segunda-feira, 15 de março de 2010

Entre a Linha Vermelha e a Amarela, no escuro e debaixo d'água

Visita ao ateliê da pintora Lucia Laguna, situado "entre a Linha Vermelha e a Linha Amarela": título de uma série de pinturas da artista, referência aos viadutos e elevados que marcam a paisagem da Zona Norte do Rio.
O céu do domingo de sol se enche de nuvens pesadas à medida em que a tarde cai; o motorista do táxi  fala pelo rádio com seus colegas e combinam parar de trabalhar cedo, fugir do temporal que certamente virá. Passando pelo Maracanã, a paisagem brilha com a alegria e as camisas dos torcedores que chegam para o jogo; mas em seguida cai a chuva, forte; uma brisa alivia o calor; a rua, em um condomínio, é arborizada e quase que só com casas; o portão esconde um jardim cheio de plantas, uma vegetação que se fecha no alto como uma espécie de tunel de verde, que leva a um terraço muito agradável. Mal chegamos, a chuva aumenta, em pancadas, o céu desaba. E suculentas carambolas do jardim são sacrificadas em prol de caipirinhas deliciosas.
Nos primeiros momentos da conversa e das caipirinhas, a luz se apaga. Lucia tem lâmpadas de emergência, que usamos em toda a visita como a espada de um Darth Vader do bem.

Uma visita a um ateliê de pintura em uma noite sem luz é um delicioso contra-senso, mas vamos em frente. Caipirinhas, conversas. As notícias do Rio lá fora são desanimadoras: um rio mesmo, as águas de março e os bueiros que a Prefeitura não desentope, os táxis que desaparecem, a Light que tira do gancho o telefone para reclamações. Pela janela do ateliê vemos o trânsito parado nas Linhas Vermelha e Amarela, o morro da Mangueira totalmente iluminado e raios que caem ao longe.
Olhamos, sob a iluminação das espadas de Dart Vader, os quadros nos quais Lucia está trabalhando, já direcionados: SP-arte, Basel... E a artista nos fala e nos mostra albuns com fotos de seu processo de trabalho, esclarece nossas dúvidas, mostra imagens de pinturas, um livro sobre Paolo Ucello...
O processo de trabalho de Lucia é muito interessante. Ela parte de fotos, imagens de revistas..., que seleciona a partir de um critério subjetivo, imagens que lhe "dizem" algo, como potencial para seu trabalho. Estas imagens são trabalhadas pelos assistentes da artista, já em tela, utilizando tinta acrílica: é a base da pintura; em interação entre Lucia e o assistente, a imagem é modificada, muitas vezes é invertida ou a tela passa por uma rotação, fica "de cabeça para baixo", enfim, aos poucos se afasta da imagem original.
Até que se encerra o trabalho do assistente e a tela passa a ser trabalhada, já com tinta a óleo, exclusivamente pela Lucia. Cria novos elementos, destrói outros, recobre grandes áreas, mascara trechos e linhas com fita crepe que, descoladas, revelam camadas anteriores. Áreas que não funcionam, já em óleo, são recobertas com gesso cré e pigmento, o mesmo material da preparação inicial da tela; e são retrabalhadas. O contraste entre o fosco do gesso cré e o brilho do óleo é aproveitado, e é interessante; assim como pequenos toques de tinta dourada, que parecm ocre mas que subitamente brilham.
O trabalho incorpora partes da estrutura original (da imagem que serviu de "inspiração" e do trabalho do assistente) mas a cada etapa adquire uma estrutura nova, própria; ele vive a partir das camadas anteriores, dos erros e dos acertos anteriores; como um palimpsesto; como nós, humanos. Uma vida em evolução, até que um momento a artista vê e sente: está pronto.
A chuva volta a cair, mais forte; não se consegue um táxi; Lucia abre um vinho, e continuamos a conversa.
Lucia fala também de seu processo como artista, mostra trabalhos antigos; fala das viagens para ver pintura, dos grupos de estudo para discutir pintura; fala de si como uma pessoa agregadora, que gosta de trabalhar com outras pessoas e que se valeu desta característica para se unir em grupos que discutiam pintura, isso no início dos anos 1990 quando, mais uma vez, a pintura parecia morta; poucos artistas novos queriam saber de pintura em frente aos novos meios; fala da importancia de, ainda hoje, continuar estas discussões, conhecer trabalhos novos, e com isso reavaliar sempre seu trabalho, de resistir às pressões do mercado que empurram no sentido do fácil, da repetição...

Toca o telefone, conseguiram um táxi, já estamos aqui há 6 horas, amanhã começa outra semana de compromissos... durante a noite tentei desesperadamente mandar uma foto pelo celular para o Facebook, talvez como uma forma de contato com a realidade lá fora ou como um náufrago que manda mensagens em garrafas de 3G; ao chegar em casa descubro que a foto "chegou", repetidas vezes, apesar das mensagens de erro; apenas um pálido registro, uma foto escura, com pouca definição.
A noite toda estivemos debaixo de um dilúvio, ilhados, no escuro. Mas a clareza do pensamento de Lucia Laguna, sua força interior, a beleza e a qualidade de seu trabalho, fizeram com que o ateliê se transformasse, para nós, em um lugar mágico, iluminado. Uma lembrança que certamente ficará, com muito mais força e nitidez do que a foto escura e indefinida.

Participaram da visita ao ateliê os artistas Virgínia Paiva e Manoel Novello, além deste escriba que acha que caipirinha de carambola é algo muito próximo ao néctar do Olimpo.

Lucia Laguna, currículo e imagens no site da Galeria Laura Marsiaj

Clique aqui para ver o comentário que fiz no blog sobre a exposição da Lucia em 2009 na Galeria Laura Marsiaj

4 comentários:

Anônimo disse...

essas preciosas seis horas foram uma das maiores e mais belas experiências que tive nos últimos tempos. se não havia luz, o que iluminou essa visita foram a integridade, a seriedade e a inteligência da artista e um trabalho que mostra porque a boa obra de arte deve- e merece - ser saboreada com vagar.
virginia

Anônimo disse...

Visita divertidíssima à luz de leds!Agradeço ao Jozias pelos comentarios e competência do texto!Obrigada,amigos!Que triste teria sido aquela noite escura sem vocês! Lucia Laguna

Manoel Novello disse...

Grande Jozias, adorei esse registro de uma noite memorável.
Grato pelo momento feliz dessa leitura.
Faço minha as palavras da Vivi.
Um presente para a alma.

Anônimo disse...

Jozias prezado: Eu me intitulo fã número 1 da Lúcia. Ainda, que não fosse essa grande pintora, suas qualidades pessoais são extraordináris. Você escreveu um texto adorável. Um ponto a mais na qualidade do seu blog. Abraço carinhoso. Marcio Fonseca