Mal se abre a cortina do palco, ouço um "oh!!!" de admiração, vindo de alguém atrás de mim, na platéia do CCBB de Brasília, onde
Márcia Milhazes Companhia de Dança apresenta seu mais novo espetáculo,
Meu Prazer.
A interjeição é para o cenário de Beatriz Milhazes, irmã da coreógrafa. São flores, círculos, mandalas, bem coloridos; na luz "matutina" do início do espetáculo, parecem saídos de um desenho infantil; mais tarde, respondendo às sutis mudanças na luz (a iluminação é de Gláucia Milhazes, mãe das artistas), se transformam em flores pulsantes, em brilhos noturnos, círculos vivos, medusas.
Márcia tem trabalhado com cenários de Beatriz, e a combinação é perfeita; mas o espetáculo não é só o cenário, o trabalho da coreógrafa soma, com acerto e precisão, todos os elementos para falar da "
tentativa de encontro entre quatro pessoas solitárias, carregadas por suas histórias pessoais": música (todas brasileiras e hoje pouco conhecidas, seleções que juntam Sílvio Caldas de 1938 e Henrique Oswald de 1908), um trabalho de corpo primososo, a expressividade e vitalidade dos bailarinos, ritmo e uma dinâmica de ocupação do espaço cênico.
No início, os dançarinos não se tocam; traçam suas trajetórias, se aproximam, se olham, se prendem pelo olhar, mas não se tocam; o "matutino" é como uma história de incomunicabilidade, da solidão; de gestos repetidos, extremados, violentos; enxurrada, tsunami; e também sutis, interiorizados; mas não de troca. O esforço dos gestos se materializa em suor, em respirações entrecortadas, que são vividas em quatro solidões, dos quatro personagens no palco.
(Ao falar sobre seu trabalho após a sessão, Márcia fala de uma sala de um Museu onde a porta é fechada, a chave se perde, e os quatro visitantes tem que interagir durante o período em que dura a clausura; ao se abrir de novo a porta, tudo se acaba; mas naqueles momentos de
Huis Clos, a partir da interação, a vida dos quatro pode ter mudado para sempre; ou não...)
O momento onde finalmente acontece o primeiro toque, a primeira troca, é marcado por um lindo e contemporâneo
pas de deux, um girar sem fim do dançarino com a dançarina, em torno do eixo, até a vertigem; o homem firme é o eixo, e a mulher se deixa levar, rodar, se entrega; até a vertigem; a vertigem. A partir daí, a luz e o cenário já são vespertinos, e mostram que que o encontro existe, é possível, que as solidões e os individuais podem se somar, se encontrar, e que este encontro é um abismo que traga as individualidades.
O esforço dos movimentos já é o esforço físico de um encontro, e o suor e as respirações agora são o arfar deste encontro que tem um erotismo, uma carnalidade, uma transcendência e um êxtase.
De repente, não mais que de repente. As flores infantis do cenário no início do espetáculo são agora plantas carnívoras, ventosas, redemoinhos; e o movimento e a música marcam os momentos onde é possível se sair da solidão, do individualismo, para uma nova realidade, que alguns chamam de amor.
Falasse eu as línguas dos anjos, e não tivesse o amor, nada seria.
O amor, o dionisíaco, o orgiástico, o transcendente, o inominável; o se perder; o nada ter, nada querer, nada esperar, nada procurar. O momento único, onde mergulhamos no segredo do Universo; onde somos Deus, onde somos Nada, onde criamos e somos criados, onde mergulhamos no sem-tempo, no sem-futuro, no sem-passado, no fluir eterno.
E
Meu Prazer segue, e não é um espetáculo linear, muito pelo contrário, pois o momento do êxtase logo se transmuda em movimento, em mais música e mais corpo, mais espaço, mais beleza.
Outro momento forte, desta vez um acrobático
pas de deux masculino (que me remete aos inesquecíveis Béjart), forte, de um erotismo transfigurado; uma entrada de um universo fálico em um espetáculo que transborda uma feminilidade arquetípica; um erotismo grego, pré-cristão; como os verdadeiros jogos olímpicos de uma arcádia que já se foi; como uma leitura coreográfica do Banquete de Platão ou de um poema de
Kaváfis.
Ao final, a dançarina solitária, com os movimentos repetitivos e olhar e o esgar que nos fazem supor um êxtase, é como uma
Santa Tereza de Bernini, a imagem do êxtase, como as mulheres o sentem, o misterioso orgasmo feminino ("
mas afinal, o que querem as mulheres?" pergunta Freud), enquanto a luz vespertina se torna noite, e o brilho dos elementos do cenário que rompem o escuro e que vão ficando nas retinas dos espectadores, junto com os movimentos e olhares da dançarina, exatamente como um orgasmo, como o que fica quando se goza e fecha os olhos e cores e formas nos indicam que sim, desta vez chegamos lá, e lá estamos, e este é o Paraíso de onde fomos expulsos mas onde só voltamos ao gozarmos. Silêncio. Palmas. Cortinas fechadas. Palmas. Obrigado, Márcia, Beatriz e Gláucia. Obrigado, Al Crispinn, Ana Amélia Vianna, Felipe Padilha e Fernanda Reis. Obrigado.
Outros links:
Marcia Milhazes no Youtube
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