC, e uma junção dos textos (nos quais venho trabalhando com a Vivência Literária do Luiz Ruffato) com a pintura, o visual. Criar imagens, e também deixar livre o campo para o espectador/ouvinte criar suas imagens.
Escreveu Walter Benjamin: "Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia", e é isso o que eu quero mostrar nestes meus novos trabalhos, quero ser o narrador destas histórias para cada um dos ouvintes, individualmente, na luz tremeluzente de uma fogueira, como na Grécia o fez um poeta cego.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Dobras e vincos, magia

Gabriela é uma artista portuguesa que, por estes mistérios do mundo globalizado, está no Brasil e no Parque Lage como está em NYC e em Portugal, mas cujo trabalho remonta a lembranças de infância, a cheiros e vivências de um mundo talvez perdido talvez reencontrado pela arte.
Gabriela me pede um texto sobre seu trabalho, penso, penso, e escrevo. Gosto do trabalho, gosto do jeito polido e discreto de Gabriela, gosto de conhecer mais sobre os artistas portugueses, tão perto de nós e ao mesmo tempo tão distantes, gosto de me sentir em uma viagem que talvez tenha começado séculos atrás, afinal o mundo globalizado do contemporâneo começou com as navegações portuguesas, com o "navegar é preciso". Pertos e distantes, faço meu dever de casa, um texto, vejo as imagens dos trabalhos de Gabriela, as dobras e vincos, e penso que as ondas dos tecidos que Gabriela representa em suas pinturas são as ondas e mares que, navegados, conquistados, trouxeram a nós, Império dos Trópicos, a sede do absoluto, a magia.
É preciso.
Sim, é. É preciso, mesmo que nos afoguemos neste mar impreciso, mas é preciso, totalmente.
Aqui vai meu texto sobre o trabalho de Gabriela:





A Fábrica de Magia


Visitar A Fábrica foi sempre um momento mágico para a menina. O pai comandava tudo, de sua sala. Na parede, reproduções de pinturas clássicas, santos, paisagens, naturezas mortas. O silêncio reverente, a calma e o aroma de mentol, de lavanda, de tempo, da sala do pai contrastavam com o barulho ritmado, o movimento incessante e o cheiro acre das salas das máquinas, onde gigantescas bobinas comandavam a dança do tecido: enrolar, desenrolar, cortar, vincar, enrolar, desenrolar... A Fábrica era toda em tons de cinza sob um sol ibérico, mas o tecido era multicor, e ao se movimentar nas bobinas adquiria novos reflexos, tonalidades vibrantes, brilhos como o de pedras preciosas, de penas de pavão, de carpas imperiais, de borboletas dos trópicos. As bobinas se movimentavam em seu ritmo, com vida própria, e os finos fios eram, por este movimento, unidos, trançados, transformados em luz, em cor. Em magia.

Muito tempo depois, as bobinas da infância de Gabriela Simões Henriques (há décadas substituídas por outras tecnologias) voltam a se mover e a criar beleza, através do trabalho da artista. Não mais fios produzindo tecidos, não mais tecidos que enrolam, desenrolam, e sim: tela, papel, pincel, pigmentos, utilizados por Gabriela para, em suas pinturas, trazer ao espectador o encantamento sentido nas visitas à Fábrica e nunca esquecido. A menina talvez não soubesse, mas hoje a artista sabe, que o ritmo e o movimento das bobinas são arte, e uma arte mais viva que a que a menina via nos passeios aos museus ou nas reproduções na sala do pai na Fábrica.

Em algumas das pinturas de Gabriela, as bobinas se mostram quase que realistas, com sugestões de volume; às vezes se dissolvem, aparecendo como movimento; e em outras como pura cor, luz, ou matéria pictórica, em abstrações. Como se aqueles momentos na Fábrica não coubessem em um só trabalho, em uma só técnica, em uma só linguagem; e que vivência infantil cabe inteira em uma só linguagem?

(A artista termina uma pintura, e olha para ela. No cavalete, a pintura retribui o olhar, e vê a artista. A menina também está presente no ateliê, e olha a pintura, e olha a artista, e fica feliz. Ao longe, talvez se ouça o ritmo de máquinas, ou será o Carnaval nos trópicos cheios de magia e borboletas azuis onde a artista agora mora?) 



segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Lugar quente é... no Bola Preta

Um convite irrecusável, apesar da logística de acordar cedo e tudo o mais. Sair no Cordão do Bola Preta, em seu aniversário de 93 anos, mas não no chão e sim com "a Diretoria", em um carro, irrecusável... e o Bola Preta é a abertura do Carnaval carioca, mesmo com os blocos antecipados de 6a.feira, um Carnaval que nestes anos cada vez mais se transformou em um mega-evento (como tudo na sociedade do espetáculo).
Convite irrecusável, lá estamos nós, minha paranóia me faz arquivar em casa o iPhone e levar um celular simplezinho, pouco dinheiro, documentos só o essencial. Bobagem, depois eu vi. Pois lá estamos, no caminhão com som e boca-livre de cerveja, água, maçãs e preciosos sanduíches, para quem madrugou às 6 da matina e ralou muito até que às 10h o cordão finalmente se movimentou. Um mar de pessoas, a Av.Rio Branco enchendo o cálculo é 1 milhão e meio de pessoas, mas às 10h as ruas perpendiculares também estavam todas cheias, a estimativa é de 2 milhões ou 2 milhões e meio. Um pouco de saudade de quando a passeata dos 100 mil enchia a mesma Rio Branco, mas o Cordão anda, chega de saudade, estamos aqui de cima dos carros e a multidão cada vez maior.
(antes, esperando a concentração, conversando com Rafa, 27 anos, sorriso lindo, um biólogo que estuda direito e quer fazer direito ambiental, e que veio de Sampa para o Carnaval no Rio sem lenço sem documento, na segunda-feira a noite ele tem uma hospedagem mas até lá ele, jovem, circula e curte o Carnaval no Rio e as pessoas, não vai dormir, na mochila tudo o que precisa e no sorriso tudo o que tem, eu sei como é ficar dois ou três dias de Carnaval sem dormir, já fiz isso, e digo, Rafa, faz isso sim, você está na idade de fazer isso, um dia teu sorriso vai se fechar e você vai saber como a vida é pesada e como o Carnaval é isso, a vanitas, a carne que se vai e nos prepara para a morte, mas isso é um segredo que não te digo, não quero estragar teu primeiro Carnaval no Rio, este peso é meu e ainda não divido com você, mas se nos encontrarmos de novo, quem sabe? mas a multidão é cruel, a camisa azul-turquesa do time da URSS logo se perde no campo visual de quem está vendo tudo de cima, e perco)
Perco para ganhar ou perder definitivamente. Padrões, bolas pretas sobre fundo branco, losangos, grupos fantasiados, rosa sobre verde, rosa sobre negro. Um grupo de negros parrudões faz a fantasia que os artistas adoram: simples camisetas brancas com furos circulares, as bolas pretas são a cor da pele. Correto, sensual, inesquecível.
O Cordão segue. De cima, acompanhamos pessoas lindas, ou que para nós são lindas, grupos de rapazes, grupos de moças, grupos que bebem cerveja no latão, vodka, sacolé de cachaça, e seguem o cordão, se beijam, se abraçam, cantam. Como nos carnavais de antigamente, o Corso da Avenida, no mesmo lugar da Avenida é um Corso do terceiro milênio, mandamos beijos para os que estão na planície e eles nos mandam beijos. Como um corso, eu cheguei a sair em corsos no Carnaval dos anos 1960, ninguém fala sobre isso mas os corsos morreram com o aumento do preço da gasolina nos anos 1970, a OPEP acabou com os corsos e era tão bom, circular, a gente usava uma pic-up Ford, um motorista paciente, jovens cantando, a pic-up ia e vinha sempre pelo mesmo percurso, às vezes parava e a gente saía e ia beijar na boca alguém de outro carro ou mijar juntos no banheiro se olhando nos olhos, tudo é carnaval, mas tudo isso acabou, estou aqui no Carnaval de 2012 e não existe mais corso mas o Cordão do Bola Preta está lindo e vivo, e as pessoas cantam, gritam: "quem não chora não mama, meu bem..."
Eu canto também, e grito, de cima vejo as pessoas sensualizadas e eu também estou sensualizado, queria descer mas elas me olham pois estou no carro, se eu descer acaba esta magia e vou ter que ir para a realidade de um sexo rápido em uma esquina, como já fiz tantas vezes. "Lugar quente é na cama, ou então, no Bola Preta".
Uma diferença em relação aos eventos mais antigos (bom, eu desfilei em escola de samba, saí nas Bandas de Ipanema heróicas, curti muitos anos o Bloco do Feijão em Arraial do Cabo etc), eu acho, na verdade duas diferenças: a primeira, hoje tudo é um mega-evento, a Banda de Ipanema onde conheci o amor de minha vida nos anos 1970, tinha talvez 50, 100, 200 mil pessoas, hoje tem 2 milhões, acho que tudo embola: metrô, banheiros, tudo, mas não tem jeito de voltar atrás.
Ah sim e outra diferença é que hoje são todos japoneses, 2 milhões de japoneses, que tiram suas fotos com o celular, se colocam a disposição para as fotos, o tempo todo posando. Não tenho problema em relação a isso, tirei muitas fotos com o celular velho, vou tentar postar aqui no blog, mas... É uma nova cultura, a dos japoneses, que só sabem se as férias foram boas quando vêm as fotinhas, rsrsrsr então tudo bem...
Enfim enfim enfim
Lugar quente é sim, no Bola Preta!!!!!!
Enfim, enfim. Um dia lindo, céu azul, sol gostoso. É bom, foi bom. Acabou e dá vontade de sair de novo, ano que vem, no outro ano, para sempre, talvez encontrar de novo o sorriso aberto de alguém que está sem pouso, só curtindo seu primeiro Carnaval, e talvez guardar de novo, dele, o meu segredo: que a carne se vai.