quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Viciado em Ópera


O que faz um viciado em ópera quando as duas cidades onde mora nos últimos tempos estão a zero em termos de programação operística? Dizem que a "opera-addiction" traz síndrome de abstinência com efeitos quase tão pesados como os da "heroin-addiction".
Brasília, além das eventuais "óperas para o povo", grátis, na Esplanada, tem uma sessão semanal de DVDs de ópera tradicionais do Met, em um dos cinemas da Academia de Tenis; é pouco, para uma capital que talvez tenha um público potencial, pelo menos nas Embaixadas. E o Rio, mesmo antes do Theatro Municipal entrar nesta reforma em ritmo de obra de igreja, já estava sem programação ou com uma programação raquítica. É pouco. Muito pouco.
O que fazer? Sonhar com Callas e acordar ouvindo Claudia Netto no rádio da vizinha? (quem é Claudia Netto?)
Uma coisa que tenho feito é matar meu vício a conta-gotas: ver trechos de óperas pelo Youtube. Internet é o máximo, e o Youtube tem tudo, ou quase tudo. E a partir destes meus prazeres solitários, trechos de máximo de 10 minutos na tela do notebok, sonho com a grandiosidade, a transcendência, o prazer sinestésico que somente a montagem ao vivo de uma ópera consegue me dar (sem drogas proibidas, claro).
Assim, me fixei em 3 óperas, das quais vejo pedaços, à exaustão. Esqueci Verdi, Mozart, Rossini. Ouço  Philip GlassAkhnaten e Satyagraha) e John Adams (Nixon in China). As duas primeiras fazem parte da Trilogia de óperas do compositor americano Philip Glass que abordam homens que mudaram o  mundo em que viveram a partir do poder de suas ideias (a terceira ópera da Trilogia é Einstein on the Beach, igualmente linda, mas que por algum motivo subjetivo não entrou em minha compulsão neste período).


Nixon in China, ópera de 1987, também fala sobre algo que mudou o mundo, a visita do Presidente dos USA Richard Nixon à China, em 1972 (descrita pelo próprio Nixon como "uma semana que mudou o mundo"), que marcou o processo de entrada daquele país na comunidade (e no comércio) internacional, possibilitando que, com a queda do Muro de Berlin e da URSS, a polarização USA x URSS dos anos de Guerra Fria tenha se deslocado para USA x China. A ópera do compositor John Adams, também americano, tem foco nos personagens do Presidente e da Primeira Dama Pat Nixon, do Comandante Mao e sua esposa Jiang Qing (líder da Gang dos Quatro, que detinham o poder e posteriormente seriam derrubados e condenados)e os dois assessores, Henry Kissinger e Chou En-lai. Nas primeiras cenas, a chegada da comitiva de Nixon (com um avião Air Force 1 no cenário), seguida pela visita a lugares da China rural, uma apresentação de uma peça de propaganda política (é a época do livro vermelho de Mao e da Revolução Cultural chinesa, de triste memória) com uma aparição espetacular de Jiang Qing cantando o que acho o ponto alto da ópera, a ária I am the Wife of Mao Zedong; uma aparição surpresa do próprio Mao; e a última noite na China, quando os personagens dançam um foxtrot enquanto avaliam a semana, seus passados e futuros políticos. A música é minimalista e ao mesmo tempo espetacular, e mesmo o que seriam temas "chineses" não caem no folclórico; o cenário na maior parte do tempo dominado por um gigantesco retrato de Mao que remete ao pop e ao Warhol; e a ópera toda tem um clima pop e irônico.


O Faraó Akhnaten foi o primeiro monoteísta da história, e a substituição, durante seu reinado no Egito, da religião politeísta pelo monoteísmo, foi uma das causas de sua violenta deposição. A ópera, escrita por Philip Glass em 1983, descreve a ascenção, o reinado e a queda do Faraó; e os duetos deste com sua esposa, a rainha Nefertiti, são os momentos altos da partitura, que abandona um pouco o "minimalismo pesado" de outras obras do compositor (inclusive das outras óperas da Trilogia) para chegar a harmonias que, embora sem deixar o minimalismo, são mais acessíveis.







Em Satyagraha (1980), o assunto é Mahatma Ghandi e o desenvolvimento de sua prática de protestos não-violentos como arma política; o título da ópera é uma palavra em sânscrito que significa "força verdadeira". Cada um dos atos é dominado por uma figura histórica, que não canta, mas desempenha papel de catalisador da ação: o poeta indiano Rabindranath Tagore, o escritor russo Leon Tolstoy e o líder americano Martin Luther King Jr. A ação é monumental, o tempo é lento, repetitivo; e a música minimalista, e lindíssima, envolve e domina o espectador como um mantra.







Com estes pedaços de óperas comecei, nos últimos meses de 2009, uma nova série de pinturas. Algumas delas estão aqui, "auto-retratos como Akhnaten"; nestas últimas aparecem, no cenário, outros elementos que utilizo em minhas pinturas: a vanitas do Philippe de Champaigne, as carpas. Não procuro nestas pequenas pinturas a monumentalidade da ópera, e sim um clima de fantástico, lisérgico, a musicalidade das cores, um certo kitsch, um tom nostálgico de um mundo perdido, pois o Akhnaten da ópera poderia muito bem ser eu, vestido de egípcio nos bailes do Theatro Municipal de um Carnaval onde eu ainda era uma criança.

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