quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ao vencedor, as baratas

"Tirai as argolas de ouro das orelhas de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas e trazei-mas. (...) trabalhou o ouro com buril e fez dele um bezerro (...) No dia seguinte, madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se para comer e beber e levantou-se para divertir-se." (Êxodo 32:2-6)
Adorar um animal de ouro. No Antigo Testamento, um bezerro, feito com as jóias de ouro do povo. Ouro para o bem do Brasil, nos anos 1960, derreter alianças, pulseiras de bebê e cordões de Agnus Dei, para salvar o país do perigo comunista. Fotos da atriz Julie Christie ao ganhar seu Oscar em 1966, com um vestido dourado, beijando impudicamente a estatueta dourada. Cenas do garimpo da Serra Pelada, homens chafurdando em barro e pepitas do precioso metal, riqueza instantânea ou pobreza continuada.
Hoje, uma inversão: o ouro, o objeto máximo de desejo e idolatria, se associa ao inseto mais repugnante, habitante dos esgotos e dos becos escuros e úmidos. As baratas de ouro do artista Fernando de La Rocque não são objetos de adoração, não são ícones de um mundo estático, hieraquizado; são objetos de arte, de uma arte que associa o desejo à repunância para questionar os limites da própria arte, as contradições da sociedade que endeusa artistas midiáticos, que transformou a arte em espetáculo e os museus em mausoléus.
Com simplicidade, Fernando fala de seu processo de trabalho.
Da visão modernista do artista como um ser especial, do trabalho de arte como uma ligação entre o divino e o humano, do gesto criador como o sopro de Deus em Adão, da Arte como Expressão e Transcendência (tudo com maíusculas), temos um artista que sai pela noite urbana com sua mochilinha, um spray de tinta dourada; sua caça, os insetos rastejantes; sua obra, as baratas douradas. Baratas que ele devolve à liberdade ou que envia, por Sedex, uma Nasty-Mail-Art.
São as baratas do Fernando de La Rocque que estão na exposição "Barata de ouro -- Expressionante", no Espaço Cultural Sergio Porto, no Rio, até dia 29. Baratas de plástico pintadas de ouro em estojos, uma mais sexy em um estojo de cetim cor-de-rosa; uma pequena pintura expressionista de uma barata, com moldura kitsch; desenhos de baratas douradas sobre papel; vídeos; troca de emails do artista sobre o projeto das baratas. Multiplicidade de formas, de midias; simplicidade; contemporaneidade. Interessante também é conversar com o artista sobre seu trabalho, vê-lo ensaiando uns passos de dança no Fosfobox, ou melhor, ver sua entrevista no programa do Jô Soares (está no Youtube, coloquei o link abaixo), para sentir que é um artista comprometido com seu trabalho e, ao mesmo tempo, comprometido com uma visão de mundo, com um trabalho que procura alternativas, que não se conforma ao espaço tradicional das categorias (pintura, desenho, escultura, artes aplicadas), das galerias, do circuito de arte. Sempre com leveza, witty e doce, e sem abrir mão de seu pensamento, de sua proposta.
Interessante também acompanhar o trabalho do artista, questionador, e ao mesmo tempo leve, com humor e ironia. Os objetos-esculturas feitos de canudos de plástico usados: são pedras que respiram, são galáxias ou nuvens, são cérebros ou pulmões; são pop e contemporâneos. "Colônias", instalação com "azulejos pseudo-coloniais", uma parede externa da Galeria Gentil Carioca coberta pelo que parece um padrão típico de azulejo colonial; vista de perto, vê-se que o inocente padrão na verdade é uma suruba infinita, explícita, em azul e branco; um passante reclama, vai à Polícia, registra um B.O.; a discussão chega aos jornais, e não estamos no obscurantismo medieval e sim no Terceiro Milênio em um País Tropical. Enfim.
Este é o trabalho do Fernando de La Rocque: instigante, leve, irônico, contestador e acima de tudo contemporâneo. 

Clique aqui para Larocque, o blog do artista

Entrevista do artista no programa do Jô Soares, parte 1 e parte 2:



Julie Christie, o filme "Darling" é de 1965 e o Oscar em 1966, no vídeo não aparece o tal beijo, objeto das fotos, proféticas de uma época de idolatria e materialismo.

Um comentário:

Ivanildo Lima disse...

Olá, meu caro amigo!
Adoro ler seus textos, muito bem elaborados! Fico "analisando" cada palavra, o conjunto de expressões, etc. Parabéns!
Um forte abraço!