Hoje, domingão, o dia amanhece bem ensolarado, faz frio e venta muito, mas com sol já é muito melhor para o turista ocasional do que com chuva. Cheio de animação, programei meu dia: em ritmo acelerado, consigo ver o MoMA e o Whitney, afinal este último não está com uma programação quente (OK, Georgia O'Keeffe: Abstraction e Steve Wolfe on Paper). E com sorte e objetividadee consigo pelo menos "conhecer a porta" de um dos dois que eu não conheço ainda, o Museum of Arts and Design (no Columbus Circle) ou o New Museum, nenhum deles com programação de peso, me parecia. Mesmo o MoMA, na minha avaliação preliminar, estaria com uma programação "média", a grande exposição do 6o. andar, Ron Arad: No Discipline, havia acabado no dia 19.
Vou caminhando no sol gostoso, domingão, sunday bloody sunday, meio que assoviando a música do U2, e também, em livre associação, me lembrando do filme (onde Peter Finch e Glenda Jackson disputavam os favores de um arquiteto) e ainda da Bloody Mary, não o drink com vodka, é cedo ainda, e sim a Rainha Mary Tudor... E faço minha imersão no MoMA. Muito metódico que sou (ou meio TOC) subo ao último andar e faço o percurso descendo; isso me matou, a exposição nas Galerias Contemporâneas do 2o andar é a melhor de todas, fantástica, não dá para ser vista em leitura dinâmica, e assim fico o dia inteiro no MoMA, almoço lá, saio quase expulso na hora de fechar, tenho que voltar no dia seguinte para o MoMA Design Store, mas tudo bem, valeu!1- Esta exposição é a "Compass in Hand: Selections from The Judith Rothschild Foundation Contemporary Drawings Collection". Eu já havia lido alguma coisa sobre isso, a Judith R. foi uma pintora abstrata que morreu em 1993, com 1971 anos; pelo sobrenome, imaginamos que muito rica; e deixou esta fundação, com um patrimônio inicial de US$ 42 milhões (já multiplicado pelas felizes aplicações) e as missões de: divulgar o trabalho da artista Judith R. (claro); cuidar e ampliar a coleção de arte de Judith R.; implementar um programa de bolsas/incentivos para encorajar o interesse em artistas norte-americanos falecidos entre 1976 e 2008 mas que o trabalho, embora de qualidade, não tenha conseguido reconhecimento adequado; e, finalmente, suporte a museus e instituições culturais em geral. E também, uma cláusula do testamento foi que a fundação "se auto-destruiria", ou seja, deveria esgotar seus recursos em 25 anos, tendo cumprido sua missão neste período, e deixando portanto de existir.
Uma tarefa delicada, portanto, para o curador, Harvey S. Shipley Miller. Gastar, gastar bem, não se eternizar burocraticamente. Uma atuação foi o incremento na coleção que a artista havia construído; a Fundação investiu, em 2003, mais de US$ 7 milhões para criar uma coleção contemporânea, com trabalhos de mais de 400 artistas, incluindo Jasper Johns, Cy Twombly e Gerhard Richter.
O programa de bolsas/incentivos segue, mas não é um grande consumidor da verba; por exemplo, em 2009 foram 17 espólios agraciados, com bolsas entre US$ 5 mil e US$ 10 mil, ou seja, uma "migalha" diante dos recursos da Fundação.
Após iniciativas pontuais - as doações da obra gráfica de Jacques Villon ao Museu de Arte da Filadélfia e da coleção ao MoMA de mais de 1000 livros ilustrados russos (The Russian Avant-Garde Book 1910-1934),
Shipley Miller foi ousado. E, trabalhando com outro curador, Gary Garrels, então curador de desenhos do MoMA, inciaram, em 2003, o projeto da Coleção de Desenhos Contemporâneos da Fundação Judith Rothschild. Os curadores trabalharam, pelo menos no início, sem a garantia de que o MoMA iria aceitar a doação, ao final; porém o trabalho tinha tanto peso, que não só muitos galeristas e artistas venderam trabalhos em condições excepcionais, como artistas abriram seus acervos particulares para disponibilizar trabalhos importantes e que de outra forma jamais iriam entrar no mercado. E com uma expectativa de "torrar" entre US$ 50 e 70 milhões.
Quando li sobre o assunto, há alguns anos, talvez na Artforum, um ponto interessante era esse: ainda não havia a garantia de que o MoMA aceitasse a doação, mas a perspectiva disso criava uma expectativa entre artistas/marchands, e uma pergunta foi: e se o MoMA não aceitar? ou não aceitar em bloco? me parece que os curadores falaram em que a probabilidade era pequena, porém caso isso acontecesse, teriam que retornar aos artistas para renegociar, em função de doação a uma outra instituição... Até parece o circuito de artes no Brasil, onde há doadores de arte, política de aquisição e de doações, incentivos do Estado para doações etc. etc etc. Enfim, o MoMA aceitou, e lá está a coleção, for my eyes only (nada, para os milhares de visitantes do Museu no domingão).
Os curadores partiram de uma definição ampla de desenho, englobando trabalhos que seriam, em uma visão mais estreita, colagens, instalações, pinturas... mas com uma definição bem focada na qualidade. A doação, finalmente concretizada em 2005, foi de mais de 2500 desenhos, de cerca de 400 artistas em 20 países; na exposição está uma primeira mostra, 350 obras de 177 artistas.
A exposição é maravilhosa, para ser vista com calma, curtindo as muitas formas que esta coisa que tem o rótulo de "desenho" assume e vem assumindo; primo pobre da pintura, uns acham, esboços preparatórios para a grande obra, pouca durabilidade, sujeito a fungos, rasgados, amassados, vulnerável por demais à umidade e aos raios de luminosidade, e assim vão os preconceitos; que justamente a exposição e a Fundação J.R. se contrpõem. Ao focar em preservar desenhos e em valorizar o trabalho de artistas mortos sem o reconhecimento do circuito, a Fundação J.R. demonstra que seu investimento é em tentar preservar, eternizar, o efêmero; uma aposta para o futuro, mais do que um compromisso com o passado ou o presente; e um destino que, ao visar a própria extinção, aposta na preservação, na eternidade.
Bom, quem está na exposição, todos eles, citar alguns só:
E as outras exposições:
2- The Erotic Object: Surrealist Sculpture from the Collection. Bela exposição. Uma das molas mestras do Surrealismo foi o erotismo; outra foi a ênfase na arte total, sair do bidimensional, para as 3-D: ambientes, objetos. E esta exposição coloca os objetos surrealistas do acervo do Museu dentro da perspectiva do erotismo, sutil, dissimulado, ou escancarado. Acho incrível que, depois de tantos anos, de tantas revoluções sexuais, alguns destes objetos continuam tão provocantes ou mais provocantes que nunca, também o mundo já embarcou na era do politicamente correto, do Parental Control, do novo-fundamentalismo.
3- Três exposições sobre design, no 3o. andar, mostram que o papel pioneiro do MoMA em termos de valorização do design não está ameaçado pelas novas instituições dedicadas exclusivamente ao assunto. São elas: Rough Cut: Design Takes a Sharp Edge (a mensagem é: "o bom design não é necessariamente bonito"); What was Good Design? MoMA's Message 1944-56 (uma mini-retrospectiva, abordando que antes mesmo de se ter consolidada uma visão de design o MoMA já atuava nesta área, mostrando, e mais que isso, "desenhando o design", avalizando uma ideia de bom desenho que formou as primeiras gerações de designers); e Polish Posters 1945-89 (idem, mini-retrospectiva, também marcando o espaço, tipo "olha, antes de existirem estes museus de design, o MoMA já cuidava do assunto").
4- Ainda no 3o. andar, In Situ: Architecture and Landscape. São maquetes e desenhos/projetos arquitetônicos, da coleção do Museu, mostrando diversas atitudes sobre a paisagem nos últimos 100 anos, um destaque para um projeto do brasileiro Roberto Burle Marx, Garden Design Saenz Peña Square. Uma maquete, Slow House, construída em North Haven, NY, é do escritório de arquitetura Diller & Scofidio, que tem uma relação conosco pois foi o projeto escolhido no concurso para o novo MIS, na Av.Atlântica, no Rio.
5- Desde sua criação, o MoMA foi pioneiro também em mostrar fotografia, quando ainda se discutia se fotografia era ou não arte; e a formar um acervo de fotografias; parte do acervo de fotografias está exposto, mostrando fotos antigas, analógicas, processos pioneiros, cenas de rua, retratos do início da fotografia; e, ao lado, em um contraste, uma boa exposição temporária, New Photography 2009: Walead Beshty, Daniel Gordon, Leslie Hewitt, Carter Mull, Streling Ruby, Sara VanDerBeek, mostra temática de fotografias recentes que expandem as definições convencionais do tema. Tenho conversado muito sobre isso, ao meu ver o advento da fotografia digital trouxe um desafio para a fotografia tão grande quanto o advento da fotografia no final do século XIX trouxe para a pintura. Para mim, está se chamando "esta novidade digital" de fotografia à falta (ainda) de outro nome; da mesma forma que com a criação da fotografia às vezes se chamava a nova técnica de retratos e se tentava colocar nela (meio à força) algumas convenções da pintura; até que a pintura reagiu (a partir dos impressionistas), como? passando a ser "pintura", e deixando o aspecto documental para a nova técnica. Acho, então, que estamos exatamente neste momento de transição, e nada mais diferente, conceitualmente, embora sobre o mesmo rótulo de "fotografia", do que as fotos antigas do acervo e as "fotos" da exposição New Photography 2009. Um destaque da exposição, pelo menos para mim que vi em Chelsea (gostei, e comentei no blog) um trabalho antigo do artista Daniel Gordon (os voos que tanto remetem ao Void do Yves Klein), é ver um trabalho mais recente, fotos de colagem de fotos - que já remetem muito ao surrealismo.
6- Paul Siestsema, artista americano. Desenhos e filmes, um trabalho bem interessante; nos desenhos o artista utiliza jornal, recortes de imagens e textos de jornal; em um trabalho meticuloso, ele reproduz os recortes, ampliando a escala e invertendo a imagem; sobre a qual coloca manchas; referência ao expressionismo abstrato. Em outros trabalhos, utiliza detalhes de objetos etnográficos (África, Indo-Ásia, Oceania), também refazendo estes objetos em desenhos e esculturas, depois filmando as esculturas em filme analógico 16mm, preto e branco. Tecnicamente o trabalho é tão perfeito que o espectador demora a perceber que se tratam de desenhos, a impressão é de que são xerox ou fotos ampliadas; e os filmes mostram imagens quase fantasmagóricas que oscilam entre abstração e figuração. Sempre com uma discreção, uma paleta de cinzas, sem enfatizar o processo; que os trabalhos também se tornam abstrações em gradações de branco/cinza/preto.
7- In & Out of Amsterdam: Art & Project Bulletin 1968-1989. Nas décadas de 1970-80, Amsterndam era uma cidade com um movimento muito intenso de arte conceitual, mail art, performances e outras experimentações. foi uma galeria que, ativa entre 1968 e 1989, organizava exposições focadas em Arte Conceitual, divulgando-as através do seu Art & Project Bulletim, que se tornou mais do que um "jornal" de divulgação e passou a ser ele mesmo uma obra, na medida de sua utilização pelos artistas com suas propostas conceituais e de mail art. A exposição apresenta uma seleção da recente doação feita ao acervo do Museu, de 156 exemplares do boletim, intercalados com obras em midias diversas de Daniel Buren, Sol LeWitt, Lawrence Weiner e outros artistas.
8- Looking at Music: Side 2, é uma exposição multimidia, com desenhos, fotos, videos, audios, super-8 e zines da coleção do MoMA, sobre a mistura entre música, media e arte visual que era feita no final do século XX, em especial a partir da metade dos anos1970. Uma oportunidade para viajar, e não só para quem viveu aquela época, mas para os que sabem de sua permanência no que se faz até hoje.
9- Finalmente (depois do almoço, no Café 2 do Museu, um salmão delicioso com um refrescante Pinot Grigio, ninguém é de ferro), as Monet's Water Lilies, as ninféias, maravilhosas, um espaço para transcender.
10- Bom, no MoMA sempre uma novidade: perto da escada rolante para a subida, um trabalho, vídeo, de uma artista, Jessica Mein, a etiqueta diz que é brasileira, nascida em 1975; não conheço e sobre a qual gostaria de saber mais, dever de casa que levo para pesquisar na internet (fiz o homework, o site da artista mostra outros videos, bem interessantes, e também trabalhos em papel, desenhos e gravuras). E além de tudo o acervo, sempre é bom, rever os Picasso (em especial Demoiselles d'Avignon), os Pollock, os Matisse, os Bonnard, os Warhol, os Philip Guston, ficar horas na sala do Beuys, tudo isso não tem preço.
Expulso do Museu, volto para o hotel caminhando; na parte da Broadway fechada ao trânsito faz-se uma feirinha aos domingos; se não fosse o almoço no café do MoMA talvez comesse o kebab, que parece delicioso; mas não se pode ter tudo, fica para a próxima viagem.
Acho que o bom de uma viagem (é, eu sou TOC mesmo) é sobrarem coisas para a viagem seguinte...
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