Hoje, 4 de novembro, ele faria 90 anos. Meu pai. Escorpião (como eu, ou melhor, eu sou Escorpião como ele). Uma vida interessante, uma perpétua busca.
Família tradicional nordestina, uma família patriarcal como se lê em romances, e que existia realmente, no início do século XX. O pai de meu pai (meu avô, de quem herdei o nome), o Coronel Jozias, certamente cristão-novo, um mascate que construiu um Império, em um porto longínquo do Nordeste brasileiro, na beira do Delta do Parnaíba: Amarração, a cidade depois batizada Luiz Correia, como seu irmão mais novo, tio de meu pai. Quando meu pai nasceu, caçula de 14 irmãos, o Império já era comandado pelo filho mais velho do meu avô, o maquiavélico Zeca Moraes; meu pai, filho caçula-temporão, era como que neto do pai dele, o que lhe permitia ser um pouco mais moderno, o Antonio, o artista.
Estudou no Rio, início dos anos 1940, dividiu quarto em pensão na Rua das Marrecas com
Augusto Rodrigues, era amigo de
Santa Rosa, de
Pancetti; com eles, artistas jovens, frequentava o atelier do mestre
Portinari, no Cosme Velho; misturava tintas, tinha um bom desenho, recebeu uma menção honrosa com um desenho no importante Salão de Belas Artes. Enquanto isso, estudava, ia ser arquiteto (o primeiro arquiteto da familia patriarcal que tinha comerciantes, diplomatas, políticos, mas que girava em torno do dinheiro da exportação da então riqueza do Nordeste, a
cera da carnaúba). E fazia aventuras, foi um dos pioneiros a escalar, com amigos, o pico das Agulhas Negras, no Itatiaia, então o ponto culminante do Brasil, o que rendeu uma grande matéria na revista
O Cruzeiro, com muitas fotos.
Na Rua Santa Clara, em Copacabana, a casa da irmã, Maria Alice, costureira de alto nível, modista, o que hoje chamaríamos de estilista; nos finais de semana meu pai saía da pensão da Rua das Marrecas e ia almoçar na casa da irmã, se sentir na família patriarcal, manter os laços com o longínquo Piauí, o Delta, as carnaúbas, a riqueza verde, exportada para os Estados Unidos e matéria prima para tanta coisa antes da descoberta do plástico, até para os discos em 78 rpm que levavam em seus sulcos as vozes do momento. Carmem, a Miranda; Frank, o Sinatra; eles todos tinham suas vozes registradas para a eternidade graças à cera da carnaúba que saía dos campos do Piauí para a América do Norte nos navios dos Moraes Correia.
Uma lenda familiar diz que o sobrenome Correia é a maior prova de cristão-novos que somos, na verdade uma adaptação do sobrenome Cohen. E os Cohen-Correia, que fizeram a vida como mascates no Nordeste, do Rio Grande do Norte para o Ceará, para o Piauí, e acumulando, pouco a pouco, economizando, construíram este império de exportação da cera de carnaúba.
A vida de meu pai tem rupturas, em algumas ele é invadido pela realidade adversa, em outras me parece que ele opta por uma ruptura. Compreendo bem isso, eu também herdei esta compulsão por rupturas, por apagar tudo e começar de novo, o que hoje entendemos como a tecla DEL.
Ele estava muito bem no Rio, mas foi passar férias em Parnaíba; as férias devem ter sido maravilhosas, pois ele perdeu os prazos todos para entrar na Faculdade de Arquitetura, ia ser aluno do Lucio Costa; deixou malas no sótão da casa da irmã, nas malas nada menos que 3 telas do Pancetti, deixou tudo, e começou vida nova. (Os Pancetti perdidos são outra lenda na família, imaginamos que ficaram no sótão de Tia Maria Alice até que a casa da Rua Santa Clara foi vendida e derrubada para a construção de um prédio, o fato é que se foram, se perderam)
Vida nova: o novo patriarca, meu tio Zeca, achou que estava na hora do jovem Antonio entrar na realidade, e o mandou para uma temporada de estudos em NYC. Em paralelo, ele estaria em contato direto com os compradores da preciosa cera de carnaúba, e atuaria, como uma pessoa da maior confiança, como irmão, nas manobras contábeis de super e sub faturamento das exportações.
Ah sim, e também nestas férias que imagino maravilhosas, meu pai conheceu, e teve um namoro, com minha mãe, na festa de 15 anos dela, o que antigamente era um evento, a debutante; isso também é outra história, que merece um capítulo a parte.
Assim, deixando o Brasil, a Faculdade de Arquitetura, as tardes no atelier do Portinari, as telas do Pancetti, o flerte com minha mãe, tudo isso, meu pai aperta a tecla DEL e chega em New York, para um curso na
Columbia University e também para trabalhar, controlando de perto os importadores americanos da preciosa cera de carnaúba.
Era época da guerra, NYC não parava, como hoje, mas os homens jovens estavam, em sua maioria, fora, nas manobras da Guerra na longínqua Europa (muita literatura sobre isso, e alguma literatura sobre como ficou NYC vazia neste tempo).
Além de bonito, simpático, inteligente, uma aura de
latin-lover, o Antonio se beneficiou da baixa na concorrência, e entre as aulas na Columbia, fazia a vida noturna em uma NYC maravilhosa...
The Copa, Jazz in
Harlem, Village... Uma das namoradas era modelo da
Saks 5th Avenue, e as fotos da linda americana, sulista, com casacos de pele, ficaram com ele; uma carta onde ela diz que precisa casar com o noivo da cidade sulista, mas que se ele, Antonio, dissesse que sim, ela cancelaria o casamento.
Mas ele voltou (DEL), o Brasil, Parnaíba, o Império o esperavam. Trouxe novidades dos USA, hábitos considerados excêntricos pela família patriarcal (um deles, piada na família: em um almoço festivo, mandou servir uma salada de frutas como entrada; o pai, meu avô, apenas perguntou, com a voz rouca, se o almoço estava terminando pois já era servida a sobremesa).
Enfim, o casamento com minha mãe, moram em São Luiz do Maranhão, ele é um grande vendedor, grande negociante, os negócios vão bem, nascem os filhos, crescemos todos. Um casal perfeito, uma família perfeita; ideias avançadas para a época (exemplo, os filhos de todas as familias nordestinas nos anos 1950 eram costumeiramente espancados como método educativo; meus pais conversavam conosco sobre o certo e o errado, o que causava espanto entre as outras famílias).
Anos 1960-70, o auge e a débâcle. Os negócios vão bem, muito bem. Na estreita sociedade de São Luiz do Maranhão, meu pai e minha mãe são referências, em contato sempre com o que há de moderno.
Compram um apartamento no
Parque Guinle, no Rio, uma obra-prima modernista; ao mobiliar, mesa de jantar do
Terneiro; em temporadas no Rio frequentam a sociedade carioca, e em São Luiz mantém uma casa aberta para os intelectuais e políticos, uma tendência para a esquerda, claro.
Viagens frequentes aos Estados Unidos (meu pai passa a vender também aviões Piper, produzidos na Pensilvânia, e, nos seus quarenta anos, aprende a pilotar e passa a atuar como co-piloto em todos os aviões que importa). Fiz umas viagens destas com ele, e uma lembrança inesquecível é a do meu pai me apresentando o MoMA; me apresentando a NYC que ele tanto viveu, e me incentivando a voltar, a ficar, na Capital do Mundo.
Logo são os anos da ditadura. Uma lembrança, boba, que tenho, é a de meu pai me explicando que naquele ano (1964? 1965?) não teríamos férias no Rio; era o período do arrocho econômico feito pelo Roberto Campos, e a baixa na atividade econômica afetava todos; eu teria que me preparar para viver as férias no Olho d'Água mesmo (tudo bem).
A atividade de meus pais com a intelectualidade logo se torna uma atividade política. Eles se filiam ao MDB (não o PMDB de hoje, fisiológico, mas o autêntico, de combate à Ditadura). Em 1966 participam de uma campanha política, apoiando Renato Archer como candidato a Governador (contra o José Sarney), meu pai como candidato de protesto a Senador obtém expressiva votação e minha mãe é eleita vereadora de São Luiz. Quem ganhou a eleição? e como? o José Sarney que hoje todos conhecem.
Na época, Glauber Rocha esteve em São Luiz para fazer um documentário sobre a eleição do Sarney, o documentário existe e muitas cenas foram aproveitadas em Terra em Transe; o Glauber filmava o Sarney, mas às noites ele ia, com os intelectuais da cidade, à casa dos meus pais, no Olho d'Água, pois era o lugar onde havia uma conversa inteligente, um whiskey do bom e umas casquinhas de caranguejo deliciosas.
Mas a atividade política de meus pais, o combate à Ditadura, teriam consequencias.
Depois da política recessiva do Roberto Campos, o Brasil entra na época do
Milagre Brasileiro. Expansão, crédito ilimitado, crescimento,
este é um país que vai pra frente, 90 milhões em ação, pra frente Brasil...
Uma combinação fatal para o país, que gastou, se endividou e depois amargou concordatas e
hiperinflação. No caso do Brasil, conseguimos nos recuperar, porém para meu pai, a combinação foi fatal. No Milagre Brasileiro, ele foi forçado a expandir ao extremo seus negócios, aplicando em devedores sem condições de saldar suas dívidas; os créditos podres que vimos depois em muitas crises do capitalismo; os devedores não pagaram e ele teve que assumir as dívidas com seu patrimônio. Aliado a isso, as posições políticas dele e de minha mãe não os tornavam exatamente simpáticos para os dirigentes, os ditadores.
Depois, tudo se precipita.
As empresas são fechadas. Oficiais de justiça acossam meus pais com citações. Os devedores aproveitam e não pagam, já que as contas todas vão para meu pai. As autoridades dão respostas negativas, em um massacre com fundamentos políticos. Os credores não fazem acordos, e muitos se aproveitam da situação para comprar "na bacia das almas" bens da família levados a leilão, inquilinos aproveitam para furtar coisas de valor, antiguidades, para se dizer posseiros de imóveis da família. A meta é: calar meus pais, humilhá-los, aniquilá-los.
E em 1977, setembro, a hipertensão do meu pai explode em um AVC. Momentos terríveis, a exigir a união de nós, filhos, em torno de minha mãe, a exigir muito de uma família que, em poucos anos, caiu violentamente.
Meu pai se recupera, mesmo com sequelas. A fala enrolada, difícil, o lado direito com poucos movimentos, o andar claudicante. E o espírito de luta. E começa outra vida, com uma deficiência, fazendo pouco caso das limitações. Recupera o que ele gostava de fazer, artes, a fotografia. Reaprende a empunhar a câmera, uma Nikon analógica; a desenhar, com o lado esquerdo apenas.
Transformado em um andarilho, viaja, sozinho, com sua câmera, pelo Brasil. Viaja, vai aos Estados Unidos várias vezes, visita minha irmã que mora em Atlanta, vai ao Rio aonde moramos eu e minha irmã mais nova, volta a Teresina onde minha mãe fixou residência para tomar conta de minha avó, sua mãe, doente; mas ele nunca é dependente, circula por todos os lugares, fotografa, expõe suas fotografias.
É outra ruptura, desta vez externa, provocada pela doença; que marca uma nova vida para ele; e que ele bem aproveitou, nunca deprimido, sempre animado, sempre disposto, viajando, pegando ônibus e às vezes carona em caminhão, sempre com a sua câmera e registrando o mundo em fotos.
Fotos, fotos, fotos. Meu pai, o Sr. Antonio. Uma obra que evoluiu silenciosa, que se fez de registros, que resistiu a ser calada, que se rebelou, que gritou, que estava à frente, que se alimentou de adversidades e de rupturas, que viveu uma transição entre um mundo patriarcal e um mundo moderno, que investiu nos filhos, na liberdade e no livre-arbítrio dos filhos, para o futuro; ancorado em um passado mas sempre voltado para um futuro; que nos ensinou a, sempre, sempre, nos superarmos. E nos ensinou o valor da tecla DEL. E, principalmente, da tecla FORWARD.
Em 1994, ele se foi. O corpo frágil (ficou um ano inteiro sem consciência, alimentado por tubos, sob a vigilância de minha mãe), as fotos se desbotam, a memória se esvai, as pinturas precisam de restauro, os filhos tem outras prioridades, ninguém mais se interessa pelo Milagre Brasileiro, muito menos pelas vítimas do Milagre, a memória é curta e o tempo é pouco.
Este é meu pai, o Sr. Antonio Severiano de Moraes Correia. Hoje, 90 anos, uma data. Mais que isso, uma presença, inesquecível, não só para mim e minhas irmãs, mas para quem conviveu com ele, em vários momentos, sempre sobrevivendo na adversidade.
Meu Pai. Parabéns. Estamos com você, sempre.