quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Os Salões de Arte e os novos Novíssimos

Uma festa, a abertura dos Novíssimos 2010, na Galeria do Ibeu, em Copacabana, Rio. Adoro Copacabana, o prédio onde está o Ibeu é um clássico, a exposição é muito boa, muita gente no vernissage, e eu, o inquieto olheiro, não consigo desviar o foco dos bons trabalhos mostrados para viajar no passado.
A exposição dos Novíssimos está impecável, as premiações foram totalmente acertadas: Daniel Lanes é o premiado que fará uma individual na Galeria em 2011, e Rafael Adorján uma menção honrosa, estraá em um evento de fotografia que a Galeria do Ibeu programa também para 2011.
Muitos outros artistas bons, muitos amigos, outros que conheci ali mesmo; uma alegria especial para mim, a maravilhosa pintura da Danielle Carcav, tão admirada, após a exposição virá para minha coleção, eu poderei olhar para aquelas florações cor-de-rosa até o final dos meus dias. Enfim, o artista M.N. (também lá, com lindas pinturas) diz que eu tenho um toque de Midas, será?
Mas aqui não quero falar sobre os Novíssimos e sim sobre os Salões de Arte, uma instituição cada vez mais anacrônica (sua irrelevância já constatada por Marcel Duchamp com a Fonte). Uma expoaição como o Novíssimos mostra uma alternativa para um Salão do século XXI; outras alternativas existem; mas a questão básica é: inserção dos novos artistas no circuito.
Antigamente, muito antigamente, a unica maneira de um jovem artista entrar no circuito de artes no Brasil era através da participação em Salões.

Nem falo de uma época pré-histórica, pré-anos 1950-60, dos Salões de Belas Artes, que estavam intimamente atrelados ao establishment: professores eram jurados e os alunos que se destacavam, talvez não só pela qualidade em seguir os parâmetros da Academia mas também pela cordialidade e outros critérios pessoais, recebiam os prêmios, o maior dos quais as Viagens ao Exterior, aí entendido como Paris.

Falo dos anos 1970, quando o Salão de Belas Artes foi expurgado do academicismo e se transformou, por lei federal, no Salão Nacional de Artes. Do Salão Carioca, da Prefeitura do Rio.
E também de Salões da iniciativa privada, como o Salão da Bússula, patrocinado por uma empresa de publicidade cuja logomarca era uma bússula (coisa tão pré-design). Dos Salões de Verão patrocinados pelo então grande Jornal do Brasil; em um deles o jovem artista Antonio Manoel se inscreveu, ele, seu corpo, como obra; a proposta era que o prêmio de aquisição significaria que o MAM, beneficiário das obras adquiridas, deveria prover a subsistência do artista, como obra, pelo resto de sua vida; na abertura do Salão o artista ficou nu no Museu; as fotos são emblemáticas; e em uma época em que ainda não se falava, no Brasil, de performance, e onde a repressão era sufocante, não só a repressão da ditadura como a repressão sexual de uma classe média pré-liberação sexual.
Um pouco mais tarde, ainda anos 1970, quando a maioria dos artistas no Brasil estava entregue ao sistema (o boom da Bolsa incentivado pelo Delfim Neto criou uma bolha de galerias de arte em lugares nobres do Rio e São Paulo), um grupo de artistas no Rio começa a questionar o circuito de artes.
No Rio, um dos Salões preparados com toda a pompa pelo mesmo Jornal do Brasil foi boicotado pelos artistas, um manifesto com assinaturas dos artistas foi distribuído aos convidados, à burguesia que frequentava as festas da Condessa Pereira Carneiro, aos intelectuais que contestavam a ditadura mas que não viam a ditadura do circuito de artes. Minha assinatura está lá, neste manifesto, ao lado dos então também jovens artistas Paulo Herkenhoff e Fernando Cocchiarale, tenho a documentação guardada em algum armário aqui em casa, se os cupins não comeram.
Como o fogo comeu o MAM em 1978. As dores do parto do moderno gerando o contemporâneo e do contemporâneo matando em lenta agonia o moderno.
Sim, todos os Salões que citei eram no Rio de Janeiro. São Paulo era o templo dos consagrados, as Bienais; mas para os jovens artistas a entrada no circuito eram os Salões no Rio. Uma unica exceção, o Paraná, com uma política cultural própria, e bons Salões e boas mostras temáticas, como as mostras de desenhos, muito valorizado na época, mesclando artistas convidados e artistas selecionados.
No final desta década e início dos anos 1980 a Funarte começa a incentivar a descentralização: exposições itinerantes, salões em pequenas cidades, mas ainda um movimento tímido, tudo muito distante e difícil. Um projeto da Funarte, o Projeto Arco-Íris (sem segundas intenções, na época o rainbow ainda não tinha sido apropriado como símbolo do movimento gay) levou trabalhos de uma meia dúzia de jovens artistas, eu estava lá com 3 ou 4 aquarelas, em lugares como Itajubá, Teresina e Belém; recebemos depois clipping dos jornais locais que exaltavam os artistas como redentores da cultura local; em Itajubá eu fui, com o Chico Fortunato, e fomos recebidos com banda de música e todas as honras de visitantes ilustres.
Participar de um salão nesta época era muito complicado, em termos de logística. Fotos de trabalhos com qualidade eram caras, em preto e branco, coloridas então totalmente fora do orçamento de um artista jovem. Assim, você se inscrevia e tinha que mandar, na inscrição, os trabalhos, físicos, com moldura. Se o Salão era no Rio, tudo bem, você podia pegar um ônibus até o local da inscrição carregando aquela tralha; os trabalhos não eram avaliados a partir do dossiê (na verdade o dossiê era apenas o currículo e as fichas de inscrição) e sim "ao vivo"; e os trabalhos rejeitados eram "jogados" em um porão com a humilhante letra "R" em vermelho no verso; e lá você ia ter que resgatá-los, voltando de ônibus com eles, o peso das letras "R" era de toneladas.
Acidentes: uma pintora, E.S., minha namorada na época, foi aceita em um Salão de Verão com uma bonita pintura. Na semana da montagem do Salão, o crítico Roberto Pontual liga para ela, totalmente fora de si; nos trabalhos de montagem, outro trabalho, pesado, caiu sobre a pintura dela e cortou a tela; três cortes grandes, profundos; as opções eram retirá-la do Salão; ou ela refazer a tela. Disciplinada, ela repintou a obra; como era uma pintura mais conceitual, foi possível; a tela nova foi exposta e ganhou um prêmio de aquisição; deve estar nos subterrâneos do MAM; a original, um Fontana-like, está comigo (se os cupins não comeram).
Tudo isto que escrevi é um preâmbulo para dizer de como hoje o contexto está diferente.
Acabaram-se totalmente os Salões Nacionais. Os salões regionais e locais hoje tem uma programação intensa, uma consequencia das leis de incentivo à cultura e da política de descentralização cultural do Ministério da Cultura, que pode ter seus excessos (supervalorizar o regional em detrimento da contemporaneidade) mas que significa descentralização do fluxo de recursos.
Ao mesmo tempo, os salões regionais/locais deixam de ser provincianos, pois as novas tecnologias facilitam a inscrição de artistas de todo o país. Para participar em um salão no Pará, por exemplo, hoje basta mandar o dossiê, por email ou Sedex; nos anos 1970-80 eu teria que mandar três trabalhos, com moldura, vidro; pesados, pela Varig-Cargas, para o Pará, um custo alto; e que poderiam ser recusados (frete de retorno a cobrar). Para mim, na época, participar em salões fora do Rio só como artista convidado, e assim mesmo só em alguns, os mais conceituados.
Então, hoje, temos para os artistas jovens um circuito intenso de salões pelo Brasil afora; e nenhum salão no centro irradiador de cultura que é, ainda, o Rio de Janeiro.
Pensei nisso tudo entre chopps e bolinhos de bacalhau na velha Adega Pérola, saindo da abertura da exposição Novíssimos e esperando a hora de entrar no Fosfobox para a festa do Saulo Laudares, desta vez com o artista convidado Heleno Bernardi. Minha madeleine foram os bolinhos de bacalhau, me levaram por um breve momento aos anos 1970 (não fosse a visão do fantasma de um antigo garoto-prodígio, precoce autor de uma peça de sucesso e hoje, trôpego em suas muletas, um lobisomem pelas madrugadas de Copacabana), e me trouxeram de volta a uma atualidade bem diferente.
Melhor ou pior, não dá para comparar, diferente; a tecnologia certamente facilitou a vida, mas abriu novos desafios. No final das contas, a instituição "Salão de Arte" está aí, mais viva que nunca, e ninguém mais contesta. Enfim.

2 comentários:

marcio fonseca disse...

Jozias: Você dá um depoimento muito rico sobre uma época sem retorno, como você mesmo assinala. Uma coisa é certa, algo é preciso fazer para absorver esse contigente competende de novos artistas. Muito bom. Abraço Marcio

sofia de giani disse...

Sinto pena de conhecer esse seu lado somente agora,apesar de ter estado perto de você tantos anos no Serpro.
Ainda bem que estou tendo essa oportunidade.
Que riqueza de depoimento!