Já adulto, tive de novo a sensação do “prazer de ler associado à nostalgia do fim do prazer”, que senti ao ler Monteiro Lobato em minha infância (como coloquei em post anterior) ao conhecer a literatura de Bernardo Carvalho, em meados dos anos 1990.
Eu havia lido sobre ele, jornalista da Folha de São Paulo, sobre os livros, mas o meu primeiro contato mesmo foi ao encontrar, em um sebo de livros na calçada da Escola de Música no Passeio Público, meu caminho de todos os dias, um exemplar, discreto, do
Onze. Olhei, peguei, como quem pega uma relíquia; comprei; comecei minha leitura, nesta mesma noite, no meu canto de leitura na varanda do apartamento onde então morava, em Ipanema, na Rua Vinícius de Moraes, antiga rua Montenegro. Foi amor à primeira vista, à primeira leitura. Procurei em várias livrarias até conseguir o
Aberração, este o primeiro livro do autor, e a minha impressão foi reforçada: é um grande escritor; quero ler tudo dele... A partir daí, comecei a esperar cada novo livro com a expectativa de quem espera um prazer intenso.
Diferentemente do meu prazer pela coleção do Monteiro Lobato, quando eu via na estante os livros que ainda iria ler, via materialmente o fim do prazer se aproximando, à medida em que a leitura evoluia e os livros passavam para a categoria de "lidos"; como a obra do Bernardo Carvalho estava sendo escrita, a perspectiva de prazer era, pelo menos teoricamente, ilimitada... era só uma questão de esperar, um belo dia apareceria uma nova resenha na Folha, vai ser lançado o novo livro, e meus sentidos se aguçavam na expectativa do novo livro do B.C...
Me lembro da surpresa que tive com um deles, acho que
As Iniciais. Eu não havia lido nada sobre o breve lançamento, ainda estava naquela expectativa distante do “próximo livro”... e uma tarde de sábado, passeando na Livraria da Travessa de Ipanema apareceu, pronto, materializado, na estante, sob meu olhar atônito, inesperado, o novo livro, como um amor de Carnaval... E cada um deles, os esperados ou o inesperado, era o prazer renovado, o prazer da leitura, como o que eu tinha, criança, ao ler os Monteiro Lobato...
Ao ler o
Nove Noites, senti uma estranheza, vi uma mudança, uma inflexão na prosa do escritor; depois continuada com o
Mongólia. Os temas são os mesmos dos primeiros livros, os grandes temas da literatura, os arquétipos: o duplo, o labirinto, o jogo de espelhos, o amor e a morte, a busca do pai e da identidade, a literatura/a arte como uma chave e também como um engano, os relacionamentos e o amor também como uma solução e um engano, os mistérios que jamais serão desvendados, a memória e o esquecimento... Mas, para mim, é como se nos primeiros livros estes temas se desenvolvessem em um universo totalmente interior, subjetivo, portanto mais universal; enquanto que nos dois últimos este universo passa a ser mais jornalístico, objetivo: uma memória focada no concreto, em uma narrativa “real”, perdendo um tanto do onírico dos primeiros, onde a narrativa desfocada leva a uma obra aberta, a ser completada pelo leitor.
Mongólia segue esta vertente: a
estranheza que perpassa os primeiros livros continua, só que ao meu ver colocada externamente: o viajante sente a estranheza da civilização e da cultura estranhas, da língua desconhecida, da Mongólia, ou dos índios; enquanto que, na minha opinião, os narradores e personagens dos primeiros livros
sentem a estranheza dentro de si, e a partir desta
estranheza subjetiva vem todo um clima que contamina mesmo as situações aparentemente simples e quotidianas (o jantar e o almoço de
As Iniciais não seriam absolutamente estranhos, seriam eventos típicos de uma classe social, se não fossem vistos assim pelo narrador).
O último,
O Sol se põe em São Paulo, ao meu ver consegue integrar as duas vertentes; pois tem um tanto do “jornalístico”, da estranheza colocada "externamente" (no Japão, na cultura japonesa mesmo quando se é descendente dessa cultura) mas apresenta algumas imagens fortes de um mistério, de um mundo interior, que remetem aos primeiros livros. Uma imagem, para mim inesquecível, é a da casa japonesa escondida no meio dos prédios e construções de São Paulo, e que desaparece aparentemente da noite para o dia; como um sonho; como as oníricas cidades borgianas do
Aberração, como a misteriosa caixinha de
As Iniciais, como o sexo de Ana C. do
Teatro.
Enfim, continuo lendo B.C., esperando ansioso o próximo livro, que deve ser o situado em São Petersburgo como parte da coleção
Amores Expressos. Mas aquele prazer intenso, para mim, com certeza vem mais dos seis livros iniciais do autor.
Uma crítica que li (está em um dos links abaixo) diz que o sétimo livro, quando B.C. retornou ao formato de contos, foi recusado pela editora por estar sendo um pastiche dos livros anteriores; a partir desta recusa, o escritor teria feito uma mudança de rumo e partiu para o
Nove Noites, com bons resultados (premiações, vendas, reedições em formato de massa). Não sei se é verdade, mas eu ADORARIA ler o livro de contos “recusado”.
Com tudo isso em mente, fiz a minha proposta de 2008: reler os livros do Bernardo Carvalho, na sequencia; reler em meses os livros que li espaçadamente em mais de dezena de anos; comprovar se eles resistiam a esta segunda leitura (mais que resistiram, cresceram); testar uma hipótese que eu tinha formulado ao longo das leituras, de que os livros todos na verdade seriam um mesmo livro, uma epopéia interior em vários volumes, e que as histórias que se entrelaçavam em cada um dos livros na verdade se entrelaçariam em um corpo maior (minha conclusão é que sim). Ainda: ao reler, senti talvez o mesmo prazer da leitura inicial, ou um prazer renovado; eu havia esquecido muita coisa dos enredos, claro, mas o clima de cada um dos livros permaneceu comigo desde a primeira leitura, e se renovou com a releitura.
Embora esteja considerando minha tarefa concluída, já que não pretendia reler, pelo menos nesta década, os livros da fase que chamei de “jornalística”, estou reavaliando o assunto, e vou relê-los sim (
Nove Noites,
Mongólia,
O Sol se põe em São Paulo), até como testes para minhas hipóteses. E continuo esperando os novos livros. Sim, e o blog que o B.C. fez, meio a contragosto (
"O horror confesso que eu tenho dos blogs..."), de São Petersburgo.
Posts sobre minhas releituras dos livros do Bernardo Carvalho:
TeatroA dança das cadeirasO Livro de hojeAlguns links interessantes:
Blog do Bernardo Carvalho em São PetersburgoColeção Amores ExpressosLivre de Cacoetes (resenha sobre O Sol se põe em São Paulo)Medo de SadeTraição e Horror em Medo de SadeBernardo Carvalho e a arte da fugaNove NoitesO Sol se põe em São Paulo