Como um leitor obsessivo desde o Thesouro da Juventude que ganhei com meus 4 ou 5 anos de idade, e ainda como um colecionador também obsessivo, um de meus objetos de desejo tinha que ser "Obras Completas".
Quando eu não tinha muito dinheiro, ficava namorando as edições em papel bíblia da editora Aguilar, e uma de minhas primeiras ousadias quando comecei a trabalhar com um salário melhor foi comprar, em prestações, o Fernando Pessoa, obra poética completa, edição de 1977, tenho e leio até hoje. Abro agora, em 2010, e um cartão postal de 1982 marca a página 601, onde leio "The rain outside was cold in Hadrian's soul./The boy lay dead (...)"
O livreiro, com um indefinível sotaque meio espanhol, vendia as coleções da Aguilar, dicionários, coleções infantis; ia de sala em sala no prédio do Ministério da Fazenda, no centro do Rio; era antes do cheque-pré, eu acho, pois ele voltava todo o final de mês para cobrar a prestação e trazer novas tentações.
O Machado de Assis completo, também em papel bíblia da Aguilar, comprei após um bom namoro, em um sebo em Ipanema que não existe mais; edição de 1959, ainda perfeita a menos da ortografia um tanto desatualizada, sem problema, não embaça o texto maravilhoso. Outros da Aguilar, em feiras do livro, sebos ou então em gestos de audácia, parcelando no cartão: o Lima Barreto, o João Cabral, o Eça de Queiroz (em 4 volumes, um só de cartas!), o maravilhoso Augusto dos Anjos... mais recentemente, dois sonhos: o Guimarães Rosa e o teatro completo de Shakespeare que a Bárbara Heliodora vem traduzindo, em volumes parcimoniosamente entregues.
E uma lista de desejos que continua ativa: o Murilo Mendes, o teatro do Nélson Rodrigues...
O Borges completo não é em papel bíblia mas é uma edição muito boa, comprei aos poucos, me desesperando pois achava que iam tirar de circulação ou esgotar a qualquer momento, e são só quatro volumes. O último (os Prefácios) comprei em um encontro que marquei pela internet, no Rio Sul. Enquanto esperava, entrei em uma livraria e lá estava, com desconto, o volume dos Prefácios do Borges. Como resistir? depois levei o livro para o jantar e para o motel, com medo de esquecê-lo no meio da noitada de sexo selvagem e beijos românticos. Nunca mais vi a figura, mas o livro está aqui, na minha estante, livros são muito melhores que paixões desenfreadas.
Outro objeto de desejo eu consegui, em uma tarde de sábado de tédio em Brasília, na Livraria Cultura do Park Shopping: os três volumes da série Mitológicas do Claude Lévi-Strauss ("O Cru e o Cozido", "Do Mel às Cinzas" e "A Origem dos Modos à Mesa"). Eu tinha que comprar, ou o ar seco do Planalto me mumificaria. Edições pequenas, já esgotadas; e Seu Cosac ainda nos deve o quarto volume da série, "O Homem Nu".
Neste meu quadro quase clínico de colecionador, que Freud deve certamente explicar, um dos objetos mais fortes de desejo para mim sempre foram as obras completas dele mesmo, Sigmund Freud.
Vi em vários sebos, avaliei, pensei até em comprar em espanhol pois era a melhor opção em termos de preço, era quase um projeto de casal pois neste época eu era metade de um casal (talvez a metade mais fraca pois depois fui deixado). Novamente solteiro, ter as obras completas de Freud passou a ser desejo só meu, ao mesmo tempo fácil (existe, em vários sebos, a um preço razoável) e dificil (sim, não é só ter, é preciso ler, claro, e eu imaginava que sem a outra metade para me ajudar na leitura eu iria achar tudo muito dificil, um universo nublado e impenetrável como um pesadelo sem interpretação analítica).
Enfim, foi editada recentemente uma nova tradução das obras do Freud, diretamente do alemão pelo Paulo César de Souza, pela Companhia das Letras, os volumes estão sendo publicados aos poucos, um projeto gráfico simples e bonito, claro que comprei os três primeiros volumes já lançados.
E aí começa o desafio: vai enfeitar a estante para "um dia"? ou vou ler logo? ou tentar ler, uma leitura que deve ser dificilima, desistir?
Comecei pelo volume "azul", com escritos de 1911-1913, e caio logo no Caso Schreber, "observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia".
Parece impenetrável, não é. Para minha surpresa, Ele, o Pai, escreve com a fluidez de um cronista de jornal, as ideias são expostas de forma clara, a linguagem é precisa e agradável, a postura não é arrogante, o texto é lido e entendido por mim, leigo em psi apesar dos anos que ralei deitado em divãs.
Há algumas lacunas, claro, coisas que talvez estejam mais bem explicadas em outros textos (eu chego lá), mas no geral a leitura é boa, é um pouco como ler um conto policial, pistas escondidas são decifradas, de uma forma muito cool.
Algumas coisas são totalmente datadas, afinal acho que no Terceiro Milênio não há mais mulheres com histeria, e pensar em desejos homosexuais criando paranóia é tão anacrônico como fraque e cartola; mas ler Freud absolutamente não é datado, como ler Proust também não é.
Sigo no volume "azul", ainda tenho para ler o "laranja" e o "verde" em casa, e comprarei e lerei os demais, à medida em que forem lançados, claro, até ter as Obras Completas em casa (e matar de inveja a metade do casal que se foi).
Pouco tempo depois, na abertura de uma exposição na Gávea, encontro uma amiga, artista plástica, com o marido, ele um psicanalista; os grupos se fazem e se desfazem com a "conversa de artistas" e o vinho branco, e eu conto para o marido de minha amiga a minha conquista: li um artigo inteiro do Freud e não achei difícil.
A conversa de pé de venissage rendeu, o analista (vamos chamá-lo, à maneira de S.F., de Sr. D.) concorda que muitos dos textos do Pai são fáceis de ler, mais ainda, gostosos de ler, são os textos que ele usava para divulgar suas ideias; alertou-me que vou esbarrar, nas Obras Completas, em textos mais difíceis, mais técnicos; mas que para o que eu persigo posso tranquilamente deixar estes de lado, seguir pelos caminhos mais fáceis e depois retornar aos mais áridos, ou não.
O Sr. D. concorda com a minha visão de que algumas coisas são datadas; ler Freud hoje é muito diferente do que foi lê-lo na época; o impacto de suas ideias foi imenso, mas elas foram aos poucos assimiladas; e hoje "tudo" no mundo reflete S.F., o que amortece um pouco a força do original. Impossível, hoje, pensar na vida sem ter incorporada a visão-Freud. da vida.
Acontece com todos os revolucionários, sua diluição é parte de sua vitória. Como Duchamp, hoje é impossível pensar arte como se pensava antes dos ready-made; mas ao mesmo tempo, ele, Duchamp, já se tornou "um dado", sua ação já está no mundo e qualquer garoto de primeiro ano da EBA já quer (já pode) ir muito além do ready-made.
Mas sobre minha observação de que não existem mais mulheres histéricas, o Sr. D. foi witty e preciso: "Jozias, existem sim, elas hoje só não desmaiam mais; elas detonam o cartão de crédito do marido". É verdade. Nada melhor do que conversar com quem entende.