Exposição do artista paulista Fabrício Lopez na Galeria Mercedes Viegas, com xilogravuras em grandes formatos e pinturas sobre papel. Impacto. Recupero no notebook um texto inacabado, que comecei a escrever a partir de minha primeira visão do trabalho do artista.
Há quase um ano, em São Paulo, na exposição "Rumos Artes Visuais - Trilhas do Desejo", no Itaú Cultural, uma xilogravura prende minha atenção. Não é uma xilogravura tradicional, está longe da visão mental que fazemos ao pensar em “xilogravura”.
"Rema, Rema, Remador" tem 3x4m, ocupa uma parede inteira onde está colada diretamente, sem moldura, tem cores e formas inusitadas, repetições, sobreposições, veladuras, o resultado é mais de pintura do que de xilogravura. Verdes (verde esmeralda, verde musgo, verde cana, muitos mais), vermelhos, sombras, negros; um mar, formas de um barco; e a escala que domina o espaço em torno, como uma instalação, como uma maré que invadisse a sala e a Avenida Paulista.
Valongo, a exposição individual do artista na Estação Pinacoteca, que vejo logo em seguida, no mesmo dia de uma viagem “bate-e-volta” BSB-SP-BSB, é para mim ainda mais marcante. O título faz referência ao bairro onde o artista tem seu ateliê, na cidade portuária de Santos, um bairro industrial dedicado à atividade de torrefação do café no período de auge da produção cafeeira paulista.
Uma xilogravura monumental é o centro da exposição, com formas e elementos que se repetem e se espalham por outras xilogravuras. As matrizes são exibidas, não com a preocupação didática de explicar a técnica, e sim como obras, se misturam e dialogam com os papéis. Letras, palavras, frases aparecem em meio as imagens, porém não ilustram nem elucidam, são pura carga poética e gráfica.
A mostra na verdade é como uma instalação, como uma ópera, onde canoas, pássaros, flores, portas, cabeças são leitmotivs, em meio a uma massa densa de cores e perspectivas fragmentadas, um espaço que se forma e se destrói, revelando e ocultando uma paisagem de cais, de mar, de um horizonte que se intui e que nos escapa, de um infinito que nos desafia e nos ilude, de uma busca sem fim, de novo como as ondas de um mar que pensamos dominar mas que sempre nos foge e que na verdade nos domina.
Assim, ao conhecer, em 2009, as xilos do Fabrício, o tema “xilogravura” entrou em minha pauta mental. E como nada é por acaso, elas, as xilogravuras, apareceram no circuito de artes em muitas mostras, exposições que no todo formam um apanhado de várias vertentes desta técnica na arte brasileira.
Claro que esqueço algumas, e apesar de minhas tentativas de ubiquidade não vi todas, mas em rápido refresh de memória lembro as gravuras de cordel (A Arte de J. Borges: do Cordel à Xilogravura); Luz Noturna, pequena mas importante retrospectiva da obra do Goeldi, pequena já que sua obra gigantesca sempre desafia limites, como o céu negro de suas pequenas gravuras cresce muito além do papel e se projeta no espaço. Ainda, a exposição de Hansen-Bahia, com obras recentemente restauradas do artista alemão radicado no Brasil na década de 1950; a importante exposição do Rubem Grilo, com cerca de 180 trabalhos do artista, que aliou um trabalho de cunho político a pesquisas formais e a um perfeccionismo na execução; os trabalhos iniciais da Anna Letícia, os bichos, em xilo, fortes e que apontam para o desenvolvimento da obra da artista na gravura em metal; todas estas exposições na Caixa Cultural.
Na Pinacoteca, a imponência das massas gravadas em madeira pela artista Maria Bonomi. Na SP-arte conheci o trabalho de outro artista da nova geração de gravadores, o Ulysses Bôscolo, paulista, que constrói em sua bancada de marceneiro caixas de madeira reaproveitada para suas xilogravuras.
E finalmente, a mostra da coleção de George e Monica Kormis, também na Caixa Cultural, uma enciclopédia da gravura brasileira e em particular da xilogravura. Completa, estão todos lá: Segall, Goeldi, Lívio Abramo, Samico, Lygia Pape, Roberto Magalhães, Elisa Bracher, até a série/políptico feita pela Fayga Ostrower para o Itamaraty, talvez o ápice da xilogravura abstrata no Brasil (e onde aparece, de forma pioneira na Brasil, a monumentalidade que vai explodir na obra do Fabrício).
Na exposição no Rio, quando revejo o trabalho de Fabrício e conheço, conversando com o artista, mais sobre seu percurso e seu processo de trabalho, releio os fragmentos que escrevi e volto a pensar em como esta técnica artística pode se manter a mesma, com toda sua tradição; e ao mesmo tempo, se renovar, ser absolutamente contemporânea apesar dos séculos.
Nada mais antigo do que entalhar madeira para reproduzir e disseminar imagens; e nada mais contemporâneo do que as xilos monumentais que Fabrício desenvolve; cópias únicas, matrizes modificadas e reutilizadas, uma paleta de cores “de pintura” em tintas desenvolvidas especialmente para o artista; repetições, sobreposições e veladuras; podemos falar de gravuras ou de pinturas? e pela monumentalidade, não estaríamos já no campo das instalações?
Ao mesmo tempo, estas características tão contemporâneas são também procedimentos “da xilogravura”: as tintas especiais utilizadas são tintas gráficas; as matrizes de madeira reaproveitadas, as folhas de papel coladas diretamente na parede como affiches ou papéis de parede, até a escala monumental já aparecem na história da técnica (aprendo com Fabrício que, já no Século XVI, uma gravura de Ticiano, A Travessia do Mar Vermelho, foi feita em 12 folhas que, juntas, chegam a 2,20 x 1,20m). A utilização destas características “históricas” com uma visão contemporânea marca o trabalho e a pesquisa do jovem artista.
A presença das pinturas ao lado das xilos como que mostra que não há, em seu trabalho, barreiras entre as técnicas. Vindo da pintura e da cenografia, Fabrício um pouco que inverte o usual: mostra gravuras grandes (as menores medem 1x0,70m) ao lado de pinturas em menor escala (52x50cm). Todas, gravuras e pinturas, são sobre papel e são obras únicas. Todas apresentam a mesma temática, o mar, as canoas, pessoas como coadjuvantes de uma história atemporal de cais e de marés. E a mesma paleta, linda (é possível falar de um xilogravador que ele é excelente colorista?): os verdes, os vermelhos, os ocres, os sombras.
Sigo pensando nas tantas exposições de xilogravura, e como, em algumas delas, no trabalho de artistas esta técnica foi empregada com tanta força e tão dentro do espírito da época, que a xilo se tornou imediatamente identificada com este mesmo zietgist. É o caso das gravuras de cordel e também dos trabalhos expressionistas, que tanto marcaram os anos 1950, das gravuras abstratas dos ano 1960 ou dos trabalhos com cunho fortemente político que retormaram a figuração nos anos 1960-70.
E penso em uma xilogravura diferente, renascida, contemporânea, nesta primeira década do terceiro milênio, e que no futuro talvez seja marcante ao pensarmos na imagem da época que ainda não bem entendemos.
No caminho Gávea-Ipanema o vento do mar me leva a Santos, ao cais do porto, às marés, às pequenas canoas e aos navios embarcados com sacas de café torrado, aos verdes esmeralda e verdes azulados, chego a quaqse sentir o cheiro forte do café misturado ao cheiro de maresia, eu sei, a História da Arte acabou, mas também sei que há uma outra história que continua, e que xilogravuras podem ser arte contemporânea, uma blitz, por favor senhor, vá em frente, obrigado, obrigado, pode seguir. OK. Coloco meu CD do Philip Glass no volume máximo e sigo, rumo a Ipanema, ao mar, ao cais do Valongo, sempre em frente, para o alto e rumo ao infinito.
E mais:
A foto do vernissage é do Odir Almeida, mais fotos no site Só Arte ContemporâneaPara ver o blog do Fabrício Lopez, Ateliê Santos
Comentei neste blog a exposição do Rubem Grilo na Caixa Cultural, clique aqui para ler o post
Clique aqui para o texto de Maria Luisa Luz Távora, Fayga Ostrower e a Gravura Abstrata no Brasil, com análise sobre o pioneirismo da artista no Políptico do Itamaraty em termos de monumentalidade na xilogravura
Clique aqui para o Instituto Fayga Ostrower
CordelOn, site sobre literatura de cordel, com textos e imagens de xilogravuras de cordel
Plataforma, o blog do artista Ulysses Bôscolo