terça-feira, 20 de outubro de 2009

A galinha dos ovos de ouro


É triste. Muito triste.
Impossível não lembrar do incêndio do MAM, em 1978, e dos Picassos queimados, da obra do Torres-Garcia (em minha memória uma tela enorme o Torres-Garcia, no espaço monumental do Museu; e de um dos Picassos, um retrato de Dora Maar em tons de lilás... irremediávelmente perdidas).
Do incêndio que destruiu o apartamento na Av. Rio Barbosa, da Niomar Muniz Sodré Bittencourt, idealizadora do mesmo MAM. Entre outras, um Mondriaan, em uma sala cuja decoração havia sido feita em função da obra.
Sonho com serpentes.
Sonho com incêndios.
Sonho com incúria, hubris, descaso, onipotência, paranóia. Sonho com decadência, com morte, com entropia.
Impossível não lembrar do enorme móbile do Calder, instalado inadequadamente no Parque de Esculturas da Catacumba, Lagoa, Rio de Janeiro. Um dia de vento ele se desfez, foi recolhido e "guardado" em algum galpão até que sumiu. Provavelmente foi vendido a peso do metal em algum ferro-velho. Ninguém lembra disso, ninguém fala disso, nunca se apurou responsabilidades. Está na minha memória, fecho os olhos e vejo, flutuando no ar, imponente; como fecho os olhos e vejo o retrato de Dora Maar, o Picasso roubado do Museu Castro Maia.
Outros não conheci, mas fecho os olhos e os vejo, gritando. A Igreja de São Pedro, único exemplar de uma arquitetura diferenciada, demolida no esforço de rasgar a Avenida Presidente Vargas. Os murais do Volpi na Igrejinha de Nossa Senhora de Fátima, em Brasília, mandados raspar, com raiva, por algum padre. O Largo do Boticário, invadido por sem-teto. O galpão com as obras do Franz Weissman, na linha do tiro das favelas (desculpem, das comunidades), um desastre anunciado.
Triste, muito triste, e chegamos ao incêndio que consumiu 90% da obra do artista Helio Oiticica.
Tudo muito confuso, analisado à distância.
É criado um Centro Cultural Helio Oiticica, para abrigar a obra do artista, mas as condições da reserva técnica são precárias. A família prefere levar as obras para uma reserva própria. O seguro é caro, então não se paga o seguro. Acidentes acontecem. Enfim.
O trabalho do Helio, consumido em chamas, como ele viveu e morreu, tudo a ver. Não quero falar sobre isso, não quero.
Um texto muito bom, do Alexandre Faccin, expressa o que quero dizer. E esta foto, de Otavio Leonidio, testemunha as cinzas, a destruição.


A Transubstanciação de Helio
A Transubstanciação de Helio

Em 1967, Helio Oiticica escreveu um texto bem famoso onde consta a seguinte frase: Da adversidade vivemos. Com essas três palavras, Helio falou por todos nós, de maneira atemporal.

Ele não se referia apenas ao complicado contexto político da época, mas principalmente a cada artista, relembrando o moto contínuo que é o processo criativo. Mais além, mencionava as dificuldades do sistema/circuito de arte brasileiro, em 1967.

Hoje, 18 de outubro de 2009, diante do estúpido incêndio que destruiu 90% do acervo de Helio sob responsabilidade de sua família, o peso da bela frase nos massacra. Pois é difícil ser artista. É doloroso conviver com a negligência, com a ignorância, com o desprezo e com a falta de ética alheia. Com o conservadorismo destruidor e a vanguarda conservadora. Com a falta de ferramentas, ou com o alto custo delas. O custo de uma vida. E, mais ainda, pelo fato de nós, artistas, não termos feito nada para impedir que isto acontecesse. Mas poderíamos fazer algo?

Helio se foi novamente. Morreu duas vezes, da segunda morte sua terrível ironia, Helio ao pó. Mas não há fogo no mundo para consumir o verdadeiro legado de Helio, aquele que dinheiro nenhum irá mensurar. Pois independente das conseqüências legais, jurídicas ou não, a serem tomadas na política de conservação e acervo de obras por herdeiros parentais, nós – artistas - é que herdamos sua obra. Da maneira mais dolorosa possível, Helio já não é Helio; Helio somos nós agora.

Lembro do sacrifício heróico mitológico. Dionysus-Bacchus-Zagreus, o deus sempre vivo, sempre sacrificado, de cujo sangue verte-se um cálice. Transubstanciação, consubstanciação, mas não sub-substanciação, segundo James Joyce. O sangue/vinho ingerido é a própria essência divina manifestada, o mistério feito carne. Para que o milagre ocorra, no entanto, é preciso sacrificar o herói. Assim, Jesus jaz em sua cruz. Experimentar o mistério de Helio é ter seus textos publicados por perto. As imagens de sua obra na memória. A força de sua poética na consciência.

Todo artista se apóia em sua obra, deseja que ela permaneça. Isto foi negado a ele. Não é preciso culpar ninguém. Mas é hediondo negar o trabalho de uma vida, com toda certeza. Mesmo assim, ouso dizer, Helio, o mais brilhante Helio, solar mas imprevisível, derradeiramente morto, não foi derrotado, apesar de seu aniquilamento. Com o fim do homem, o início do mito. Com o fim da obra, que viva a poética. Tudo aquilo que Helio Oiticica vinha representando amplificou-se diante da tragédia. Agora, mais do que nunca, devemos carregar a riqueza de suas idéias, suas conquistas artísticas, seu verdadeiro valor, que é poético, sublime, humano; que é eterno.
Nós somos o legado da Humanidade. Nós somos o legado de Helio. Nós somos o presente, o passado e o futuro. Aqui e agora.

Escrevo este texto, e chove, como um velório maldito no sábado. Não quero que isto soe como um discurso de adeus, no entanto, mas sim como um desabafo, como um grito de guerra. Um ato político. Porque da adversidade ainda vivemos. Mas não tememos nada. Nem ninguém. Estamos sempre no limite.
E Helio vive.



Alexandre Faccin


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