terça-feira, 30 de março de 2010

Sobre xilos e marés

Exposição do artista paulista Fabrício Lopez na Galeria Mercedes Viegas, com xilogravuras em grandes formatos e pinturas sobre papel. Impacto. Recupero no notebook um texto inacabado, que comecei a escrever a partir de minha primeira visão do trabalho do artista.

Há quase um ano, em São Paulo, na exposição "Rumos Artes Visuais - Trilhas do Desejo", no Itaú Cultural, uma xilogravura prende minha atenção. Não é uma xilogravura tradicional, está longe da visão mental que fazemos ao pensar em “xilogravura”.

"Rema, Rema, Remador" tem 3x4m, ocupa uma parede inteira onde está colada diretamente, sem moldura, tem cores e formas inusitadas, repetições, sobreposições, veladuras, o resultado é mais de pintura do que de xilogravura. Verdes (verde esmeralda, verde musgo, verde cana, muitos mais), vermelhos, sombras, negros; um mar, formas de um barco; e a escala que domina o espaço em torno, como uma instalação, como uma maré que invadisse a sala e a Avenida Paulista.

Valongo, a exposição individual do artista na Estação Pinacoteca, que vejo logo em seguida, no mesmo dia de uma viagem “bate-e-volta” BSB-SP-BSB, é para mim ainda mais marcante. O título faz referência ao bairro onde o artista tem seu ateliê, na cidade portuária de Santos, um bairro industrial dedicado à atividade de torrefação do café no período de auge da produção cafeeira paulista.

Uma xilogravura monumental é o centro da exposição, com formas e elementos que se repetem e se espalham por outras xilogravuras. As matrizes são exibidas, não com a preocupação didática de explicar a técnica, e sim como obras, se misturam e dialogam com os papéis. Letras, palavras, frases aparecem em meio as imagens, porém não ilustram nem elucidam, são pura carga poética e gráfica.

A mostra na verdade é como uma instalação, como uma ópera, onde canoas, pássaros, flores, portas, cabeças são leitmotivs, em meio a uma massa densa de cores e perspectivas fragmentadas, um espaço que se forma e se destrói, revelando e ocultando uma paisagem de cais, de mar, de um horizonte que se intui e que nos escapa, de um infinito que nos desafia e nos ilude, de uma busca sem fim, de novo como as ondas de um mar que pensamos dominar mas que sempre nos foge e que na verdade nos domina.

Assim, ao conhecer, em 2009, as xilos do Fabrício, o tema “xilogravura” entrou em minha pauta mental. E como nada é por acaso, elas, as xilogravuras, apareceram no circuito de artes em muitas mostras, exposições que no todo formam um apanhado de várias vertentes desta técnica na arte brasileira.

Claro que esqueço algumas, e apesar de minhas tentativas de ubiquidade não vi todas, mas em rápido refresh de memória lembro as gravuras de cordel (A Arte de J. Borges: do Cordel à Xilogravura); Luz Noturna, pequena mas importante retrospectiva da obra do Goeldi, pequena já que sua obra gigantesca sempre desafia limites, como o céu negro de suas pequenas gravuras cresce muito além do papel e se projeta no espaço. Ainda, a exposição de Hansen-Bahia, com obras recentemente restauradas do artista alemão radicado no Brasil na década de 1950; a importante exposição do Rubem Grilo, com cerca de 180 trabalhos do artista, que aliou um trabalho de cunho político a pesquisas formais e a um perfeccionismo na execução; os trabalhos iniciais da Anna Letícia, os bichos, em xilo, fortes e que apontam para o desenvolvimento da obra da artista na gravura em metal; todas estas exposições na Caixa Cultural.

Na Pinacoteca, a imponência das massas gravadas em madeira pela artista Maria Bonomi. Na SP-arte conheci o trabalho de outro artista da nova geração de gravadores, o Ulysses Bôscolo, paulista, que constrói em sua bancada de marceneiro caixas de madeira reaproveitada para suas xilogravuras.

E finalmente, a mostra da coleção de George e Monica Kormis, também na Caixa Cultural, uma enciclopédia da gravura brasileira e em particular da xilogravura. Completa, estão todos lá: Segall, Goeldi, Lívio Abramo, Samico, Lygia Pape, Roberto Magalhães, Elisa Bracher, até a série/políptico feita pela Fayga Ostrower para o Itamaraty, talvez o ápice da xilogravura abstrata no Brasil (e onde aparece, de forma pioneira na Brasil, a monumentalidade que vai explodir na obra do Fabrício).

Na exposição no Rio, quando revejo o trabalho de Fabrício e conheço, conversando com o artista, mais sobre seu percurso e seu processo de trabalho, releio os fragmentos que escrevi e volto a pensar em como esta técnica artística pode se manter a mesma, com toda sua tradição; e ao mesmo tempo, se renovar, ser absolutamente contemporânea apesar dos séculos.

Nada mais antigo do que entalhar madeira para reproduzir e disseminar imagens; e nada mais contemporâneo do que as xilos monumentais que Fabrício desenvolve; cópias únicas, matrizes modificadas e reutilizadas, uma paleta de cores “de pintura” em tintas desenvolvidas especialmente para o artista; repetições, sobreposições e veladuras; podemos falar de gravuras ou de pinturas? e pela monumentalidade, não estaríamos já no campo das instalações?

Ao mesmo tempo, estas características tão contemporâneas são também procedimentos “da xilogravura”: as tintas especiais utilizadas são tintas gráficas; as matrizes de madeira reaproveitadas, as folhas de papel coladas diretamente na parede como affiches ou papéis de parede, até a escala monumental já aparecem na história da técnica (aprendo com Fabrício que, já no Século XVI, uma gravura de Ticiano, A Travessia do Mar Vermelho, foi feita em 12 folhas que, juntas, chegam a 2,20 x 1,20m). A utilização destas características “históricas” com uma visão contemporânea marca o trabalho e a pesquisa do jovem artista.

A presença das pinturas ao lado das xilos como que mostra que não há, em seu trabalho, barreiras entre as técnicas. Vindo da pintura e da cenografia, Fabrício um pouco que inverte o usual: mostra gravuras grandes (as menores medem 1x0,70m) ao lado de pinturas em menor escala (52x50cm). Todas, gravuras e pinturas, são sobre papel e são obras únicas. Todas apresentam a mesma temática, o mar, as canoas, pessoas como coadjuvantes de uma história atemporal de cais e de marés. E a mesma paleta, linda (é possível falar de um xilogravador que ele é excelente colorista?): os verdes, os vermelhos, os ocres, os sombras.

Sigo pensando nas tantas exposições de xilogravura, e como, em algumas delas, no trabalho de artistas esta técnica foi empregada com tanta força e tão dentro do espírito da época, que a xilo se tornou imediatamente identificada com este mesmo zietgist. É o caso das gravuras de cordel e também dos trabalhos expressionistas, que tanto marcaram os anos 1950, das gravuras abstratas dos ano 1960 ou dos trabalhos com cunho fortemente político que retormaram a figuração nos anos 1960-70.

E penso em uma xilogravura diferente, renascida, contemporânea, nesta primeira década do terceiro milênio, e que no futuro talvez seja marcante ao pensarmos na imagem da época que ainda não bem entendemos.

No caminho Gávea-Ipanema o vento do mar me leva a Santos, ao cais do porto, às marés, às pequenas canoas e aos navios embarcados com sacas de café torrado, aos verdes esmeralda e verdes azulados, chego a quaqse sentir o cheiro forte do café misturado ao cheiro de maresia, eu sei, a História da Arte acabou, mas também sei que há uma outra história que continua, e que xilogravuras podem ser arte contemporânea, uma blitz, por favor senhor, vá em frente, obrigado, obrigado, pode seguir. OK. Coloco meu CD do Philip Glass no volume máximo e sigo, rumo a Ipanema, ao mar, ao cais do Valongo, sempre em frente, para o alto e rumo ao infinito.


E mais:
A foto do vernissage é do Odir Almeida, mais fotos no site Só Arte Contemporânea
Para ver o blog do Fabrício Lopez, Ateliê Santos
Comentei neste blog a exposição do Rubem Grilo na Caixa Cultural, clique aqui para ler o post
Clique aqui para o texto de Maria Luisa Luz Távora, Fayga Ostrower e a Gravura Abstrata no Brasil, com análise sobre o pioneirismo da artista no Políptico do Itamaraty em termos de monumentalidade na xilogravura
Clique aqui para o Instituto Fayga Ostrower
CordelOn, site sobre literatura de cordel, com textos e imagens de xilogravuras de cordel
Plataforma, o blog do artista Ulysses Bôscolo



quinta-feira, 18 de março de 2010

Um Homem Só

Tom Ford (ele mesmo, o famoso estilista) vai dirigir um filme, leio em algum lugar, e o que logo imagino é uma linda casca vazia, uma estética rasa e superficial,  um 9½ Semanas de Amor gay. Lendo mais sobre o projeto, descubro que ele se cercou bem, adaptou (ele mesmo, como co-roteirista) um clássico de Christopher Isherwood, A Single Man, que trata não de relações superficiais entre barbies ou modetes, e sim da solidão profunda de um homem, tanto faz se gay ou straight, ao perder seu cônjuge de 16 anos. Bom, então ele vai estragar o livro maravilhoso do Christopher Isherwood, era a minha aposta.
OK, perdi a aposta.
A Single Man do Tom Ford, guardadas as diferenças de linguagem entre um livro e sua versão cinematográfica, não deixa a desejar ao A Single Man do Christopher Isherwood.
Pelo contrário, é um filme sensivel, profundo, que trata de personagem em depressão sem ser depressivo; que disseca a riqueza de pensamentos de um homem impotente frente a finitude, frente a morte; que a deseja, a morte, o fim; que quer comandar sua morte, mas que percebe que só ela comanda, só a morte diz ao homem quando é o seu momento. E que o ser humano, nadando e afundando neste mar revolto e traiçoeiro que é a vida, depende apenas da "bondade de estranhos" para ir além quando suas forças se esvairem.
Esteticamente, o filme é perfeito. As interpretacoes de Colin Firth e Julianne Moore, bem como dos demais atores, é sóbria, requintada, como o são a musica (intensa sem ser melosa) e a fotografia (as variações de cor, do sépia quase sem cor que se torna em cores quentes apenas nos flash-backs ou nos momentos de mais vida do personagem); os cenários (a casa do personagem, em vidro e madeira, é o numero um de minha wish list, seu Mercedes vintage é maravilhoso) e, como não podia deixar de ser, os figurinos, impecáveis.

E o que é melhor, eu acho, é que ver o filme é uma força para reler (e para quem não leu, ler pela primeira vez) o livro A Single Man. Um livro fininho, minha edição de 1985 tem 161 páginas.
Mergulhar de novo, depois de quase 30 anos, neste texto sensível e inteligente, witty, é um prazer.
O livro, escrito em 1964, descreve uma ação passada dois anos antes, em plena crise dos mísseis com Cuba, uma época que foi um turning point na sociedade e na cultura norte-americana e ocidental. O status dominante: a Guerra Fria, a continuidade dos anos 1950 com sua caretice, uma inocência (que logo será perdida com a morte de Kennedy), a invisibilidade dos gays, as mulheres ainda submissas. Por outro lado, nas Universidades (e o personagem, George Falconer, é professor em uma Universidade na California) começa a surgir a contra-cultura, a oposição à guerra do Vietnam, as feministas queimando soutiens, o movimento hippie, as drogas; a caretice dos suburbios americanos nunca mais seria a mesma. No início da década, a disseminação da pílula anticoncepcional modifica as relações entre mulheres e homens. E no final da década, Stonewall inicia o movimento gay, e marca o fim da invisibilidade, as portas dos closet são abertas.
Sobre este pano de fundo, um dia na vida do professor George Falconer, que perdeu, há 8 meses, seu companheiro de 16 anos, Jim, morto em um acidente de carro; a invisibilidade dos gays na época faz com que George não possa nem ir ao seu enterro, reservado para a família; e para os vizinhos a ausência de Jim é explicada por George como uma simples mudança de cidade. Só, George decide morrer, e seu dia se passa entre os preparativos secretos e as tarefas normais: dirigir por auto-estradas para a Universidade, dar aula... No entorno, a caretice: vizinhos, professores, alunos... Uma aula sobre Aldous Huxley e George se empolga, fala mais do que gostaria, mas talvez os alunos nem consigam entender o que foi dito. No final do dia, um banho de mar noturno com um jovem aluno, encontrado casualmente em um bar. Tudo escrito em uma prosa fluente, inteligente, irônica, agradável de ler e com frases inesquecíveis:
(sobre os vizinhos de George:) "Mas têm muito medo. De que têm medo? Têm medo do que sabem que está em alguma parte na escuridão em torno, do que pode a qualquer momento emergir à inegável luz de flashes de suas máquinas fotográficas, para nunca mais ser ignorado ou minimizado com racionalizações. O demônio que não se encaixará em suas estatísticas, a górgone que lhes recusa a cirurgia plástica, o vampiro que bebe sangue com ruídos incivilizados e grosseiros, a besta fedorenta que não usa seus desodorantes, o indizível que insiste, apesar de todos os psius deles, em dizer o próprio nome."

A Single Man tem uma "presença ausente", a de Don Bachardy. Nos créditos do filme, ele, hoje com 75 anos, aparece como consultor. E o livro foi escrito por Christopher Isherwood com componentes auto-biográficos, não sobre uma perda real, mas sobre o temor de uma perda: o escritor pensou como seria sua vida sem Don, e a partir daí escreveu esta elegia sobre a perda de seu companheiro.

Christopher e Don se conheceram no Valentine's Day de 1953, quando o escritor tinha 48 anos e Don era um jovem de 18 anos, embora o próprio Don recentemente tenha declarado, em entrevista para o filme Don & Chris, que à época tinha 16 anos.
O escritor ingles, de origens aristocráticas, já era consagrado e estava radicado na California desde 1939; já o jovem americano tinha origem na classe média baixa, e parecia bem mais novo; os amigos intelectuais de Christopher ignoravam o rapaz; mas, com o incentivo do escritor, Don dedicou-se ao desenho e pintura, se mostrando bastante talentoso e se firmando como retratista. Apesar das diferenças culturais, de idade e de meio social, Christopher e Don ficaram juntos até a morte do escritor, em 1986. David Hockney retratou o casal em uma linda pintura, com 212x304cm, em 1986.
Ao imaginar a perda de Don, Christopher escreveu sua obra-prima; se fosse possível prever o futuro e visualizar os longos anos em que ainda estariam juntos, talvez as palavras, se escritas, não tivessem tanta dor, uma dor de quem efetivamente viveu uma perda irreversível: "Vamos supor que os mortos realmente revisitem os vivos. Que alguma coisa que possa mais ou menos ser descrita como Jim seja capaz de voltar para ver como anda George. Seria isso sequer satisfatório? Valeria mesmo à pena? Na melhor das hipóteses, será que não seria, obviamente, como a rápida visita de um observador de outro país com permissão para entremostrar-se dos vastos campos de sua liberdade, e ver, a distância, através da ampulheta, este vulto que se senta, isolado, à mesinha do cômodo apertado, comendo humilde e melancolicamente seus ovos escaldados, um prisioneiro da vida?"
Através da arte, da literatura, podemos viver um pouco deste amor entre Christopher e Don, e nos identificarmos com ele a partir de nossas perdas, reais ou temidas. E através da arte, do cinema, este amor situado em um tempo tão próximo e ao mesmo tempo tão diferente de nós, pode ser sentido e finalmente perder sua invisibilidade. Hoje, quero crer que George estaria no enterro de Jim, chorando, sem precisar esconder sua dor.


Ainda:
Sim, o nome do filme no Brasil é Direito de Amar, mesmo nome de uma novela da Globo
Mais sobre Tom Ford, na Wikipedia
A casa do pesonagem é o máximo, em vidro e madeira, clique aqui para ver fotos e mais informações
Clique aqui para ver o trailler do filme Don e Chris
Clique aqui para ver o trailler do flme Cabaret, dirigido por Bob Fosse, baseado em livro do Christopher Isherwood

segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre a Linha Vermelha e a Amarela, no escuro e debaixo d'água

Visita ao ateliê da pintora Lucia Laguna, situado "entre a Linha Vermelha e a Linha Amarela": título de uma série de pinturas da artista, referência aos viadutos e elevados que marcam a paisagem da Zona Norte do Rio.
O céu do domingo de sol se enche de nuvens pesadas à medida em que a tarde cai; o motorista do táxi  fala pelo rádio com seus colegas e combinam parar de trabalhar cedo, fugir do temporal que certamente virá. Passando pelo Maracanã, a paisagem brilha com a alegria e as camisas dos torcedores que chegam para o jogo; mas em seguida cai a chuva, forte; uma brisa alivia o calor; a rua, em um condomínio, é arborizada e quase que só com casas; o portão esconde um jardim cheio de plantas, uma vegetação que se fecha no alto como uma espécie de tunel de verde, que leva a um terraço muito agradável. Mal chegamos, a chuva aumenta, em pancadas, o céu desaba. E suculentas carambolas do jardim são sacrificadas em prol de caipirinhas deliciosas.
Nos primeiros momentos da conversa e das caipirinhas, a luz se apaga. Lucia tem lâmpadas de emergência, que usamos em toda a visita como a espada de um Darth Vader do bem.

Uma visita a um ateliê de pintura em uma noite sem luz é um delicioso contra-senso, mas vamos em frente. Caipirinhas, conversas. As notícias do Rio lá fora são desanimadoras: um rio mesmo, as águas de março e os bueiros que a Prefeitura não desentope, os táxis que desaparecem, a Light que tira do gancho o telefone para reclamações. Pela janela do ateliê vemos o trânsito parado nas Linhas Vermelha e Amarela, o morro da Mangueira totalmente iluminado e raios que caem ao longe.
Olhamos, sob a iluminação das espadas de Dart Vader, os quadros nos quais Lucia está trabalhando, já direcionados: SP-arte, Basel... E a artista nos fala e nos mostra albuns com fotos de seu processo de trabalho, esclarece nossas dúvidas, mostra imagens de pinturas, um livro sobre Paolo Ucello...
O processo de trabalho de Lucia é muito interessante. Ela parte de fotos, imagens de revistas..., que seleciona a partir de um critério subjetivo, imagens que lhe "dizem" algo, como potencial para seu trabalho. Estas imagens são trabalhadas pelos assistentes da artista, já em tela, utilizando tinta acrílica: é a base da pintura; em interação entre Lucia e o assistente, a imagem é modificada, muitas vezes é invertida ou a tela passa por uma rotação, fica "de cabeça para baixo", enfim, aos poucos se afasta da imagem original.
Até que se encerra o trabalho do assistente e a tela passa a ser trabalhada, já com tinta a óleo, exclusivamente pela Lucia. Cria novos elementos, destrói outros, recobre grandes áreas, mascara trechos e linhas com fita crepe que, descoladas, revelam camadas anteriores. Áreas que não funcionam, já em óleo, são recobertas com gesso cré e pigmento, o mesmo material da preparação inicial da tela; e são retrabalhadas. O contraste entre o fosco do gesso cré e o brilho do óleo é aproveitado, e é interessante; assim como pequenos toques de tinta dourada, que parecm ocre mas que subitamente brilham.
O trabalho incorpora partes da estrutura original (da imagem que serviu de "inspiração" e do trabalho do assistente) mas a cada etapa adquire uma estrutura nova, própria; ele vive a partir das camadas anteriores, dos erros e dos acertos anteriores; como um palimpsesto; como nós, humanos. Uma vida em evolução, até que um momento a artista vê e sente: está pronto.
A chuva volta a cair, mais forte; não se consegue um táxi; Lucia abre um vinho, e continuamos a conversa.
Lucia fala também de seu processo como artista, mostra trabalhos antigos; fala das viagens para ver pintura, dos grupos de estudo para discutir pintura; fala de si como uma pessoa agregadora, que gosta de trabalhar com outras pessoas e que se valeu desta característica para se unir em grupos que discutiam pintura, isso no início dos anos 1990 quando, mais uma vez, a pintura parecia morta; poucos artistas novos queriam saber de pintura em frente aos novos meios; fala da importancia de, ainda hoje, continuar estas discussões, conhecer trabalhos novos, e com isso reavaliar sempre seu trabalho, de resistir às pressões do mercado que empurram no sentido do fácil, da repetição...

Toca o telefone, conseguiram um táxi, já estamos aqui há 6 horas, amanhã começa outra semana de compromissos... durante a noite tentei desesperadamente mandar uma foto pelo celular para o Facebook, talvez como uma forma de contato com a realidade lá fora ou como um náufrago que manda mensagens em garrafas de 3G; ao chegar em casa descubro que a foto "chegou", repetidas vezes, apesar das mensagens de erro; apenas um pálido registro, uma foto escura, com pouca definição.
A noite toda estivemos debaixo de um dilúvio, ilhados, no escuro. Mas a clareza do pensamento de Lucia Laguna, sua força interior, a beleza e a qualidade de seu trabalho, fizeram com que o ateliê se transformasse, para nós, em um lugar mágico, iluminado. Uma lembrança que certamente ficará, com muito mais força e nitidez do que a foto escura e indefinida.

Participaram da visita ao ateliê os artistas Virgínia Paiva e Manoel Novello, além deste escriba que acha que caipirinha de carambola é algo muito próximo ao néctar do Olimpo.

Lucia Laguna, currículo e imagens no site da Galeria Laura Marsiaj

Clique aqui para ver o comentário que fiz no blog sobre a exposição da Lucia em 2009 na Galeria Laura Marsiaj

quarta-feira, 10 de março de 2010

Trabalhando em desenho

Em fevereiro fiz um workshop no Parque Lage, com a artista e professora Malu Fatorelli, cujo foco era trabalhar em auto-retratos utilizando desenho como ferramenta.
Há algum tempo eu não desenhava; usando desenho para anotações (principalmente nos inúmeros Moleskines) ou como esboço ou "aquecimento" para pinturas; mas o workshop - e as limitações de espaço pelas quais estou passando antes de me acomodar direito em ateliê no Rio - me levaram a trabalhar intensamente em desenho, neste início de março.
Os temas são os que frequentam minhas pinturas: as vanitas, os auto-retratos, os losangos que já foram colunas do Palácio da Alvorada e que agora são naipes de ouros... e o resultado, e o espírito, dos desenhos tem muito das pinturas, mas sinto que eles tem existência autônoma, e que vou continuar com estas séries.

Coloco aqui alguns deles, a série toda está no Facebook (clique aqui para ver a série toda) e no Flickr.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Eduardo Kac, uma tecnologia do corpo

Ultimos dias para visitar as exposições de Eduardo Kac, na Galeria Laura Marsiaj e no Oi Futuro Flamengo. Se no espaço do Oi Futuro o artista mostra trabalhos atuais, mesclando arte e tecnologia, na Laura Marsiaj a opção foi a de mostrar "como isto tudo começou", os trabalhos do artista nos anos 1980, onde a ênfase era a de uma arte contestadora, desafiadora em relação ao fechamento político e à repressão sexual, uma arte libertária. Uma exposição complementa a outra.
Os trabalhos ligados à tecnologia tem tido uma visibilidade grande, muitas vezes tratados pela midia de forma superficial, principalmente a partir de Alba, o coelho feito verde-neon a partir de uma mutação genética comandada pelo artista. Mas ver a foto do artista, ele mesmo, nu, no alto de um prédio em plena Copacabana, com visão de milhares de janelas (inclusive de uma igreja e de um batalhão da PM), em plena ditadura militar, é ver que seu trabalho vai além, muito além, de gadgets.
As fotos (Pornogramas) e os videos dos anos 1980 mostram muito bem isto. Poético, performático: o artista declama versos na praia de Ipanema. Política do corpo: o artista declama versos, completamente nu. Libertário: após declamar suas poesias, o artista e dezenas de frequentadores da praia saem, nus, em uma passeata. Os videos registram em preto e branco, som direto, e vê-los, hoje, em 2010 é pensar: onde está aquela revolução do corpo que a nossa geração achou que tinha feito? foi acabar nesta atualidade de neo-conservadorismo e vulgaridade? onde foi parar o Reich que lemos e praticamos? a midia absorveu e vomita para as massas, resumido em um edredon do Big Brother. Mas ver os videos também é lembrar que estes momentos existiram, são reais, são arte.
E ver os videos e as fotos nos mostram que continua tudo lá, no trabalho atual do Eduardo Kac. Um trabalho atual, tecnológico, parte dele que está no Oi Futuro, em Biotopos, Lagoglifos e Obras Transgênicas.

Conceitos: “Biotopos” são obras vivas que evoluem e se modificam, de acordo com as condições ambientais. “Lagoglifos” são obras produzidas através de uma forma de escrita visual, que o artista define como “coelhográfica”. E as "obras transgênicas" tem como meio de criação literalmente a biotecnologia, é o caso das “Edúnias”, mistura da flor petúnia com material genético do próprio artista, ou seja, Kac aplicou o DNA extraído de seu sangue à flor, criando um novo ser, ou, em termos artísticos, uma espécie de autorretrato.

Está tudo lá: uma postura libertária, que se apropria dos termos e precessos da Ciência para subvertê-la; não é uma arte que se utiliza da tecologia "para brilhar" e sim "para desafiá-la", como as poesias gritadas na praia, que desafiavam o regime militar mas também iam contra a esquerda careta. O corpo, visto como instrumento de política, de modificação existencial e social, é o mesmo corpo que (em sua mais completa essência, o DNA) "humaniza" a flor. Uma criação poética e revolucionária; que extrai poesia das coisas simples, transfigurando-as: um coelho, uma flor com o DNA humano; o que aparentemente é um quadro abstrato e que se revela feito de microorganismos vivos e totalmente sensível às mudanças do ambiente; e que desafia o espectador que pretende "fruí-lo" como arte: este "quadro", esta pintura, é um ser vivo, tão vivo quanto o espectador, e que, nas perfeitas condições de temperatura e alimentação, poderá mesmo sobreviver a ele.
Um trabalho cheio de significados, com coerência dentro de sua evolução, com soluções visualmente bonitas e com conceitos bem resolvidos, e acima de tudo, extremamente poético. Uma tecnologia que está ancorada no corpo, no humano, na arte; e que através da poesia alcança infinitos.

Veja também:
Site do Eduardo Kac

Boa entrevista do Eduardo Kac, originalmente publicada em Art.Es (Espanha)
Fotos da  abertura das exposições estão no site Só Arte Contemporânea

segunda-feira, 1 de março de 2010

Carnaval de Antigamente

Carnaval bom era o de antigamente, penso; só penso, não falo nem comigo mesma, se me ouvem vão dizer que a velha está com Alzheimer e me internam. Mas é verdade, tenho fotos em algum lugar, se os pestinhas dos meus bisnetos não destruíram.
O Rio naquele tempo era outro, bem diferente de hoje em dia. Paisagem linda, praia limpa, pouca violência. Eu saía com minhas amigas para a praia, um barzinho, meus pais dormiam tranquilos, não tinha perigo nenhum. Anos depois, minha filha nervosa sem saber o que podia acontecer quando meus netos saiam, com os meus bisnetos pior ainda, hoje os pestinhas nunca saem do Condomínio, nem conhecem direito o Rio.
E o Carnaval era assim, três dias de folia e brincadeira, eu e minhas amigas, fantasias produzidas, os rapazes abordavam mas a gente só queria saber de se divertir, pular e dançar, beber um pouquinho, claro, mas nada excessivo.
Não posso nem falar, contar coisas do Rio antigo, os netos vão achar que estou mentindo. Minha filha não, ela ainda viveu um pouco deste tempo bom. Colocava uma fantasia nela e íamos, eu, meu marido e ela, ver o Carnaval de rua, os blocos, ela morria de medo das máscaras, meu marido me abraçava e dizia “lembra que a gente se conheceu no Carnaval?” como eu ia esquecer, não esqueço nunca aquele Carnaval.
Nem mesmo depois que ele foi morto pelo governo eu deixei de levar minha filha para ver os blocos, saudade louca dele, ainda sinto, sempre vou sentir, basta fechar os olhos e vejo.
Hoje não tem mais aquela pureza, aquela alegria autêntica, é tudo falso e artificial. Vejo, ouço meus netos falarem, tenho medo de sair nestes dias de Carnaval, a cidade fica entregue, o jornal só fala em mortes e conflitos. Ouço o barulho na rua e não tenho coragem nem de ir até a janela, quanto mais até a rua.
O barulho da rua está maior, deve ser um bloco enorme cercando o prédio. Os gritos me apavoram. Mas não quero deixar este bairro por nada, nasci aqui, conheci meu marido neste bloco, prefiro morrer aqui do que me enterrar nestes Condomínios distantes. Depois que meus netos levaram minha filha para morar com eles eu sei que ela está morrendo aos poucos, quem mandou vender o apartamento quando meu genro morreu e dividir o dinheiro com eles? Isso eu não fiz, a única maneira de me tirarem daqui é dizendo que eu estou com Alzheimer, por isso não falo nem baixinho que Carnaval bom era o de antigamente...
...como o Carnaval em que conheci meu marido, me lembro perfeitamente, os detalhes, até a data. Nós já nos víamos na praia, mas eu era muito novinha, gostava de esportes, de correr, e ele era metido a intelectual, sempre lendo ou escrevendo, mesmo na praia. No domingo antes do Carnaval ele me ofereceu um chopp, fiquei nervosa e não aceitei. Na semana seguinte, no bloco, aceitei o chopp, ficamos conversando, minhas amigas acharam ele feio e bobo mas ele era tão engraçado e carinhoso que ficamos juntos o Carnaval inteiro, depois noivamos, casamos quando ele terminou a faculdade de Letras, tudo no devido tempo... Não esqueço mesmo aquele Carnaval, o Monobloco, o ano é fácil de lembrar, foi o ano em que o tempo mudou de vez, verão quente que não acabava, o gelo derreteu e o mar subiu, de repente, o Rio invadido pela água, dizem que ficou mais bonito ainda, eu não acho. Fácil lembrar, eu tinha 18 anos em 2010, hoje tenho quase 100 mas vou resistir, mesmo que não possa dividir com ninguém minhas lembranças ou que os pestinhas tenham deletado todas as minhas fotos.




Escrevi o texto acima como um dos exercícios para um Workshop, Oficina de Crônica, com o Prof.Felipe Pena, que fiz recentemente, na Estação das Letras
Clique aqui para ler o texto com os comentários dos demais participantes do Wokshop
Clique aqui para o blog onde estão todos os textos do Workshop
O tema deste segundo exercício foi Carnaval, e tentar um texto mais perene para um evento tão perene. Fiz um link com a crônica anterior, que só se revela no final, e continuou a polêmica que o primeiro texto causou entre os participantes do Workshop, mesmo eu tendo usado personagem decididamente não-autobiográfico (como aliás é o personagem da crônica anterior)