Tenho um dever de casa, com prazo: segunda-feira, 19h. Tudo bem, hoje ainda é domingo, meio-dia. Se eu não tivesse saído ontem, farra, Lapa, dormi tarde e sozinho. Hoje é um dia de sol, e eu tendo que escrever um texto, máximo de 4500 caracteres com espaços, disse o Mestre, sobre um tal manifesto que está na internet.
Faço um café, leio o manifesto, de um Grupo Silvestre (bem que podia ser Grupo Praiano, rio comigo mesmo e queimo a língua com o café quente) e é “em defesa da narrativa, do entretenimento e da popularização da literatura”. O caderno de esportes fala do jogo de hoje, um clássico, e eu aqui, sem mulher, com dever de casa e a praia que deve estar cheia de gatinhas.
Ideia brilhante, levo o netbook para a praia, o governo fala em wireless na orla toda, leio o manifesto, faço o texto e ainda tiro uma onda de bill gates com as gatas.
Um lugar na sombra do quiosque. O manifesto logo no item 1 diz que “entretenimento é sedução pela palavra“. Sedução é esta morena que parou do meu lado, fazendo alongamento. Leio o manifesto, sedução, sorrio, leio, ela finalmente olha para mim, sorri e começa a correr… se não fosse o netbook e a farra de ontem eu ia correndo atrás dela, ao lado dela, até o final do Leblon, até...
Volto ao manifesto. “Acessível a uma parcela maior da população“. “Experimentalismos vazios não nos interessam“. “Formação de leitores assíduos“.
“Oi, tudo bem, você vem sempre aqui neste quiosque?”, aproveito a ideia que o manifesto me deu e começo a conversa com uma menina que sentou do meu lado. Ela sorri e responde: “Venho sim, meu noivo joga volei naquela rede”, aponta para o noivo que parece um pit-bull, malhado daquele jeito deve ser gay ou débil-mental, eu penso mas digo apenas “legal, boa praia para você e seu noivo“, volto ao manifesto.
“Uma elite que dita regras, cria rótulos e se autoenaltece em resenhas mútuas, eventos e panelas”. Um chopp. Uma ideia para o texto, esta questão da elite, luta de classes, sempre pega bem citar Marx (“proletários do mundo das letras, uni-vos”), vou batucando no teclado e tomando o chopp que é ótimo para o calor e para as idéias, cito até o Deleuze, que o Mestre tem cara de quem gosta do Deleuze...
Delícia sim é esta gringa que para no quiosque como perdida. Ofereço um chopp e descubro que é uma argentina meio hippie que está procurando lugar para ficar, barato ou de graça, na Zona Sul em pleno verão. Desconverso, já me dei mal com hóspedes, indico o Chez Lagarto, logo ali, por via das dúvidas deixo meu telefone para ela me ligar mais tarde, conhecer a Lapa comigo. E volto, bem animado, ao texto.
“O autor pode e deve se esforçar pela disseminação de sua obra”. “Enredos ágeis e cativantes”. Outro chopp, bem rápido, e lá vou eu, ágil e cativante no teclado, devo estar com uns 1500 caracteres, não tem mínimo de caracteres mas se o máximo é 4500 é bom chegar a pelo menos uns 4000. São os tais processos de produção que o manifesto diz que pelos quais devo me interessar, além do marketing e distribuição. O título da obra deve chamar a atenção do leitor e despertar a vontade de chegar até o livro. Posso chamar o texto de “Manifesto sob o sol”, será que chamará a atenção do Mestre? Outro chopp.
Volta a morena corredora, cansada, suada, ofereço um chopp e ela me olha com nojo, eu deveria ter oferecido um gatorade, agora já era, a gata foi e eu continuo no manifesto e no texto.
“O desejo soberano de ser lido”. Isso é bonito, parece música do Cartola, posso citar o samba como o exemplo do conflito entre criação e diluição, entre arte e indústria, me empolgo e mais uns 800 caracteres, acho que esta parte do texto ficou meio sem pé nem cabeça, nada que uma revisão não resolva, o importante é que estou concluindo meu dever de casa e ainda por cima me divertindo neste domingo de praia, só tenho que pensar em um Plano B caso a argentina não ligue para irmos à Lapa.
“Maniqueísmo que produz distorções, afasta leitores e joga sua névoa sobre o mundo literário.” Respiro fundo, peço outro chopp, ao longe ouço fogos, deve ser o jogo começando, mas o chopp não vem, o rapaz do quiosque sumiu, olho para a praia e todos estão correndo em minha direção, demoro a perceber no barulho da multidão a palavra “arrastão!”.
Agarro o netbook e corro também, cadê o netbook? procuro, já era, pegaram na confusão, e eu nem terminei de pagar nem tirei back-up e o pior é o texto que estava tão bom e se foi.
Bom, pelo menos bebi chopp de graça a tarde inteira. E pode ser que a hippie ligue.
Escrevi o texto acima como um dos exercícios para um Workshop, Oficina de Crônica, com o Prof.Felipe Pena, que fiz recentemente, na Estação das Letras
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