No Rio, vejo os jornais velhos que estão me esperando em uma pilha que não para de crescer, é um trabalho de um Sísifo pós-moderno; eu leio o jornal todos os dias pela internet, onde quer que eu esteja; mas mantenho no Rio a assinatura que me coloca, fisicamente, os jornais de minha cidade, como um prazer e uma obrigação (tenho medo que a pilha, precariamente colocada sobre uma velha cadeira do
Philippe Starck, caia ou, pior, invada a sala e o apartamento todo).
Uma taça de vinho, uma torta de bacalhau e em uma Revista
O Globo um tanto antiga, de 15 de março, duas matérias me chamam a atenção e servem de material para o blog.
A primeira,
A Nova Arte, coloca para os milhões de leitores da grande midia a tendência que tenho acompanhado e explicitado no blog: novas alternativas ao circuito de arte, como o Projeto Acervo, a exposição recente da galeria Arte em Dobro, os Clubes de Colecionadores dos MAM (Rio e SP), que ampliam o circuito possibilitando aos interessados a aquisição de obras de arte (múltiplos e, no Projeto Acervo, obras únicas), a preços/condições mais em conta; este grupo de novos colecionadores fortalece o circuito; e amplia o circuito além do grupo dos grandes colecionadores e colecionadores institucionais; algo que já existe nos mercados mais consolidados, USA e Europa, e que no Brasil se iniciou na fase do chamado "fastígio da gravura" nos anos 1960, com ressurgências nas serigrafias e litografias dos anos 1970 e a sempre tentativa de fazer o mesmo com a fotografia em tiragem assinada.
A diferença, acho eu, da tendência moderna para as experiências anteriores, é que antes se partia para "vamos multiplicar a oferta" (centenas de litos do Volpi com a aura da assinatura do artista "equivaleriam" nesta equação a uma única tela do mestre?); e agora se parte para "vamos multiplicar a demanda", ou seja, criar novos mercados, para múltiplos, obras únicas, fotografias, videos, o que seja, importante é abrir novas frentes, trazer novos consumidores de arte para o mercado, para o circuito. Ao meu ver esta nova estratégia é mais eficaz que a anterior, e a matéria da revista mostra: o publicitário que foi o primeiro colecionador do Projeto Acervo e que em 6 anos comprou 70 obras de arte (parabéns pelos Felipe Barbosa, são demais!).
A outra matéria, páginas adiante, e chamada na capa, é sobre o consumismo: "
em plena crise financeira, histórias de cariocas que lutam para deixar de comprar compulsivamente". São histórias de consumistas compulsivos, alguns famosos (Preta Gil com foto ninando sua maravilhosa bolsa Louis Vuitton com design do street artist
Stephen Sprouse , adoro; a escritora Maria Carmem Barbosa e seu vestido vintage do Georges Henri...) outros anonimos (a professora de dança que é viciada em produtos de papelaria...).
Em meio ao texto descrevendo uma "patricinha", Alexia Schultz Wenk, moradora do Jardim Pernambuco, lugar exclusivo de casas de ricos no Leblon, compradora compulsiva de grifes como Prada e Balenciaga a preços "em conta" em brechós, pontas de estoque e liquidações em NYC (adoro!), descobre-se o link entre as matérias: Alexia "
confessa a sua nova mania: comprar obras de arte. A mais recente paixão é um 'Lula na caixa', de Raul Mourão". O ciclo se fecha.
Outra taça de vinho, branco, harmonizando com o lindo sábado de sol e não com o bacalhau, e penso. Haverá algo em comum entre isso tudo, entre o colecionador de obras de arte, a consumista de sapatos, de objetos de papelarias ou de caríssimas bolsas de grife?
A palavra chave é (
read my lips) o.b.s.e.s.s.ã.o. Ela motiva os colecionadores, as crianças que não dormem até fechar o album com aquela figurinha dificil, os adultos que compram sem parar perfumes, sapatos, bolsas, ações, imóveis... e também os adultos colecionadores de obras de arte...
Eu poderia estar roubando e estou aqui neste ônibus vendendo balas Halls... Eu poderia estar comprando Ferraris e estou aqui comprando Frans Hals...Bom, nada contra, de verdade, eu também um obsessivo. Falei no blog sobre minha relação com a compra de uma obra de arte, a partir de um diálogo com o pintor Álvaro Seixas ("
por que você comprou minha pintura?"). E é importante que se agreguem novos "obsessivos" ao circuito, que (como eu) não se contentam com ter só um trabalho do artista, queiram ter um de cada fase, depois queiram ter um de cada fase e vários das melhores fases etc etc etc... Além disso tudo, um toque básico: os sapatos e bolsas velhas podem ser revendidos etc. mas dificilmente terão valor agregado; enquanto que, no longo prazo, para quem escolhe bem, as obras de arte terão valorização constante e em alguns casos (raros, é claro) exponencial.
No lançamento do catálogo da exposição do Rubem Grilo, na Caixa Cultural, encontrei os colecionadores
George e
Monica Kormis, meus contemporâneos do curso de Economia na PUC no início dos anos 1970, e hoje importantes colecionadores de arte, com uma coleção voltada para a gravura brasileira que tem sido objeto de várias matérias e exposições, a melhor a da própria Caixa Cultural, em 2008.
Na conversa, George me relembrou uma situação que eu mais ou menos havia esquecido: no início dos anos 1980 Franco Terranova teve que fechar a
Petit Galerie no espaço da Rua Barão da Torre (um espaço maravilhoso de exposições e também, nos andares de cima, onde Rossella Terranova fazia as suas fantásticas aulas de alongamento com dança e que eu tive a felicidade de fazer e me sentir alongando e descobrindo pedaços adormecidos do meu corpo); e fez isso com um "Leilão de Parede" do seu acervo: os trabalhos ficavam expostos e os compradores davam seus lances escrevendo em papéis fixados na parede ao lado de cada trabalho; uma experiência engraçada pois subvertia o paradigma dos lances sequenciais dos leilões tradicionais, ao invés dos lances se sucederem
no tempo, se sucediam
no espaço, até o momento do fechamento, previamente definido, do leilão.
O acervo do leilão era o máximo, imagine um galerista que esteve com sua Petit Galerie ao lado de todo o movimento de artes nos anos 1960, 70, 80; que trouxe muitos artistas de fora, e que abriu espaço para muitos artistas brasileiros que se firmaram internacionalmente. Tudo lá, os internacionais e brasileiros consolidados a preços altos, mas também boas opções a preços adequados para jovens colecionadores...
Enfim, uma hora destas estamos eu e George Kormis disputando algumas peças, conversamos, combinamos não competir entre nós, dividimos os interesses, fizemos nossos lances, e o leilão se fecha.
Hoje, 20 ou mais anos depois, ao conversarmos, George lembra com detalhes a peça que ele "perdeu" para mim (um lindo Antonio Manuel, um trabalho da série dos
flans de jornal com intereferências de desenho, pintura e colagem, cinco cenas de estudantes apanhando da polícia). Mas a que ele levou, á época, deve ter parecido a ele a mais acertada, uma linda pintura sobre papel, grande, do José Roberto Aguilar; que provavelmente ele não terá mais, já que ele e Monica optaram acertadamente por focar sua coleção.
Hoje, tanto tempo depois, George Kormis lembra do Antonio Manuel que não comprou, e me pergunta: se eu ainda tenho o trabalho; e se um dia eu quiser me desfazer dele, se eu consideraria dar prioridade a vendê-lo a ele.
Meio surpreso (gosto do trabalho, sim, mas nem me lembrava muito da situação em que o comprei), demoro um tempo até entender. George lembra com detalhes (mais que eu), descreve o trabalho que ele não vê há 20 e poucos anos, e que teria um lugar em sua coleção focada em gravuras brasileiras, por mostrar, no caso, a utilização da técnica de gravura associada a intereferências.
Pois, diz George, "
as pessoas tendem a só pensar em gravura para a reprodução exata, a multiplicação de clones, todos iguais; na verdade se o artista usa a reprodutibilidade e interfere sobre ela (como se se colocasse, por exemplo, um brinco em um Goeldi), não deixa de ser uma gravura, e portanto está dentro do foco de nossa coleção."Registro o interesse do colecionador sobre a obra que está comigo; e penso, em casa, sobre o assunto.
Sobre a memória do colecionador, que faz com que o George, mais de 20 anos depois, lembre até com mais detalhes que eu, que vejo em meu dia a dia, uma peça que ele "perdeu" e que poderia estar na coleção dele; uma visão atual, pois à época ele certamente não imaginava ainda para onde iria sua coleção, e como aquela obra se encaixaria melhor na sua coleção 20 anos depois do que a obra que ele escolheu.
A memória, o desejo, de isso somos feitos, os colecionadores, as crianças que conquistam suas figurinhas "no bafo", os adultos que perseguem sem cansaço um ideal de coleção completa. As coleções que crescem, tomam vida própria, conseguem uma coesão e uma coerência; ou as que fluem como mato, sem outra coerência que o prazer de colecionar. A ideal, o mito de completar uma coleção; como aquelas figurinhas difíceis dos álbuns de infância, que tinham seu valor multiplicado, o prazer de abrir um envelope e encontrar, entre as fáceis, uma tal figurinha difícil. E completar uma coleção que nunca se completa, pois colecionar é viver, é evitar a morte, e uma vida nunca está completa.
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