Conheci
Mark e
Beth Walton há muito tempo (final dos anos 1970), em
Arraial do Cabo, RJ, onde tive por décadas uma casinha de pescador que aos poucos reformei; eles moravam perto de minha casa, na areia da Prainha, e Arraial ainda era uma cidadezinha tranquila, "um paraíso" como dizíamos, nadando nas águas tranquilas e mornas da Prainha ou nas águas agitadas e geladas da Praia Grande.
Mark e Beth eram professores de inglês em Cabo Frio (ela, carioca do Leblon; ele, um inglês bem inglês), e para complementar a renda, abriram o que no início era um restaurante caseiro, na sala de jantar e varanda da casa onde moravam. Serviam: Pratos feitos (PF) com peixe, arroz, feijão e batata frita; saladas; bolinhos de bacalhau, cerveja bem gelada; uma conversa interessante e culta; lembranças e fotos de viagens. Mark era fotógrafo, tinha feitos cursos no Parque Lage, o que era um ponto em comum comigo. Um lugar perfeito para um almoço tardio após uma praia deliciosa. E o nome do restaurante, um achado:
Todos os Prazeres (às vezes escrito, claro:
All the Pleasures).
Com o tempo, Mark e Beth foram ampliando a casa e o restaurante e também ampliando o foco de suas viagens (Grécia, Índia, Marrocos, Tailândia, Turquia, Jordânia, Bali...). Deixaram as aulas de inglês para se dedicar totalmente ao restaurante; e o restaurante cheio no verão (um trabalho extenuante para eles e a pequena equipe) possibilitava as viagens de 2 meses por destinos exóticos, de onde traziam receitas, temperos e histórias sempre interessantes. Com o sucesso da culinária, puderam melhorar o padrão do restaurante e torná-lo mais exclusivo: a primeiras "vítimas" foram as batatas fritas e os PF, substituídos pelas receitas novas e criativas. Começaram a trabalhar com reservas, a não aceitar aqules grupos grandes de mesas com muita cerveja e barulho e poucos pratos. De cozinheira, Beth se tranformou em uma
chef, com muita pesquisa, estudo e experimentos, e sobretudo um bom gosto ímpar.
Como vizinho, amigo e frequentador de todos os finais de semana, logo me tornei o "cobaia" de receitas novas, o que era um ritual sempre renovado: no cardápio, um prato novo; pergunto detalhes, hesito, me decido, peço; provo, sentindo a expectativa da garçonete (querida Regina) e intuindo a expectativa da
Chef no seu santuário; meu sorriso de aprovação é levado pela Regina, já aliviada em sua expectativa; e ao final da refeição, Beth vem à mesa me ouvir, discutir comigo minhas impressões sobre a novidade no cardápio. Alguns pratos saem do cardápio, mas para mim estão sempre disponíveis, pois são os meus preferidos e afinal eu sou amigo, vizinho, de casa...
E novidades inesquecíveis: moqueca de jaca mole (as línguas de jaca em seus caroços, o curry e o dendê, um prato de inspiração indiana em sincretismo com a Bahia); jabá com jerimum desconstruídos (finas lâminas de abóbora
al dente com carne seca cortada bem fina, quase um
carpaccio); coelho com molho de chocolate amargo; couscous marroquino; postas de peixe com molho de tamarindo; framarão (prato tipo um
yakisoba, com pedaços de peito de frango e camarões enormes)... Bem, e estou falando dos anos 1980, hoje alguns destes pratos já são mais familiares, mas na época eram total novidade; ainda não havia a abertura para importações, assim alguns ingredientes eram trazidos nas malas das viagens do casal. Foi a primeira vez que comi o couscous fora do Marrocos; hoje vende em supermercados, mas na época eles trouxeram caixas e caixas, de uma viagem; e o prato ficou no cardápio só enquanto durou o estoque. Outros ingedientes eram improvisados ou pesquisados (por exemplo, a pimenta rosa, colhida por eles em Búzios)...
Nos anos 1990, a cidadezinha cresceu, e creceu mal: favelização, escalada de violência, tráfico, invasões; o fechamento da Álcalis, a empresa em torno da qual Arraial começou, nos anos 1940-50, acelerou este processo: menos empregos para os moradores, em especial os jovens; invasões, condomínios imensos sem respeito ao meio ambiente, lixões, foram ocupando os terrenos que a Álcalis antes ocupava e preservava, manchando irreversívemente as dunas; e o populismo dos políticos; destruindo o maior patrimônio da cidade: sua beleza natural, sua tranquilidade; transformando a cidade perfeita para um turismo diferenciado em uma cidade para um turismo predatório.
Uma noite inesquecível: depois do Carnaval, findo o verão, a cidade esvaziava, era o período em que eu gostava de tirar férias e ficar os ainda longos e quentes dias ao sol, na praia quase deserta, lendo o meu Proust, tomando cerveja bem gelada. Em um destes dias, numa 2a.feira, o dia em que o restaurante não abria, o convite para jantarmos com Mark e Beth. Pela primeira vez subi as escadas que separavam o restaurante da área privativa do casal; e a noite foi de um menu degustação (também isto era uma novidade na época): dezenas de pratinhos individuais com pequenas porções das especialidades da
Chef, algumas no cardápio, outras experimentais, outras feitas personalizadamente para os convidados. Vinhos fantásticos, também trazidos de viagens (nas férias eles sempre somavam aos destinos exóticos uns dias de Europa), outras bebidas diferenciadas (um
cocktail feito por eles para mim exclusivamente, era o que chamávemos de "Limpol": um coquetel com cor e aparência verde brilhante do desinfetante com esse nome, um aroma de menta, e que tinha o poder mágico de secar minhas lágrimas), música de países distantes... Uma conversa sobre o futuro, sobre a preocupação deles com a transformação de Arraial, com as dificuldades com vizinhos que poluiam a praia, se sentem "espremidos", o
Todos os Prazeres está ficando quase que como um ilha de calma e classe em meio a uma selva barulhenta e hostil... e os desejos de um futuro em outro lugar que se parecesse à Arraial de antigamente... Uma noite onde partilhamos, Beth, Mark, Sebastian e eu, de uma intimidade e de momentos mágicos, que pareciam eternos e que, depois eu compreendi, eram como que um prelúdio de um fim.
Alguns meses depois, Sebastian morre. Mais alguns anos e coloco à venda a minha casa, minhas idas a Arraial passam a ser bem espaçadas, agora quero conhecer outros lugares - Paraty, Ilha Grande, Penedo... Por amigos comuns sei que Mark e Beth conseguem vender o restaurante, um bom negócio, e saem do Brasil para sempre, com primeira parada em Londres, mas em busca de outros novos paraísos onde recomeçar o seu sonho.
O restaurante continua, o novo dono mantém o nome, o cardápio, a Regina e demais funcionários (uma preocupação de Beth e Mark); aos poucos, porém, teve que fazer adaptações. O livro de receitas acabou sendo só um projeto. Hoje, vejo na internet, o
Todos os Prazeres é uma pousada.
Em 2006, antes de vir morar em Brasília, fui rever Arraial, depois de anos sem ir à cidade. Revi minha antiga casa (irreconhecível, pelo menos não cortaram as árvores), fui à Prainha; revi, de longe, o
Todos os Prazeres...
E em final de 2006, a notícia chega a mim, atrasada e arrasadora: Mark e Beth haviam descoberto o novo paraíso, abiram seu novo
All the Pleasures em
Bali, na Indonésia, e estavam indo bem com o restaurante. Até que veio o
tsunami de dezembro de 2004, devastando o Oceano Índico e fazendo centenas de milhares de mortos, deixando milhões de desabrigados... não sei de mais detalhes, apenas imagino em minhas noites de insonia, o que sei é que entre os mortos no tsunami estão meus amigos, Mark e Beth Walton, mortos ao trabalhar para reconquistar seu paraíso destruído. O paraíso que todos nós perdemos, e que hoje existe apenas em minha memória.
(Escrevi este post em fevreiro de 2009. Agora, em início de 2010, um email trouxe um desfecho inesperado para a história, clique aqui para ler o novo post sobre esta reviravolta)