segunda-feira, 1 de março de 2010

Carnaval de Antigamente

Carnaval bom era o de antigamente, penso; só penso, não falo nem comigo mesma, se me ouvem vão dizer que a velha está com Alzheimer e me internam. Mas é verdade, tenho fotos em algum lugar, se os pestinhas dos meus bisnetos não destruíram.
O Rio naquele tempo era outro, bem diferente de hoje em dia. Paisagem linda, praia limpa, pouca violência. Eu saía com minhas amigas para a praia, um barzinho, meus pais dormiam tranquilos, não tinha perigo nenhum. Anos depois, minha filha nervosa sem saber o que podia acontecer quando meus netos saiam, com os meus bisnetos pior ainda, hoje os pestinhas nunca saem do Condomínio, nem conhecem direito o Rio.
E o Carnaval era assim, três dias de folia e brincadeira, eu e minhas amigas, fantasias produzidas, os rapazes abordavam mas a gente só queria saber de se divertir, pular e dançar, beber um pouquinho, claro, mas nada excessivo.
Não posso nem falar, contar coisas do Rio antigo, os netos vão achar que estou mentindo. Minha filha não, ela ainda viveu um pouco deste tempo bom. Colocava uma fantasia nela e íamos, eu, meu marido e ela, ver o Carnaval de rua, os blocos, ela morria de medo das máscaras, meu marido me abraçava e dizia “lembra que a gente se conheceu no Carnaval?” como eu ia esquecer, não esqueço nunca aquele Carnaval.
Nem mesmo depois que ele foi morto pelo governo eu deixei de levar minha filha para ver os blocos, saudade louca dele, ainda sinto, sempre vou sentir, basta fechar os olhos e vejo.
Hoje não tem mais aquela pureza, aquela alegria autêntica, é tudo falso e artificial. Vejo, ouço meus netos falarem, tenho medo de sair nestes dias de Carnaval, a cidade fica entregue, o jornal só fala em mortes e conflitos. Ouço o barulho na rua e não tenho coragem nem de ir até a janela, quanto mais até a rua.
O barulho da rua está maior, deve ser um bloco enorme cercando o prédio. Os gritos me apavoram. Mas não quero deixar este bairro por nada, nasci aqui, conheci meu marido neste bloco, prefiro morrer aqui do que me enterrar nestes Condomínios distantes. Depois que meus netos levaram minha filha para morar com eles eu sei que ela está morrendo aos poucos, quem mandou vender o apartamento quando meu genro morreu e dividir o dinheiro com eles? Isso eu não fiz, a única maneira de me tirarem daqui é dizendo que eu estou com Alzheimer, por isso não falo nem baixinho que Carnaval bom era o de antigamente...
...como o Carnaval em que conheci meu marido, me lembro perfeitamente, os detalhes, até a data. Nós já nos víamos na praia, mas eu era muito novinha, gostava de esportes, de correr, e ele era metido a intelectual, sempre lendo ou escrevendo, mesmo na praia. No domingo antes do Carnaval ele me ofereceu um chopp, fiquei nervosa e não aceitei. Na semana seguinte, no bloco, aceitei o chopp, ficamos conversando, minhas amigas acharam ele feio e bobo mas ele era tão engraçado e carinhoso que ficamos juntos o Carnaval inteiro, depois noivamos, casamos quando ele terminou a faculdade de Letras, tudo no devido tempo... Não esqueço mesmo aquele Carnaval, o Monobloco, o ano é fácil de lembrar, foi o ano em que o tempo mudou de vez, verão quente que não acabava, o gelo derreteu e o mar subiu, de repente, o Rio invadido pela água, dizem que ficou mais bonito ainda, eu não acho. Fácil lembrar, eu tinha 18 anos em 2010, hoje tenho quase 100 mas vou resistir, mesmo que não possa dividir com ninguém minhas lembranças ou que os pestinhas tenham deletado todas as minhas fotos.




Escrevi o texto acima como um dos exercícios para um Workshop, Oficina de Crônica, com o Prof.Felipe Pena, que fiz recentemente, na Estação das Letras
Clique aqui para ler o texto com os comentários dos demais participantes do Wokshop
Clique aqui para o blog onde estão todos os textos do Workshop
O tema deste segundo exercício foi Carnaval, e tentar um texto mais perene para um evento tão perene. Fiz um link com a crônica anterior, que só se revela no final, e continuou a polêmica que o primeiro texto causou entre os participantes do Workshop, mesmo eu tendo usado personagem decididamente não-autobiográfico (como aliás é o personagem da crônica anterior)

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