domingo, 6 de junho de 2010

Um vinho, um vinho, um vinho

Paris, perto de l'Opera, o lugar onde antigamente os turistas brasileiros iam comprar os perfumes e olhar, só olhar, os produtos no Fauchon. Sim, mangas e carambolas a preço de uma fortuna, os turistas brasileiros riam, na feira da General Osório as mangas custam uma ninharia, saíam e iam comprar os tais perfumes; hoje, o Fauchon é mais bonito que nunca, todo rosa Schiaparelli (clique neste link e é uma overdose de rosa, pink, minha cor predileta e também da avó da Marisa Berenson, e do Fauchon também, claro), se modernizou, lá agora pode se comprar um kit com sushis ou com caviar e degustar lá mesmo, em mesinhas e tamboretes como os do Baixo Leblon, mal comparando, pães também, deliciosos, e mesmo um simples capuccino.
Mas não ficamos no Fauchon, e as lojas da Maison Chanel não resolveram nosso problema. Minha companheira de viagem tem encomendas, encomendas caras, uma delas é um tamanco Chanel, para mim um tamanco Dr.Scholl atualizado, de salto alto com um detalhe de uma flor do lado, discutível para o meu gosto, mas pelo preço é um produto que separa os de alta renda dos de baixa renda; difícil encontrar o tal tamanco; a viagem inteira uma busca do tal tamanco e de outros objetos de desejo. Já escreveram muito sobre o consumo conspícuo, eu não vou entrar nessa e escrever mais bobagem sobre isso.
Quero escrever sobre o nosso outro compromisso no l'Opera: conhecer a Lavinia. Uma loja de vinhos. Disse meu amigo que mora em Paris: a melhor de todas. OK, acredito, vou lá ver, e dou minha mão à palmatória:  oui! É realmente a melhor, e eu estive pela California, por NYC, pela Itália toda, pela Argentina, até pela Serra Gaúcha... mas vinho realmente é na França.
A Lavinia se faz presente: além das adegas (os vinhos em si), dos produtos para ajudar na degustação dos vinhos ( das taças de cristal aos decanter em cristal até os simples abridores e sacolas para levar vinhos em picnics, ah! Le Déjeuner sur l'herbe...)
Bom, achamos a loja, e fomos vendo como as coisas acontecem. Comidinhas deliciosas (um queijinho francês básico em homenagem a Paris e, para quem acabou de chegar de Madrid, um jamón fatiado é a pedida).
A degustação é de terceiro milênio. Na  loja, duas torres projetadas para uma degustação automática, um self-service, o que conceitualmente é muito engraçado. Você compra um cartão magnético com 10, 15 ou 20 euros, passa o cartão em um aparelho de leitura e a máquina atualiza do valor no cartão e serve uma dose do vinho escolhido.
Duas torres: uma para vinhos branco e outra para vinhos tinto, na temperatura ambiente. O preço das doses depende, é claro, do vinho escolhido .
Entendido o esquema, só nos resta curtir. Um cartão "básico", de 10  euros, uns queijinhos e jamóns, são três taças para cada um de nós, mas POR QUE COMIGO TUDO SEMPRE É DIFERENTE? Eu paguei 10 euros pelo cartão para as degustações, quando coloco meu cartão nas torres, o computador diz que o meu cartão é de 100 euros? OK, vou beber até cair, penso, tenho vontade de ser gauche na vida, mas a educação que Seu Antonio e Dona Genu me deram é mais forte, volto à caixa, faço uma pequena confusão para retomar o valor verdadeiro no cartão, os tais 10 euros. Sou bobo?
(acho que sim, sou bobo, mas tenho histórias sobre esta minha pseudo-honestidade, vou escrever no blog, na verdade não acho que é tanto "honestidade", ética no sentido abstrato, filosófico, para mim o determinante é a coisa prática, ser desonesto é muito menos prático do que ser honesto. Também vou contar no blog o dia em que eu ganhei na minha conta do banco mil vezes o meu salário, e não sabia o que fazer com isso. Acho que eu sou um mutante, um novo tipo de ético-prático, sei lá, enfim.)
Voltamos à Lavinia, devolvi o cartão "full" e voltei ao meu básico-terra. Bom, acho que pela minha honestidade eles poderiam me dar um upgrade, sei lá, seria ótimo, mas não fizeram isso, ficaram passados e me devolveram o cartão já reduzido aos 10 euros, nem me agradeceram. O mundo é ingrato, a Lavinia também.
Enfim, la nave vá, e as degustações também, os tais 10 euros são sabiamente gastos.
Mas.
Claro.
Nas torres de degustração um vinho se destaca. A dose é 15 euros. Uma dose. Um premier cru. Eu jurava que os premier cru tinham sido codificados como premier cru na época do Napoleão Bonaparte, o que se fez coroar, ele, pessoalmente (e que poderia ter coroado os premier cru, teria melhor resultado que se coroar a si e à Imperatriz Josefina, enfim), mas a Santa Wikipedia me salva, a classificação é de 1855 quando Napoleão já tinha ido desta, talvez envenenado por arsênico. Vou ao caixa (por que não erram de novo e me dão uma garrafa?). Jogo no cartão de crédito, 15 euros é uma pechicha. Muito menos que o tal tamanco Chanel, que custa inacreditáveis 500 euros. Um shot. OK.
Um premier grand cru classé.
Um Chateau Mouton Rotschild, safra de 1978.
Ao lado, um "segundo vinho de um grande Chateau", o Les Forts de Latour (do Premier Chateau Latour) é outra pechincha, o shot a 10 euros. Mas se eu vou abusar, abuso em grande estilo. Refil no cartão, 15 euros. Meu shot. Uau.
Vale cada centavo. O aroma é indescritível. Um viño que amadureceu cada dia dos seus 32 anos (uma criança), em uma cave, ele não envelheceu como eu, como todos nós, ele amadureceu, c'est la difference. Ele ganhou um aroma divino, de um bosque, de folhas úmidas em um bosque, de um deus, de um deus que fosse francês e morasse dentro de folhas úmidas em um bosque; talvez um fauno, um pã, um devoto do tal Dionísio; e de pele, de pelica, de couro, de uma fábrica de bolsas de grife, um Louis Vuitton ou não, mas não na hora das vendas, e sim quando as bolsas estavam sendo feitas e o couro exalava aquele aroma selvagem. De um vinho selvagem, mas há tanto tempo? Já domado, dominado, sim, mais ainda selvagem, mas me dizendo, a cada cafungada em meu shot de 15 euros, de onde ele veio, de que terroir, em que solo pedregoso de Bordeaux nasceram as videiras e onde ele foi colhido, pisado e engarrafado, e me apontando para antes, muito antes, para um mundo onde o tempo e o saber fazer, a expertise, valiam alguma coisa, onde uma garrafa era diferente da outra, onde não existia um McDonalds, onde você aspira o que há de aroma de uma taça e isto te leva a uma viagem para um infinito.
Que mais, além das folhas úmidas, do couro? um cheiro deste infinito, de uma selva onde deuses gregos poderiam dançar mas que optaram por ficar, estáticos; um cheiro de sexo, não o sexo fácil de um turista, não o sexo cansado de um viúvo, e sim o sexo de uma primeira noite, de um namoro recente, de um tirar as roupas e se esfregar com força e com desejo. Um cheiro de sutilezas, flores e frutas de bosque meio passadas, como quando você faz amor e acorda no meio da noite e os morangos e a vodka que você ofereceu a quem compartilhou o momento com você estão fazendo seu caminho rumo à decadência, e você também, mas é muito bom estar com alguém então você volta a dormir.  Um beijo rápido e você volta a dormir, e isso é tudo, mais um abraço só para dizer que ainda estamos juntos, é exatamente este aroma, o aroma de um sexo fulgente e que continuará em uma eternidade de beijos meio dormidos. Um aroma das trufas, de quando se cava a terra úmida e se encontra um presente, uma dádiva do deus que mora na terra úmida, uma trufa? nunca, talvez um diamante, quem sabe, ou nada, mas neste momento você se envolve em si mesmo e o aroma é seu, é o seu suor de amor, é do couro dos cavalos que não saem da estrebaria (meu Deus, não existem mais estrebarias, só garagens sem espaço de estacionamento), da vida que te aponta: para frente e para o alto!
Um, dois, três.
(o milagre do vinho: começa sempre como uma coisa frutada, intensa, pimentões, grama cortada e frutas vermelhas; e evolui para este aroma sutil, de sexo, de carne, de couros e de suor, de decomposição e de transcendência; alguns evoluem, claro, outros morrem no meio do caminho, como as pessoas).
Bom, estou em Paris, sem medo de ser feliz, sem medo de dar bandeira.
Dois belos italianos (me lembro de andar nas ruas de Milão há muitos anos e murmurar para os belos e belas que passavam, chiques em seus casacos negros: bellissimo!) fazem a mesma viagem que eu, dois shots, um para cada. E eles ganham em euro, eu não, tudo bem, na hora de pagar o cartão de crédito eu dou um jeito. Os italianos conversam, racham  outro shot, estão se divertindo em Paris e eu também, faço um brinde com eles, viver é bom, eu gosto.
Na boca meu shot não é tão deslumbrante como no nariz, mas certamente é o horário (início da tarde) e a companhia gastronômica (queijos, jamón, este Grand Cru Classé estaria bem com uma vitela, um funghi, alguma comida mais pesada, mas temos que continuar a tarde em outros passeios).
Volto a aspirar minha taça, quero ela comigo, para o resto de minha vida, guardar este aroma comigo até o final de meus dias.
A taça está quase vazia, coloco duas gotas em meus pulsos, como se fossem um perfume.  E that's it. Inesquecível. Para o resto de minha vida.
Na adega da Lavinia, uma garrafa do Chateau Mouton Rotschild, safra de 1978, custa 450 euros, assim os 15 euros para o shot está nos conformes. E não é nada, não é nada. Uma garrafa do Chateau Petrus de uma boa safra custa nada menos que 4 mil euros.
Enfim. São aromas que vem e se vão, como a vida; e a vida vale muito mais do que tudo, em euros ou em reais, só se precisa ter crédito no cartão para poder pagar, e usufruir; e mesmo sem crédito, a vida é boa, muito boa; e ela nos ensina que há momentos e há terroirs que são inesquecíveis, e eles valem cada centavo gasto, pois não voltam, não há uma segunda chance.
Thanks, Lavinia.

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