(o ouro encontrado na região tinha as pepitas escurecidas por uma camada de paládio, o que lhe dava uma tonalidade escurecida, característica, diferente da cor do ouro de outros lugares).
O ônibus vem devagar, amanhece, eu estou totalmente aceso, a estrada é cheia de curvas, subidas, descidas; em uma curva do caminho se abre inesperada a paisagem, um panorama entremeado de névoa, neblinas, um sol insistindo em nascer, as montanhas que se sucedem em planos irregulares. Nos planos: palmeiras, igrejas, casas com telhas moldadas nas coxas dos escravos, rios, córregos, matas. E acima de tudo o céu onde provavelmente moram anjos e santos barrocos. Guignard puro.
Desço (aqui se desce e sobe o tempo todo) até a Praça Tiradentes, já é plena manhã com sol forte e céu azul, pego um mapa da cidade para programar passeios e, no lugar onde os pedaços de Tiradentes ficaram expostos, enquanto estudo o mapa, ouço conversas como música de fundo. No mais puro sotaque de mineiro, que sempre traz uma sensação de pureza, de ingenuidade, um rapaz conta para o outro o ciúme que sentia da mulher e como ela a traiu, o assunto passa abruptamente para como ele agora está "em condicional", o interlocutor pergunta "o que é condicional", ele explica. Com a impressão de que perdi para sempre alguma informação importante (provavelmente os detalhes de como a infiel foi morta), sigo minha descoberta de Ouro Preto, Vila Rica, a Imperial Cidade de Ouro Preto.
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Mas não é só isso, à medida em que sigo e converso ou ouço conversas, percebo presenças, sinto que o Tiradentes exposto na praça continua exposto, que a paisagem está cheia de grupos de turistas mas também está cheia de fantasmas, de vultos que se intui ou se percebe apenas com a visão periférica ou com os olhos fechados.
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Há uma Vila Rica, expansiva, solar; no burburinho dos onibus escolares com turistas; nos garotos, as cuecas aparecendo sob as bermudas caídas, que tiram fotos com seus celulares e ao apito dos professores se aglomeram para ouvir as explicações sobre a história da cidade; nas famílias que fazem turismo ou festejam uma segunda lua-de-mel; nas igrejas cheias de fiéis mas mais cheias ainda de turistas que sempre querem fotografar; no movimento de estudantes que tomam café com pão de queijo no intervalo entre as aulas.
E uma outra Ouro Preto, noturna, misteriosa, feita do sangue dos garimpos e dos escravos, dos inconfidentes, dos poetas, e que aparece em lugares insuspeitos; na conversa ao meu lado na praça; nos calouros que circulam pelas ruas com cartazes pendurados em seus corpos indicando sua situação (como os escravos); nos crimes; no Tiradentes esquartejado e exposto; nos becos onde você pode se perder para sempre; nas noites onde o barulho das festas ao longe mal esconde o rumor de correntes arrastadas, de matracas da Paixão de Cristo, de novenas e Te Deums, de açoites, castigos e orgasmos.
Vila Rica começou com a Bandeira de Antônio Dias no final do século XVII, o primeiro bandeirante paulista a chegar na região, atraído pelas promessas de riqueza a partir do estranho ouro enegrecido. Um primitivo arraial se fundou no morro de São João com a celebração de uma primeira missa para um grupo pequeno, que depois se multiplicaria. O garimpo, terra de ninguém; as atividades tradicionais - agricultura, criação - são abandonadas pela busca do ouro, para que perder tempo plantando ou pastoreando quando em uma pepita se pode descobrir a riqueza instantânea?
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Horror que continuou e talvez tenha tido seu auge na Inconfidência; penas cruéis: por enforcamento, amarrado a cavalos e arrastado pelas ruas, depois esquartejado. Tiradentes, enforcado em 1792, teve seu corpo esquartejado e os destroços espalhados pelos caminhos de Minas Gerais; outros, exílio da África; o poeta Cláudio Manuel da Costa encontrado morto na prisão, oficialmente por suicídio. A cabeça de Tiradentes foi exposta em plena Vila Rica, sumiu misteriosamente e nunca mais foi encontrada.
Já no século XXI, o horror foi outro, novas tecnologias na cidade colonial, um jogo de RPG (role-playing game) com toques de magia negra teria provocado o assassinato de uma jovem, a estudante Aline Silveira Soares, que foi a um evento em Ouro Preto, a "Festa do Doze", em 11 de outubro de 2001. Com duas amigas, ficaram hospedadas em uma república; no dia 13, um túmulo do cemitério de Ouro Preto foi violado; e no dia seguinte, o corpo de Aline foi encontrado no cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia; sobre um túmulo, despida, de braços abertos e pés cruzados, e com 17 ferimentos feitos a faca. Os acusados pelo crime são três rapazes, moradores da república, e uma jovem, prima da vítima.
As repúblicas em Ouro Preto são um capítulo a parte; se espalham pela cidade, cheia de estudantes; de todos os níveis, umas ricas e tradicionais, ocupam casas maravilhosas; outras menos poderosas, improvisadas até; só de moças, só de rapazes, mistas, GLS ou homofóbicas. São muito parecidas com as fraternities e sororities das universidades americanas, tão descritas em livros (A História Secreta, de Donna Tartt, é um deles, com sua trama de cumplicidades e estudos clássicos) e filmes (um dos melhores talvez o Sociedade dos Poetas Mortos, do diretor Peter Weir, além de longas séries de terror+rir de Pânico e aparentados). Uma experiência que, no Brasil, não é onipresente como na cultura norte-americana; na Universidade em que estudei o campus era uma ficção, se resumia às conversas nos pilotis; assim para mim foi uma experiência engraçada ficar hospedado em uma república.
O ponto forte é a hospitalidade, a facilidade em se fazer amigos, a diversão sempre presente, a casa cheia todo o tempo. O que poderia ser um ponto fraco, a pouca privacidade, não cheguei a sentir; mesmo com a casa cheia há um cuidado com as individualidades. Enfim, uma boa experiência, como é interessante passear na noite na cidade e ver a movimentação nas repúblicas, o barulho de festas, a juventude. E também uma marca da cidade, de Minas, a interiorização: não há um "baixo Ouro Preto", como temos vários "baixos" no Rio, onde as pessoas vão para as ruas beber e confraternizar; as loucuras acontecem entre as paredes coloniais das repúblicas, das casas, das igrejas; sob a aparência tradicional, o desvio; sob as igrejas barrocas, o prazer, a transgressão, o êxtase.
Como no crime das irmãs Poni, em 1962; as irmãs Ethel e Edina Poni, da chamada alta sociedade de Minas Gerais, assassinaram em uma pousada em Ouro Preto, a sangue frio, a nova companheira do ex-marido de Edina, o milionário Fernando Melo Viana Filho. Uma história de amor e ódio, de traição, de dinheiro, violência e impunidade; um assassinato cometido na frente de testemunhas, em público; enquanto Ethel segurava os braços de Maria de Lourdes Dias Calmon, Edina, campeã de tiro ao alvo dos clubes tradicionais de Belo Horizonte, dispara dois tiros de seu revolver calibre 32 na nuca da vítima. As duas senhoras foram presas algumas horas depois; para recebê-las, a cadeia de Ouro Preto foi reformada; o julgamento teve a participação de juristas importantes, e o conservadorismo da sociedade mineira foi determinante para acolher a tese da defesa, de coação moral irresistível, e absorver as acusadas, culpabilizando a vítima.
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Estão todos lá, vagando, enquanto caminho pelas ladeiras, enquanto fotografo com meu celular as sombras, os azulejos e as fontes, enquanto bebemos uma cerveja Backer, enquanto vamos de república em república, os vultos nos perseguem e se escondem nos becos, os barulhos ao longe, as estrelas, o céu do Guignard.
Sim, e o Museu Casa de Guignard, uma delícia; a casa onde o artista morou, uma casa muito simpática com um gostoso quintal, muito bem conservada e adaptada para um museu simples, sem grandiosidade, cool como o artista.
Museu com pouco acervo, nem meia dúzia de telas do Guignard (mas uma lindíssima, pintura sobre madeira, grande, com cores fortes); uma cama e outros objetos pintados pela artista; e uma coleção de pequenos desenhos, cartões, bilhetes de enamorado; apenas isso; mas não faz mal, se respira Guignard em toda parte, um lugar gostoso para se ficar horas como ficamos, e se sentir também um pouco enamorado por esta Ouro Preto de Guignard. Como esta casa fosse um par de parênteses, fosse como uma capa protetora a deixar fora o lado soturno, os espíritos.
(Guignard também tem um lado negro, sabemos; depressivo, os complexos a partir dos lábios leporinos; mas sua obra dificilmente é soturna, mesmo nas cenas de noite, há uma transcendência, uma elevação, uma alegria quase ingênua. Outro artista, ligado a Ouro Preto, que transcendeu as limitações do físico foi certamente Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, cuja deformação absolutamente não deixa marca na beleza de seus anjos. O barroco, a transcendência da pérola deformada, o êxtase)
E assim deixo Ouro Preto, já fazendo planos para voltar.
Uma residência, registrando em meus moleskines os azulejos e azulejos das igrejas, quem sabe?
Ou simplesmente voltar, sem motivo, sem desculpa, pois a vida é boa e melhor ainda se se consegue rever o passado e tornar realidade algo que ficou inconcluso há tantos anos. Ou séculos.
Buscando o ouro e o encontrando.
Um comentário:
Olá,
creio que cabe ressaltar na sua descrição que os acusados pela morte de ASS foram absolvidos em julgamento pelo Tribunal do Juri, diante da falta de provas de sua autoria e da ligação de causalidade entre o crime e os jogos
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