domingo, 27 de junho de 2010

O Projeto Acervo (e a lua cheia)

O convite veio meio misterioso, sem data e local. Mas logo depois recebi email do Leonardo Videla esclarecendo: a primeira edição do Projeto Acervo que seria feita na casa do colecionador, um espaço privado, com isso não seria tão aberto como os anteriores, a maioria feita no fantástico Espaço Bananeiras.
Sou um fã do Projeto Acervo, sou um feliz colecionador de uma edição (apresentada no Bar do Mineiro, também em Santa Teresa), acho uma ótima alternativa para romper o viciado circuito artístico, veiculando trabalhos de qualidade para novos colecionadores. O trabalho que o Leo Videla faz, de colocar lado a lado os artistas e os colecionadores, sem interferência do mercado, mas ao mesmo tempo sem detonar o mercado e sim entrando em um nicho, em uma lacuna deste mesmo mercado, é ímpar. E os resultados estão aí: 2 anos de Projeto Acervo, uma fila de espera de pelo menos 6 meses, artistas que fazem a diferença, colecionadores que também fazem a diferença; e cada vez mais, ousadia.
Enfim, um táxi (eu que não vou mais de carro para a night, a Lei Seca é feroz e eu acredito nela) que nos leva do Corneteiro (aggrrhh) da Visconde de Pirajá até o Curvelo. O portão é misterioso, mas é o numero que eu tenho; o táxi não pode subir; OK, subo a ladeira, resfolegando, no meio da mata aparecem construções modernistas, meu deus, será que estou no parque da Glass House? mas a paisagem é linda, as árvores, um bosque, mata atlântica, bem mais viçosas que na Glass House.
Aqui estamos, é um sábado a noite, o táxi nos deixou na entrada, subimos a pé uma ladeira fatal para os cardíacos. No meio da mata, aos poucos, vemos uma casa, moderna, concreto, espaços. Como pronta, como a fazer, como um vir-a-ser, sobre o morro, vigilante, cúmplice da luz cheia, guardiã de uma vista que mostra, de um lado, o centro da cidade com a ponte Rio-Niterói e uma promessa de montanhas e Dedo de Deus em dias de céu claro e do outro, um Pão de Açúcar majestoso.
A casa é linda, maravilhosa; e a coleção do Projeto Acervo está lá, em frente de uma parede de concreto. Ah mas a inveja mata e enterra; eu sempre achei que a minha edição do Projeto Acervo era o máximo, quando vejo uma nova edição fico louco. Fico louco mesmo, de inveja, de ódio, de ciúme, todas as emoções... vendo o objeto do Fernando de la Rocque, vendo o objeto sonoro do Franz Manata e do Saulo Laudares, vendo o desenho do Pedro Varela... Claro que nesta hora eu rezo a Deus, peço perdão, me lembro de como minha edição também foi excelente; mas colecionadores são assim, nunca satisfeitos.
Beleza, vamos beber um vinho, vamos conversar, vamos olhar a lua cheia que está colocada exatamente na linha do projeto de arquitetura, na verdade parece que a luz cheia é um adereço da casa. Vamos conversar sobre arte, sobre desejos, sobre a vida.
Escrevi algumas vezes aqui no blog sobre o Projeto Acervo, que mantém sua proposta e a cada edição me surpreende. Feliz o colecionador, que leva trabalhos de alta qualidade por um valor bem menor que o mercado cobraria; e trabalhos que tem uma ligação, uma curadoria, que aparece na exposição mas que ao mesmo tempo não é excessiva
Estão eles lá: a casa, clean; a arte; o conviver. Melhor que isso só dois disso. Quero dois, quero mil, um milhão. Enfim.
É a casa do colecionador, é o Projeto Acervo em sua primeira edição na casa do próprio colecionador. E que edição. Os artistas: Alexandre Vogler, Ana Holck, Arjan Martins, Fernando de La Rocque, Franz Manata e Saulo Laudares, Guga Ferraz, Leo Videla, Luiza Baldan, Pedro Varela e Tatiana Grinberg.
A história da casa: recente, nestes primeiros anos no terceiro milênio, o casal procura uma casa para comprar, em Santa Teresa onde sempre moraram, em apartamentos alugados. Procura uma casa antiga, para restaurar, bem no clima do bairro. Não é fácil, um dia encontram um terreno, um super terreno que sobe por uma encosta e, a cavalo desta, tem uma face para o centro e outra para Botafogo: de um lado a Ponte Rio-Niterói e em dias limpos até o Dedo de Deus; do outro o Pão de Açucar; no terreno, uma ruína apenas; e um desafio: construir uma casa, uma vida. Um colega de trabalho vê em uma revista obras de um arquiteto paulista, mostra a revista; ele marca um encontro, o arquiteto vem ao Rio, sobe a Santa Teresa, anda pelo terreno, sente o cheiro das árvores, navega pelo visual. Semanas depois o arquiteto marca outro encontro, vem de carro e traz um objeto: uma maquete do que ele pensava como solução para a casa.
A maquete é um determinante, ela se impõe mais que um jogo de plantas, ela é uma promessa e uma esperança, e assim o negócio se fecha. Cercado de críticas: como uma casa de arquitetura modernista em pleno enclave de arquitetura colonial? Como uma casa de arquitetura paulista em pleno Rio de Janeiro? Como, como, como? As críticas dificultam o andar da obra, a comunidade de Santa Teresa reivindica um projeto mais dentro da arquitetura tradicional... mas o casal segue em sua tarefa, construindo o que para mim é um monumento, uma obra prima da arquitetura.
O Rio na verdade acaba tendo poucas obras-primas de arquitetura, e desfigura as que tem, em um processo autofágico. O Rio é maravilhoso, a paisagem é linda, a montanha e o mar; e confia nisso, não cuida de sua arquitetura, desmonta coisas que deram certo, deixa a pobreza e a irregularidade invadirem bairros interessantes (a Gávea, por exemplo) e depois tem soluções urbanísticas de quinta categoria. Neste processo louco, Santa Teresa é um bairro que resiste, muito por conta dos moradores, tudo contra todos. A luta pelo bondinho é um exemplo, o poder público adoraria desligar o bondinho, trocá-lo por linhas de ônibus que trazem mais caixa 2 para as eleições; mas aqui não, Santa Teresa resiste e o bondinho permanece.
Da casa podemos sentir, do lado direito, outra boa ocupação do morro que foi a Chácara do Céu, do Castro Maia, hoje um museu; abaixo, na direção do Centro da cidade, lembramos de outra boa ocupação de um terreno em Santa, a casa/ateliê do artista José Tannuri. Sem medo de ser feliz eu poderia dizer que são os pontos altos arquitetônicos deste bairro, tão carioca e ao mesmo tempo tão modernos ou contemporâneos.
Fico muito feliz de estar nesta casa, bebendo um vinho e tomando um caldinho de feijão, conversando com os simpáticos donos da casa, com o Leo Videla, com os artistas. Penso que a vida é isso, e que existem alternativas, fora do viciado circuito de arte, para veicular trabalhos artísticos. Que arte e vida estão juntas, e se completam, mas que é muito difícil cuidar disso agora, nestes anos 10 do terceiro milênio; que ser artista é isso, batendo nas grades, tentando expandir espaços, derrubando as grades que nos prendem, as grades que são mais fortes quanto menos visíveis. Uma arte que venha não para validar o que está aí e sim para questioná-lo, para ser uma fissura no estabelecido, para ser o que falta, o que mina as estruturas, o que pergunta.
A lua está cheia e seu brilho cai sobre a piscina como uma noite de prata. Os objetos de arte do Projeto Acervo adquirem vida própria e se espalham pela casa pós-moderna, como objetos, como náufragos, como coisas.
Respiro fundo, a noite é fatal. A casa fica, as obras de arte ficam, mas tenho que ir embora, é tarde e tenho compromissos para o domingo. Um adeus me diz que estive em um momento fora da minha realidade, e que esta é uma realidade em paralelo. Gosto. Gosto muito.
Respiro fundo, sigo a trilha de volta, no caminho para casa. Bom. E perfeito, é a vida.

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