Antigamente, muito antigamente, os jornais no Rio eram publicados e distribuídos em faixas de horário, alguns jornais saíam pela manhã (o Correio da Manhã, claro, e o Jornal do Brasil) e outros saíam a tarde (o Diário da Tarde, claro, e O Globo), fora as inúmeras edições extras no decorrer do dia, quando assuntos palpitantes o exigiam: novidades sobre o caso Aída Curi, sobre o crime da Rua Sacopã, sobre a crise dos mísseis, sobre a renúncia do Jânio, sobre o assassinato de Kennedy.
Hoje parece estranho, mas não custa nada lembrar que não havia internet com as últimas notícias, e a TV não tinha esta abrangência que tem hoje, uma notícia importante de última hora só podia ser tratada por um "Alô, alô, o seu Reporter Esso em edição especial", com a voz empostada do locutor, sem imagens: "Da.llas.ur.gen.te...a.ssa.ssi.na.do.o.pre.si.den.te.Ke.nne.dy!!!". E o rádio, claro.
Os jornalistas não trabalhavam domingo, assim os jornais da manhã não saíam na 2a.feira, neste dia magro de notícias a solução seria aguardar O Globo da tarde; ou o Jornal dos Sports, impresso em papel cor-de-rosa (sem nenhuma conotação gay).
Quando vim morar definitivamente no Rio, no prédio modernista do Parque Guinle, em um verão escaldante, pedi duas coisas a meus pais: um aparelho de ar condicionado (na época, um luxo!) e uma assinatura do Jornal do Brasil, que eu me habituara a comprar todos os dias.
E eu lia, e devorava: as notícias, a política e, principalmente, o Caderno B.
Lá eu lia sobre o Tropicalismo, sobre o Estruturalismo, sobre a censura e sobre a nouvelle vague, sobre os filmes do Godard que eu ia ver depois, no Paissandu (eu estava na platéia na histórica sessão da 6a.feira quando o curta-metragem sobre a Betânia foi vaiado e Caetano falou bem alto para que todo o cinema ouvisse: "Betânia é um gênio!"); sobre as exposições no MAM que eu visitava no domingo a tarde, meio sem entender meio entendendo; sobre as bebedeiras no Zepelim e em um Ipanema mítico que eu não frequentava, ainda era um tanto criança, fazia o segundo grau no Colégio Zaccaria, fui à passeata dos 100 mil com o uniforme de calça cinza e camisa azul clara com uma flor de lis bordada no bolso, uma cara de garoto e um coração a mil.
À Cinemateca do MAM e ao Paissandu eu ia, mesmo com a carteira falsificada com uns anos a mais, quando completei 18 anos fiquei muito feliz e me senti adulto, já reivindicando com meus pais um carro (o tal fusquinha cor de café-com-leite); mas não às custas da assinatura do JB, esta era sagrada.
Quantos livros eu li, quantos filmes eu assisti, sem lê-los ou vê-los, apenas a partir das resenhas no Caderno B, quantos shows, quantas festas do que se chamava high-society, quantos festivais de cinema em Cannes, quantos happenings em Londres ou NY, quantos Les Deux Magots com Sartre e Simone? quantas vidas vivi nas páginas do Caderno B, nas crônicas do Carlinhos de Oliveira, nas colunas sociais da Léa Maria...
Uma resenha me mandou a Copacabana, uma tarde de sol, na Petit Galerie que era pequena mesmo, um corredor, a primeira individual do Antonio Dias, lembro como se fosse ontem: as pinturas/objetos viscerais que me perturbaram com sua estranheza, seu erotismo, sua força de novo; que me fizeram dizer: eu quero ser artista.
E quando se instalou a diáspora intelectual, quando os artistas foram perseguidos, tiveram que sair do Brasil, se exilaram, e mandavam para nós canções, filmes, pinturas, fotos, eu sabia de tudo, acompanhava tudo, pelo meu Caderno B de todas as manhãs (exceto nas 2as.feiras, claro). Eu, apenas um estudante, 10 anos a menos que a geração que mandava ver nas artes, mas unido a eles na minha leitura diária.
Outros jornais vieram e radicalizaram: o Pasquim, Movimento, Opinião, mas o porto seguro era o JB, o Caderno B.
E o Globo? claro que não, era um jornal de direita, apoiava a ditadura, populista, sem conteúdo. Diz-me que jornal lês, e te direi quem és.
A assinatura do JB me seguiu, já adulto, do Parque Guinle para meu primeiro apartamento em Ipanema. Os anos 1980 trouxeram outras bandeiras, outros nomes, outras análises, outros mitos. Gláuber morreu, Godard ficou chato.
Até que um dia tive que tomar uma decisão radical. Não me lembro exatamente quando foi, mas o JB estava decadente, sem assunto; e a decisão foi: deixar o jornal que eu leio todas as manhãs há décadas, e passar a assinar o concorrente, o "de direita". Foi um pouco como mudar meu nome, ou, mais ainda, fazer uma operação de troca de sexo.
E assim assinei o Globo; nos anos que morei em Brasília mantive a assinatura no Rio e lia o jornal pela internet; quando vinha ao Rio a pilha de jornais me aguardava, e eu lia todos eles; mas, juro! um pouco com a sensação de que orgasmos bons são os da juventude, segundo caderno bom era o B que eu lia no Parque Guinle.
A gente se habitua, quantos casamentos de longos anos se habituam a não ter sexo? eu me habituei a ler um Segundo Caderno fraco, bobo; e a lembrar dos áureos tempos, quando as revoluções em arte eram feitas no Caderno B, quando a diagramação do Amílcar mudou a forma de se ler jornal, quando o concretismo e o neo-concretismo dissecavam suas posições no jornal, quando a revolução dos costumes, a liberação sexual, o 1968 em Paris, chegavam para mim no jornal.
Não fazem mais revoluções como antigamente, quem precisa de uma revolução hoje em dia, basta uma bolsa da Louis Vuitton.
Caiu o Muro de Berlin. Lula foi eleito, reeleito, com o mensalão ficou claro que não se busca mudança verdadeira, apenas mudança de comando, ser coroado Imperador como Napoleão, a história se repete como farsa, he said, he (Marx) said.
Até que hoje, em pleno Terceiro Milênio, uma "simples" mudança de comando, de editores, no Globo, faz uma revolução no Segundo Caderno.
Acho que um mês, mais ou menos. Uma nova concepção de cultura, pautas bem elaboradas, matérias bem pesquisadas, textos fluidos e agradáveis, boa diagramação, boas fotos. Ótimos colunistas convidados. Uma força para o novo, e também um pé no chão: agenda, programação, notícias de interesse das comunidades (artistas, músicos, escritores, atores...).
Meu dia quente é 2a. feira (aquele dia em que não tinha jornal pela manhã e só o Globo à tarde vinha suprir nossa carência de notícias), o dia em que se aborda especificamente Artes Visuais; mas na verdade Artes Visuais está em todos os dias, espalhado em Gente Boa (que substituiu as odiosas colunas sociais que ainda resistem no esquálido JB, falando de uma elite que já perdeu totalmente o significado), em matérias; hoje, por exemplo, na capa, com uma ótima reportagem sobre a Louise Bourgeois (com depoimento da Denise Stoklos, que a conheceu bem e produziu um espetáculo baseado em texos da artista). Um luxo. Nada a invejar do Caderno B de antigamente.
(enquanto isso, o atual JB publica no obituário da Louise Bourgeois: "morre a musa do surrelismo", será que eles acham que quem morreu foi a Gala ou a Dorothea Tanning?)
Enfim, muito feliz com meu jornal e este novo caderno de cultura que está de primeiro mundo.
Não sei se vão conseguir manter o nível por muito tempo, por anos, por décadas, mas sinceramente espero que mantenham, e melhorem ainda. O jornal também conseguiu levar "meu assunto" para outros locais: a revista continua publicando matérias sobre artes visuais, talvez com um enfoque mais de consumo e praticidade, e mesmo as colunas de economia já estão considerando o mercado de arte como digno de nota.
Tudo isso é muito bom, e só tenho que agradecer sinceramente a Dr.Roberto Marinho e aos editores (que não conheço) pelo fato de hoje, após anos, eu posso com toda a sinceridade dizer que fiz a escolha correta ao mudar de jornal; e não foi nem como mudar de sexo; é como se agora eu estivesse tendo meus primeiros orgasmos após mudar de jornal; anos depois; enfim, sempre é tempo.
E um pedido: subam mais o nível, lembrem sempre do Amílcar fazendo a diagramação e do Ferreira Gullar divulgando em primeira mão o não-objeto no Caderno B, um paradigma para todos os cadernos de cultura de todos os jornais do mundo.
malga | Santa Helena
Há 3 dias
3 comentários:
Ótimo texto. Parabéns!
Jozias, muito boa a crônica. Também me sentia órfão do Caderno B (no qual cheguei a publicar algumas boas boas matérias, antes de o JB ser vendido). O Segundo Caderno ainda tem o que melhorar, mas já está pelo menos se parecendo com um jornal cultural, não é mesmo? Abs. Paulo Thiago.
Ótima crônica! Lúcida e bem humorada. Parabéns!
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