sexta-feira, 31 de julho de 2009

Iran do Espírito Santo na Artur Fidalgo

Depois de três semanas direto na secura de Brasília (umidade 18%), o Rio com chuva me parece o paraíso, saio na rua sem abrir o guarda-chuva e me impregnar desta garoinha de quinta-feira, me sinto feliz. E vou a um lugar que me lembra minha infância, o Shopping Center Copacabana é um Shopping Center pré-Shopping Centers, quando o conceito se aplicou a uma construção modernista, três andares de lojas ligadas por uma rampa em espiral e por cima blocos de apartamentos pequenos, a ocupação de Copacabana nos anos 1950-60. Minha infância: no início dos anos 1960 eu morei com minha avó na Rua Toneleros e aos domingos subíamos a rampa em espiral do Shopping para assistir a missa numa igreja modernista na cobertura; acho que não deve mais existir a Igreja; e minha avó não era moderna, pelo contrário, não sei bem por que ela preferia esta Igreja e não as outras de Copacabana; minha tia estudava Direito na PUC e era ligada ao movimento estudantil, UNE; talvez por isso, minha avó faria uma pequena concessão ao "moderno" para conseguir assim levar minha tia à missa; eu iria de qualquer jeito, pois subir a rampa em espiral era para mim uma aventura sempre renovada.
Depois, o Shopping se transformou em Shopping dos Antiquários, e estão todos lá; e os brechós; e a loja de objetos moldados em gesso. E, surpreendentemente, duas ótimas Galerias de Arte, Artur Fidalgo e a Novembro (esta, para minha tristeza, soube que mudando para São Paulo): espaços de arte e cultura do mais alto nível no meio do burburinho do local.
E com a exposição do Iran do Espírito Santo, a galeria se transforma em um verdadeiro enclave zen, um espaço onde a tônica é a precisão, o silêncio cheio de significados, uma estética concisa e eficaz, uma poética que vai direto ao alvo, uma transcendência contida e intensa.
Como nos conceitos do budismo, a precisão do arqueiro zen, a forma exata e eterna.
Uma parte da exposição são objetos. Simples objetos, um copo com água, uma caixinha de filme fotográfico, uma lâmpada, um espelho de parede, uma lata de fermento em pó Royal. Só que não são os "simples objetos", e sim a ideia platônica destes objetos, ou os objetos transfigrados em zen: a caixinha de filme é esculpida em mármore cinza, maciça, com peso; a lâmpada é cromada; a lata de fermento em pó tem o dobro das dimensões da lata original e é moldada em aço maciço, é pesada, a tampa não abre; e o copo não contém água, é esculpido em cristal, maciço, o que parece água é o cristal e portanto ele tem um brilho muito mais intenso que teria o copo com a água; mas não são símiles, não tentam passar pelos objetos reais, eles são mais reais que os reais.
Após ver o copo com água do artista, todos os outros copos que eu olhar em toda a minha vida serão pálidas cópias daquele copo, ele é O COPO, eterno, transcendente, "o molde" utilizado pelo "criador" para todos os demais copos, estes apenas copias imperfeitas.
Outra parte da exposição explora as gradações de cor, na verdade de tom, de um branco total pelos cinzas a um preto total, também uma ideia zen.
Um trabalho, que para mim seria a chave destes trabalhos sobre as sequencias cromáticas, é uma ampliação fotográfica, preto e branco; para quem como eu já trabalhou em laboratório fotográfico (dos analógicos, claro), é fácil entender o processo: uma máscara sobre o papel fotográfico, a cada exposição a máscara se move, de forma regular; ao final, temos uma série do preto (a parte que ficou mais exposta) ao branco (a última parte onde a máscara parou). O artista refaz este conceito em quatro desenhos, usando uma caneta marcadora, em linhas rigorosamente paralelas; ao iniciar, as linhas são negras, e à medida que a caneta se gasta, surgem os cinzas, até um branco final; o resultado é pintura, um chiaroescuro; minimalista sim, mas uma referência ao barroco.
E o ápice das sequencias de tom é a instalação que ocupa as maiores salas da galeria: duas paredes com as listas verticais em gradações perfeitas, do branco ao preto e do preto ao branco. Apenas isso, ou tudo isso.
Uma excelente exposição.
E para mim, como bônus, a conversa agradável com o Artur, me contando sobre o artista, a produção da exposição, o rigor do trabalho e, além do trabalho, a preocupação com as tudo que faz parte da feitura, da embalagem, da veiculação, do trabalho.
Outro bônus, um filme feito na exposição do artista em sua galeria nova-iorquina, ouvir comentários do artista sobre seu trabalho, e até um comentário muito interessante: ao falar sobre um de seus trabalhos, "Deposição" (minimalista, um objeto encostado na parede da galeria que é como que uma simples porta negra), o artista diz que sua referência para este trabalho foi a "Deposição de Cristo", pintura do Caravaggio. Para mim, saber desta ligação, esta consciência, de um trabalho tão contemporâneo, tão clean, ter uma ligação com a tradição da pintura, com um pintor como Caravaggio, é algo que acrescenta outra camada de entendimento ao trabalho do Iran, e me faz gostar mais ainda da exposição.
Como quando eu subia a espiral para a missa dos domingos, ver a exposição e pensar sobre ela me trouxeram uma sensação renovada de transcendência, que me acompanha pelos outros momentos de corre-corre do meu dia de trabalho.

Um comentário:

Carluz disse...

Jozias,grato pela sua generosa genialidade ao nos transportar para a rampa em espiral,com seu olhar e texto tão precisos.Iran,que espírito santo!A foto do copo d'água esculpido no cristal,chega a dar sede de deserto.Arrebata.Com você,Jozias,nosso guia,sempre estamos em excelente companhia.