quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Em busca do ouro

Chegar a Ouro Preto é como, de repente, estar dentro de uma paisagem de Guignard, é claro que já devem ter escrito isto antes mil vezes pois é a mais pura e óbvia verdade, não me importo, para que tentar ser original quando do alto destas montanhas tantos séculos me contemplam, tanto ouro tirado da terra, entregue aos Bragança ou contrabandeado nas trancinhas dos cabelos pixaim ou nas entranhas dos santos-do-pau-oco, tantos escravos mortos ou alforriados, em busca do ouro, do ouro preto.
(o ouro encontrado na região tinha as pepitas escurecidas por uma camada de paládio, o que lhe dava uma  tonalidade escurecida, característica, diferente da cor do ouro de outros lugares).
O ônibus vem devagar, amanhece, eu estou totalmente aceso, a estrada é cheia de curvas, subidas, descidas; em uma curva do caminho se abre inesperada a paisagem, um panorama entremeado de névoa, neblinas, um sol insistindo em nascer, as montanhas que se sucedem em planos irregulares. Nos planos: palmeiras, igrejas, casas com telhas moldadas nas coxas dos escravos, rios, córregos, matas. E acima de tudo o céu onde provavelmente moram anjos e santos barrocos. Guignard puro.
Desço (aqui se desce e sobe o tempo todo) até a Praça Tiradentes, já é plena manhã com sol forte e céu azul, pego um mapa da cidade para programar passeios e, no lugar onde os pedaços de Tiradentes ficaram expostos, enquanto estudo o mapa, ouço conversas como música de fundo. No mais puro sotaque de mineiro, que sempre traz uma sensação de pureza, de ingenuidade, um rapaz conta para o outro o ciúme que sentia da mulher e como ela a traiu, o assunto passa abruptamente para como ele agora está "em condicional", o interlocutor pergunta "o que é condicional", ele explica. Com a impressão de que perdi para sempre alguma informação importante (provavelmente os detalhes de como a infiel foi morta), sigo minha descoberta de Ouro Preto, Vila Rica, a Imperial Cidade de Ouro Preto.
Para mim, apenas um lindo dia de sol, a sensação de caminhar sobre pedras, seguir o mapa até uma igreja, ficar deslumbrado com o poder, a grandiosidade das volutas barrocas, da pedra entalhada, dos dourados, dos azulejos, dos santos com roupas e cabelos de verdade e com olhos brilhantes de vidro; descobrir que as sacristias são mais bonitas que os altares-mor; desenhar em meu moleskine detalhes, detalhes, detalhes intermináveis; seguir o caminho, pelo mapa ou pedindo informações, uma cidade turística como outra qualquer, só que sem um MacDonalds, o que é um diferencial altamente positivo.
Mas não é só isso, à medida em que sigo e converso ou ouço conversas, percebo presenças, sinto que o Tiradentes exposto na praça continua exposto, que a paisagem está cheia de grupos de turistas mas também está cheia de fantasmas, de vultos que se intui ou se percebe apenas com a visão periférica ou com os olhos fechados.
Vila Rica, o nome já nasceu com o indicativo da riqueza que foi sua glória e sua derrota: o garimpo. E a rica vila , uma serra pelada do período colonial, deve ter sido um lugar bem estranho para se viver.
Há uma Vila Rica, expansiva, solar; no burburinho dos onibus escolares com turistas; nos garotos, as cuecas aparecendo sob as bermudas caídas, que tiram fotos com seus celulares e ao apito dos professores se aglomeram para ouvir as explicações sobre a história da cidade; nas famílias que fazem turismo ou festejam uma segunda lua-de-mel; nas igrejas cheias de fiéis mas mais cheias ainda de turistas que sempre querem fotografar; no movimento de estudantes que tomam café com pão de queijo no intervalo entre as aulas.
E uma outra Ouro Preto, noturna, misteriosa, feita do sangue dos garimpos e dos escravos, dos inconfidentes, dos poetas, e que aparece em lugares insuspeitos; na conversa ao meu lado na praça; nos calouros que circulam pelas ruas com cartazes pendurados em seus corpos indicando sua situação (como os escravos); nos crimes; no Tiradentes esquartejado e exposto; nos becos onde você pode se perder para sempre; nas noites onde o barulho das festas ao longe mal esconde o rumor de correntes arrastadas, de matracas da Paixão de Cristo, de novenas e Te Deums, de açoites, castigos e orgasmos.
Vila Rica começou com a Bandeira de Antônio Dias no final do século XVII, o primeiro bandeirante paulista a chegar na região, atraído pelas promessas de riqueza a partir do estranho ouro enegrecido. Um primitivo arraial se fundou no morro de São João com a celebração de uma primeira missa para um grupo pequeno, que depois se multiplicaria. O garimpo, terra de ninguém; as atividades tradicionais - agricultura, criação - são abandonadas pela busca do ouro, para que perder tempo plantando ou pastoreando quando em uma pepita se pode descobrir a riqueza instantânea?
Assim, no início do século XVIII, a região passa pelo que se chamou de A Grande Fome. Dois forasteiros se matam a faca por uma cuia de farinha. Cheias dos rios em terríveis estações de chuvas agravaram a situação e provocam o êxodo de populações para outros arraiais, uma marcha de famintos que caíam de inanição nos caminhos do Rodeio. Fala-se que existiria até hoje um Campo das Caveiras, com centenas de mortos no esforço de subir a serra fugindo da cidade famélica. Escravos e ciganos, armados, assaltavam os vivos e saqueavam os mortos. O horror.
Horror que continuou e talvez tenha tido seu auge na Inconfidência; penas cruéis: por enforcamento, amarrado a cavalos e arrastado pelas ruas, depois esquartejado. Tiradentes, enforcado em 1792, teve seu corpo esquartejado e os destroços espalhados pelos caminhos de Minas Gerais; outros, exílio da África; o poeta Cláudio Manuel da Costa encontrado morto na prisão, oficialmente por suicídio. A cabeça de Tiradentes foi exposta em plena Vila Rica, sumiu misteriosamente e nunca mais foi encontrada.
Já no século XXI, o horror foi outro, novas tecnologias na cidade colonial, um jogo de RPG (role-playing game) com toques de magia negra teria provocado o assassinato de uma jovem,  a estudante Aline Silveira Soares, que foi a um evento em Ouro Preto, a "Festa do Doze", em 11 de outubro de 2001. Com duas amigas, ficaram hospedadas em uma república; no dia 13, um túmulo do cemitério de Ouro Preto foi violado; e no dia seguinte, o corpo de Aline foi encontrado no cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia; sobre um túmulo, despida, de braços abertos e pés cruzados, e com 17 ferimentos feitos a faca. Os acusados pelo crime são três rapazes, moradores da república, e uma jovem, prima da vítima.
As repúblicas em Ouro Preto são um capítulo a parte; se espalham pela cidade, cheia de estudantes; de todos os níveis, umas ricas e tradicionais, ocupam casas maravilhosas; outras menos poderosas, improvisadas até; só de moças, só de rapazes, mistas, GLS ou homofóbicas. São muito parecidas com as fraternities e sororities das universidades americanas, tão descritas em livros (A História Secreta, de Donna Tartt, é um deles, com sua trama de cumplicidades e estudos clássicos) e filmes (um dos melhores talvez o Sociedade dos Poetas Mortos, do diretor Peter Weir, além de longas séries de terror+rir de Pânico e aparentados). Uma experiência que, no Brasil, não é onipresente como na cultura norte-americana; na Universidade em que estudei o campus era uma ficção, se resumia às conversas nos pilotis; assim para mim foi uma experiência engraçada ficar hospedado em uma república.
O ponto forte é a hospitalidade, a facilidade em se fazer amigos, a diversão sempre presente, a casa cheia todo o tempo. O que poderia ser um ponto fraco, a pouca privacidade, não cheguei a sentir; mesmo com a casa cheia há um cuidado com as individualidades. Enfim, uma boa experiência, como é interessante passear na noite na cidade e ver a movimentação nas repúblicas, o barulho de festas, a juventude. E também uma marca da cidade, de Minas, a interiorização: não há um "baixo Ouro Preto", como temos vários "baixos" no Rio, onde as pessoas vão para as ruas beber e confraternizar; as loucuras acontecem entre as paredes coloniais das repúblicas, das casas, das igrejas; sob a aparência tradicional, o desvio; sob as igrejas barrocas, o prazer, a transgressão, o êxtase.
Como no crime das irmãs Poni, em 1962; as irmãs Ethel e Edina Poni, da chamada alta sociedade de Minas Gerais, assassinaram em uma pousada em Ouro Preto, a sangue frio, a nova companheira do ex-marido de Edina, o milionário Fernando Melo Viana Filho. Uma história de amor e ódio, de traição, de dinheiro, violência e impunidade; um assassinato cometido na frente de testemunhas, em público; enquanto Ethel segurava os braços de Maria de Lourdes Dias Calmon, Edina, campeã de tiro ao alvo dos clubes tradicionais de Belo Horizonte, dispara dois tiros de seu revolver calibre 32 na nuca da vítima. As duas senhoras foram presas algumas horas depois; para recebê-las, a cadeia de Ouro Preto foi reformada; o julgamento teve a participação de juristas importantes, e o conservadorismo da sociedade mineira foi determinante para acolher a tese da defesa, de coação moral irresistível, e absorver as acusadas, culpabilizando a vítima.
Segundo a defesa (o texto é uma pérola ao descrever o conservadorismo brasileiro da época, onde o divórcio ainda não era legalizado e as separações eram vistas com estranheza, um casal formado após um desquite era um casal pária, apontado na rua, os filhos de desquitados marginalizados nas brincadeiras com os filhos de famílias),  "a vida de Edina tornou-se uma via crucis, n’uma sucessão de sobressaltos e angústias, permanentemente oprimida e coagida por sua impiedosa rival (...) se viu obrigada a privar-se de comodidades e da vida de conforto que sempre teve – pois passou faltar-lhe o mínimo para a sua subsistência – Maria de Lourdes deixava seu emprego (...) anunciando aos quatro ventos que descobrira uma “mina de ouro” e não precisava exercer um ganha-pão honrado: foi engrossar o número daquelas que vivem da mais triste e mais antiga das profissões... (...) Continua acentuado o contraste entre ambas, após a desgraça visitar a morada de Edina, na pessoa da Calmon: enquanto esta fazia freqüentes viagens a Europa (...), ostentava jóias de um luxo asiático (...), requintando em sempre fazer chegar a Edina a notícia dos presentes caríssimos que recebia do Dr. Fernando (...). Edina a esposa legítima, atravessava períodos de notórias privações, com os credores batendo-lhe humilhantemente às portas (...) com os próprios fornecedores de gêneros negando-lhe mais crédito e obrigando-a a ir as duras fainas do trabalho na propriedade agrícola do casal, onde se dedicava à fabricação de doce para vender junto ao seu círculo de relações.  (...) Senhora da situação como se julgava, confiante de sua ascendência de fêmea moça sobre o amante sexagenário (em números redondos a Calmon tinha 30 anos e o dr. Fernando o dobro, passou ela a infernar a vida da acusada Edina atormentando-a, amargurando-a e levando-a ao desespero, através de freqüentes (...) telefonemas urbanos e interurbanos em que, utilizando de linguagem sórdida, preservada na tradição das vivandeiras, à Edina dizia que devia conceder o desquite ao marido para que ele pudesse regularizar sua situação com ela; que Edina se convencesse que era uma mulher velha e superada, enquanto que ela tinha mocidade a oferecer a seu marido e coisas quejandas (...)"
Estão todos lá, vagando, enquanto caminho pelas ladeiras, enquanto fotografo com meu celular as sombras, os azulejos e as fontes, enquanto bebemos uma cerveja Backer, enquanto vamos de república em república, os vultos nos perseguem e se escondem nos becos, os barulhos ao longe, as estrelas, o céu do Guignard.
Sim, e o Museu Casa de Guignard, uma delícia; a casa onde o artista morou, uma casa muito simpática com um gostoso quintal, muito bem conservada e adaptada para um museu simples, sem grandiosidade, cool como o artista.
Museu com pouco acervo, nem meia dúzia de telas do Guignard (mas uma lindíssima, pintura sobre madeira, grande, com cores fortes); uma cama e outros objetos pintados pela artista; e uma coleção de pequenos desenhos, cartões, bilhetes de enamorado; apenas isso; mas não faz mal, se respira Guignard em toda parte, um lugar gostoso para se ficar horas como ficamos, e se sentir também um pouco enamorado por esta Ouro Preto de Guignard. Como esta casa fosse um par de parênteses, fosse como uma capa protetora a deixar fora o lado soturno, os espíritos.
(Guignard também tem um lado negro, sabemos; depressivo, os complexos a partir dos lábios leporinos; mas sua obra dificilmente é soturna, mesmo nas cenas de noite, há uma transcendência, uma elevação, uma alegria quase ingênua. Outro artista, ligado a Ouro Preto, que transcendeu as limitações do físico foi certamente Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, cuja deformação absolutamente não deixa marca na beleza de seus anjos. O barroco, a transcendência da pérola deformada, o êxtase)
E assim deixo Ouro Preto, já fazendo planos para voltar.
Uma residência, registrando em meus moleskines os azulejos e azulejos das igrejas, quem sabe?
Ou simplesmente voltar, sem motivo, sem desculpa, pois a vida é boa e melhor ainda se se consegue rever o passado e tornar realidade algo que ficou inconcluso há tantos anos. Ou séculos.
Buscando o ouro e o encontrando.

Um comentário:

Ana Fiori disse...

Olá,
creio que cabe ressaltar na sua descrição que os acusados pela morte de ASS foram absolvidos em julgamento pelo Tribunal do Juri, diante da falta de provas de sua autoria e da ligação de causalidade entre o crime e os jogos