quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ainda sobre o "puxadinho"

Muitos pensam que a importância de Brasília, que fez dela Patrimônio Histórico da Humanidade, vem da beleza (estética) das construções de Niemeyer, e que seria então apenas "uma questão de gostar ou não" das linhas do arquiteto. Na verdade, a importância maior de Brasília é ela ser o único exemplar de uma cidade inteira projetada e construída segundo a ideologia do modernismo. Urbanisticamente ela é, habitada, funcionando, exatmente tudo o que preconizaram Le Corbusier e demais pensadores daquele movimento que modificou a concepção do homem e sua relação com a cidade, com a técnica, com a natureza, e que hoje é visto como um pensamento "de época". Claro que a utilização da linha curva pelo Niemeyer foi um passo além, em termos de arquitetura, mas urbanisticamente a importância de Brasília está em como os escritos de Lucio Costa no Memorial do Plano Piloto de Brasília refletem o pensamento modernista, e em como este pensamento modernista virou concreto, uma cidade inteira viva, não simplesmente experiências limitadas (e posteriormente modificadas) como as construções do modernismo europeu. E a síntese deste pensamento está nas quatro escalas que Lucio Costa propõe para Brasília e que presidiram a própria concepção da cidade: a Monumental; a Residencial; a Gregária; e a Bucólica:
Escala Monumental – é aquela que contribui para a formação do sentido de Capital, onde a monumentabilidade confere aos edifícios seu valor simbólico. Constituída pelo Eixo Monumental, desde a Praça dos Três Poderes até a Praça do Buriti, incluindo as principais edificações que estão neste trajeto.
Escala Gregária – é aquela para onde convergem os fluxos no encontro dos eixos Rodoviário e Monumental. É o centro urbano onde se previu edifícios maiores e mais altos e o espaço urbano é disposto de forma a permitir um fluxo de circulação mais intensa. É a escala do encontro.
Escala Residencial – é aquela que define a relação entre os edifícios residências, onde se encontra uma proposta inovadora de Lucio Costa – as Superquadras. Neste caso, a relação entre os espaços edificados e os abertos é outra, respeitando as características do convívio cotidiano, por isso, a altura fixada para as edificações é de seis pavimentos (permitindo, nas palavras do urbanista, que a mãe, de sua janela, mesmo que no último andar do edifício, conseguisse ver e chamar seu filho que brinca no parque), além de uma extensa área verde de 20 metros emoldurando cada Superquadra.
Escala Bucólica - se constitui dos gramados, passeios, bosques e jardins da cidade que permeiam e envolvem as Superquadras, as Entrequadras, os diversos setores e os conjuntos de casa e comércios locais, e a cidade inteira, imprimindo a Brasília a qualidade de cidade-parque que ela é. Está por todo lugar, protegendo as áreas construídas umas das outras.
E, em 1987, ao redigir o documento “Brasília Revisitada”, Lucio Costa ratifica, como urbanista da cidade, o respeito as quatro escalas que presidiram a própria concepção desta, através da manutenção dos gabaritos e taxas de ocupação que as definem.
Ao meu ver, com a proposta da Praça da Soberania, com o gigantesco obelisco e o prédio que encobrirá a visão da Rodoviária para a Praça dos Três Poderes, Oscar Niemeyer está danificando o equilíbrio entre as escalas, "expandindo" a escala gregária (o "centro" de Brasília, traçado por Lúcio Costa na junção dos Eixos) para a escala monumental; e ao mesmo tempo enfatizando esta última, minimizando a outra. Mais que isso, com o apoio dos políticos e da mídia, faz-se uma redução do papel de Lucio Costa, este o urbanista, para inflar desproporcionalmente o papel de arquiteto do Niemeyer.
Que Niemeyer é um arquiteto genial, isto é indiscutível; porém Brasília não é um amontoado de prédios projetados por ele (um "Caminho Niemeyer", como o de Niterói, só que em ponto maior) e sim uma concepção urbanística e o testemunho de um mundo que "pensou-se moderno".

Nenhum comentário: