Quando eu era criança, meu pai comprou uma coleção com as obras completas de Monteiro Lobato, encadernada em verde com letras em prata.
Uma parte da coleção era a das obras adultas do escritor: Urupês, A Onda Verde, A Barca de Gleyre (este título me deixava intrigado, quem seria este Gleyre que tinha uma barca? além de tudo o livro era em dois "tomos", o que era mais estranho para mim ainda), O Presidente Negro...
Mas a parte que me importava, e à qual me atirei sofregamente, eram as obras para o público infantil e juvenil, que é afinal a obra mais conhecida do escritor: Reinações de Narizinho, Caçadas de Pedrinho, Memórias da Emília, A Chave do Tamanho, Viagem ao Céu, O Saci... e alguns que, hoje, acho que devem ter ficado irremediavelmente datados no passado: O Poço do Visconde, Emília no País da Gramática (com todas as reformas ortográficas dos anos 1950 até está última...)
Lia sem parar, viajava no mundo maravilhoso criado pelo Lobato (é bom dizer que falo de uma época pré-Sítio do Picapau Amarelo na TV, assim a minha imaginação era totalmente livre para visualizar personagens, cenários, efeitos e edição do meu filme interior sobre o que lia).
Mas ao mesmo tempo em que avançava na leitura extraindo dela um prazer enorme, comecei a ficar triste ao ver que o estoque de livros era limitado e estava acabando, e com ele o meu prazer; e o meu ritmo de leitura se transformou em um deslizar entre os dois momentos: o de correr para o prazer e ao mesmo tempo o de regular este prazer para que demorasse o mais possível. Como no amor, como no sexo (eu ainda não sabia disso).
Em paralelo, fiz pesquisas para tentar prolongar o prazer: “Não tem uma outra coleção Monteiro Lobato, uma sequencia?” – “não, o escritor já morreu, e estas são, o nome diz, as obras completas”. Tentei partir para ler os livros de adultos e os achei intragáveis (provavelmente são mesmo, sabemos que o nacionalismo do escritor beirava a xenofobia, e conhecemos seu horror ao modernismo em artes, que culminou na célebre crítica “Paranóia ou mistificação” que conseguiu calar o vigor expressivo da Anita Malfatti)...
Hoje sei que, como amar de novo, repetidamente, a mesma pessoa, a releitura é uma forma de revisitar o prazer de uma leitura; mas a releitura exige tempo para um distanciamento e um certo esquecimento da memória, coisas impensáveis para uma criança. E sei também, a partir de Proust, que a memória do prazer pode ser tão forte como o próprio prazer, se armazenado e despertado de uma forma certa... Ao simplesmente me lembrar do prazer que eu sentia, este prazer é muito mais vívido para mim do que voltasse a ler os mesmos livros, que tanto prazer me deram em uma determinada época...
malga | Santa Helena
Há 4 dias
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