quinta-feira, 18 de março de 2010

Um Homem Só

Tom Ford (ele mesmo, o famoso estilista) vai dirigir um filme, leio em algum lugar, e o que logo imagino é uma linda casca vazia, uma estética rasa e superficial,  um 9½ Semanas de Amor gay. Lendo mais sobre o projeto, descubro que ele se cercou bem, adaptou (ele mesmo, como co-roteirista) um clássico de Christopher Isherwood, A Single Man, que trata não de relações superficiais entre barbies ou modetes, e sim da solidão profunda de um homem, tanto faz se gay ou straight, ao perder seu cônjuge de 16 anos. Bom, então ele vai estragar o livro maravilhoso do Christopher Isherwood, era a minha aposta.
OK, perdi a aposta.
A Single Man do Tom Ford, guardadas as diferenças de linguagem entre um livro e sua versão cinematográfica, não deixa a desejar ao A Single Man do Christopher Isherwood.
Pelo contrário, é um filme sensivel, profundo, que trata de personagem em depressão sem ser depressivo; que disseca a riqueza de pensamentos de um homem impotente frente a finitude, frente a morte; que a deseja, a morte, o fim; que quer comandar sua morte, mas que percebe que só ela comanda, só a morte diz ao homem quando é o seu momento. E que o ser humano, nadando e afundando neste mar revolto e traiçoeiro que é a vida, depende apenas da "bondade de estranhos" para ir além quando suas forças se esvairem.
Esteticamente, o filme é perfeito. As interpretacoes de Colin Firth e Julianne Moore, bem como dos demais atores, é sóbria, requintada, como o são a musica (intensa sem ser melosa) e a fotografia (as variações de cor, do sépia quase sem cor que se torna em cores quentes apenas nos flash-backs ou nos momentos de mais vida do personagem); os cenários (a casa do personagem, em vidro e madeira, é o numero um de minha wish list, seu Mercedes vintage é maravilhoso) e, como não podia deixar de ser, os figurinos, impecáveis.

E o que é melhor, eu acho, é que ver o filme é uma força para reler (e para quem não leu, ler pela primeira vez) o livro A Single Man. Um livro fininho, minha edição de 1985 tem 161 páginas.
Mergulhar de novo, depois de quase 30 anos, neste texto sensível e inteligente, witty, é um prazer.
O livro, escrito em 1964, descreve uma ação passada dois anos antes, em plena crise dos mísseis com Cuba, uma época que foi um turning point na sociedade e na cultura norte-americana e ocidental. O status dominante: a Guerra Fria, a continuidade dos anos 1950 com sua caretice, uma inocência (que logo será perdida com a morte de Kennedy), a invisibilidade dos gays, as mulheres ainda submissas. Por outro lado, nas Universidades (e o personagem, George Falconer, é professor em uma Universidade na California) começa a surgir a contra-cultura, a oposição à guerra do Vietnam, as feministas queimando soutiens, o movimento hippie, as drogas; a caretice dos suburbios americanos nunca mais seria a mesma. No início da década, a disseminação da pílula anticoncepcional modifica as relações entre mulheres e homens. E no final da década, Stonewall inicia o movimento gay, e marca o fim da invisibilidade, as portas dos closet são abertas.
Sobre este pano de fundo, um dia na vida do professor George Falconer, que perdeu, há 8 meses, seu companheiro de 16 anos, Jim, morto em um acidente de carro; a invisibilidade dos gays na época faz com que George não possa nem ir ao seu enterro, reservado para a família; e para os vizinhos a ausência de Jim é explicada por George como uma simples mudança de cidade. Só, George decide morrer, e seu dia se passa entre os preparativos secretos e as tarefas normais: dirigir por auto-estradas para a Universidade, dar aula... No entorno, a caretice: vizinhos, professores, alunos... Uma aula sobre Aldous Huxley e George se empolga, fala mais do que gostaria, mas talvez os alunos nem consigam entender o que foi dito. No final do dia, um banho de mar noturno com um jovem aluno, encontrado casualmente em um bar. Tudo escrito em uma prosa fluente, inteligente, irônica, agradável de ler e com frases inesquecíveis:
(sobre os vizinhos de George:) "Mas têm muito medo. De que têm medo? Têm medo do que sabem que está em alguma parte na escuridão em torno, do que pode a qualquer momento emergir à inegável luz de flashes de suas máquinas fotográficas, para nunca mais ser ignorado ou minimizado com racionalizações. O demônio que não se encaixará em suas estatísticas, a górgone que lhes recusa a cirurgia plástica, o vampiro que bebe sangue com ruídos incivilizados e grosseiros, a besta fedorenta que não usa seus desodorantes, o indizível que insiste, apesar de todos os psius deles, em dizer o próprio nome."

A Single Man tem uma "presença ausente", a de Don Bachardy. Nos créditos do filme, ele, hoje com 75 anos, aparece como consultor. E o livro foi escrito por Christopher Isherwood com componentes auto-biográficos, não sobre uma perda real, mas sobre o temor de uma perda: o escritor pensou como seria sua vida sem Don, e a partir daí escreveu esta elegia sobre a perda de seu companheiro.

Christopher e Don se conheceram no Valentine's Day de 1953, quando o escritor tinha 48 anos e Don era um jovem de 18 anos, embora o próprio Don recentemente tenha declarado, em entrevista para o filme Don & Chris, que à época tinha 16 anos.
O escritor ingles, de origens aristocráticas, já era consagrado e estava radicado na California desde 1939; já o jovem americano tinha origem na classe média baixa, e parecia bem mais novo; os amigos intelectuais de Christopher ignoravam o rapaz; mas, com o incentivo do escritor, Don dedicou-se ao desenho e pintura, se mostrando bastante talentoso e se firmando como retratista. Apesar das diferenças culturais, de idade e de meio social, Christopher e Don ficaram juntos até a morte do escritor, em 1986. David Hockney retratou o casal em uma linda pintura, com 212x304cm, em 1986.
Ao imaginar a perda de Don, Christopher escreveu sua obra-prima; se fosse possível prever o futuro e visualizar os longos anos em que ainda estariam juntos, talvez as palavras, se escritas, não tivessem tanta dor, uma dor de quem efetivamente viveu uma perda irreversível: "Vamos supor que os mortos realmente revisitem os vivos. Que alguma coisa que possa mais ou menos ser descrita como Jim seja capaz de voltar para ver como anda George. Seria isso sequer satisfatório? Valeria mesmo à pena? Na melhor das hipóteses, será que não seria, obviamente, como a rápida visita de um observador de outro país com permissão para entremostrar-se dos vastos campos de sua liberdade, e ver, a distância, através da ampulheta, este vulto que se senta, isolado, à mesinha do cômodo apertado, comendo humilde e melancolicamente seus ovos escaldados, um prisioneiro da vida?"
Através da arte, da literatura, podemos viver um pouco deste amor entre Christopher e Don, e nos identificarmos com ele a partir de nossas perdas, reais ou temidas. E através da arte, do cinema, este amor situado em um tempo tão próximo e ao mesmo tempo tão diferente de nós, pode ser sentido e finalmente perder sua invisibilidade. Hoje, quero crer que George estaria no enterro de Jim, chorando, sem precisar esconder sua dor.


Ainda:
Sim, o nome do filme no Brasil é Direito de Amar, mesmo nome de uma novela da Globo
Mais sobre Tom Ford, na Wikipedia
A casa do pesonagem é o máximo, em vidro e madeira, clique aqui para ver fotos e mais informações
Clique aqui para ver o trailler do filme Don e Chris
Clique aqui para ver o trailler do flme Cabaret, dirigido por Bob Fosse, baseado em livro do Christopher Isherwood

Um comentário:

Anônimo disse...

Amei o filme do Tom Ford e seu texto sobre ele!
Linkei no meu blog, no post sobre o mesmo filme:
http://fashionkillsmemag.wordpress.com/2010/03/29/corra-e-assista-a-single-man/
Seu blog tb é muito bacana, já favoritei!
Um abraço,
Lísia Maria