sexta-feira, 23 de julho de 2010

Obras completas (lendo Freud)

Como um leitor obsessivo desde o Thesouro da Juventude que ganhei com meus 4 ou 5 anos de idade, e ainda como um colecionador também obsessivo, um de meus objetos de desejo tinha que ser "Obras Completas". 
Quando eu não tinha muito dinheiro, ficava namorando as edições em papel bíblia da editora Aguilar, e uma de minhas primeiras ousadias quando comecei a trabalhar com um salário melhor foi comprar, em prestações, o Fernando Pessoa, obra poética completa, edição de 1977, tenho e leio até hoje. Abro agora, em 2010, e um cartão postal de 1982 marca a página 601, onde leio "The rain outside was cold in Hadrian's soul./The boy lay dead (...)"
O livreiro, com um indefinível sotaque meio espanhol, vendia as coleções da Aguilar, dicionários, coleções infantis; ia de sala em sala no prédio do Ministério da Fazenda, no centro do Rio; era antes do cheque-pré, eu acho, pois ele voltava todo o final de mês para cobrar a prestação e trazer novas tentações.
O Machado de Assis completo, também em papel bíblia da Aguilar, comprei após um bom namoro, em um sebo em Ipanema que não existe mais; edição de 1959, ainda perfeita a menos da ortografia um tanto desatualizada, sem problema, não embaça o texto maravilhoso. Outros da Aguilar, em feiras do livro, sebos ou então em gestos de audácia, parcelando no cartão: o Lima Barreto, o João Cabral, o Eça de Queiroz (em 4 volumes, um só de cartas!), o maravilhoso Augusto dos Anjos... mais recentemente, dois sonhos: o Guimarães Rosa e o teatro completo de Shakespeare que a Bárbara Heliodora vem traduzindo, em volumes parcimoniosamente entregues.
E uma lista de desejos que continua ativa: o Murilo Mendes, o teatro do Nélson Rodrigues... 
O Borges completo não é em papel bíblia mas é uma edição muito boa, comprei aos poucos, me desesperando pois achava que iam tirar de circulação ou esgotar a qualquer momento, e são só quatro volumes. O último (os Prefácios) comprei em um encontro que marquei pela internet, no Rio Sul. Enquanto esperava, entrei em uma livraria e lá estava, com desconto, o volume dos Prefácios do Borges. Como resistir? depois levei o livro para o jantar e para o motel, com medo de esquecê-lo no meio da noitada de sexo selvagem e beijos românticos. Nunca mais vi a figura, mas o livro está aqui, na minha estante, livros são muito melhores que paixões desenfreadas.
Outro objeto de desejo eu consegui, em uma tarde de sábado de tédio em Brasília, na Livraria Cultura do Park Shopping: os três volumes da série Mitológicas do Claude Lévi-Strauss ("O Cru e o Cozido", "Do Mel às Cinzas" e "A Origem dos Modos à Mesa"). Eu tinha que comprar, ou o ar seco do Planalto me mumificaria. Edições pequenas, já esgotadas; e Seu Cosac ainda nos deve o quarto volume da série, "O Homem Nu".
Neste meu quadro quase clínico de colecionador, que Freud deve certamente explicar, um dos objetos mais fortes de desejo para mim sempre foram as obras completas dele mesmo, Sigmund Freud.
Vi em vários sebos, avaliei, pensei até em comprar em espanhol pois era a melhor opção em termos de preço, era quase um projeto de casal pois neste época eu era metade de um casal (talvez a metade mais fraca pois depois fui deixado). Novamente solteiro, ter as obras completas de Freud passou a ser desejo só meu, ao mesmo tempo fácil (existe, em vários sebos, a um preço razoável) e dificil (sim, não é só ter, é preciso ler, claro, e eu imaginava que sem a outra metade  para me ajudar na leitura eu iria achar tudo muito dificil, um universo nublado e impenetrável como um pesadelo sem interpretação analítica).
Enfim, foi editada recentemente uma nova tradução das obras do Freud, diretamente do alemão pelo Paulo César de Souza, pela Companhia das Letras, os volumes estão sendo publicados aos poucos, um projeto gráfico simples e bonito, claro que comprei os três primeiros volumes já lançados.
E aí começa o desafio: vai enfeitar a estante para "um dia"? ou vou ler logo? ou tentar ler, uma leitura que deve ser dificilima, desistir?
Comecei pelo volume "azul", com escritos de 1911-1913, e caio logo no Caso Schreber, "observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia relatado em autobiografia".
 Parece impenetrável, não é. Para minha surpresa, Ele, o Pai, escreve com a fluidez de um cronista de jornal, as ideias são expostas de forma clara, a linguagem é precisa e agradável, a postura não é arrogante, o texto é lido e entendido por mim, leigo em psi apesar dos anos que ralei deitado em divãs.
Há algumas lacunas, claro, coisas que talvez estejam mais bem explicadas em outros textos (eu chego lá), mas no geral a leitura é boa, é um pouco como ler um conto policial, pistas escondidas são decifradas, de uma forma muito cool.
Algumas coisas são totalmente datadas, afinal acho que no Terceiro Milênio não há mais mulheres com histeria, e pensar em desejos homosexuais criando paranóia é tão anacrônico como fraque e cartola; mas ler Freud absolutamente não é datado, como ler Proust também não é.
Sigo no volume "azul", ainda tenho para ler o "laranja" e o "verde" em casa, e comprarei e lerei os demais, à medida em que forem lançados, claro, até ter as Obras Completas em casa (e matar de inveja a metade do casal que se foi).
Pouco tempo depois, na abertura de uma exposição na Gávea, encontro uma amiga, artista plástica, com o marido, ele um psicanalista; os grupos se fazem e se desfazem com a "conversa de artistas" e o vinho branco, e eu conto para o marido de minha amiga a minha conquista: li um artigo inteiro do Freud e não achei difícil.
A conversa de pé de venissage rendeu, o analista (vamos chamá-lo, à maneira de S.F., de Sr. D.) concorda que muitos dos textos do Pai são fáceis de ler, mais ainda, gostosos de ler, são os textos que ele usava para divulgar suas ideias; alertou-me que vou esbarrar, nas Obras Completas, em textos mais difíceis, mais técnicos; mas que para o que eu persigo posso tranquilamente deixar estes de lado, seguir pelos caminhos mais fáceis e depois retornar aos mais áridos, ou não.
O Sr. D. concorda com a minha visão de que algumas coisas são datadas; ler Freud hoje é muito diferente do que foi lê-lo na época; o impacto de suas ideias foi imenso, mas elas foram aos poucos assimiladas; e hoje "tudo" no mundo reflete S.F., o que amortece um pouco a força do original. Impossível, hoje, pensar na vida sem ter incorporada a visão-Freud. da vida.
Acontece com todos os revolucionários, sua diluição é parte de sua vitória. Como Duchamp, hoje é impossível pensar arte como se pensava antes dos ready-made; mas ao mesmo tempo, ele, Duchamp, já se tornou "um dado", sua ação já está no mundo e qualquer garoto de primeiro ano da EBA já quer (já pode) ir muito além do ready-made.
Mas sobre minha observação de que não existem mais mulheres histéricas, o Sr. D. foi witty e preciso: "Jozias, existem sim, elas hoje só não desmaiam mais; elas detonam o cartão de crédito do marido". É verdade. Nada melhor do que conversar com quem entende.



domingo, 18 de julho de 2010

Muitos cavalos, muitos textos, muito trabalho

Hoje, sábado chuvoso no Rio, vontade de ficar na cama mas um compromisso me acorda cedo; elétrico, enfrento a chuva e o metrô para o Laboratório de Vivência Literária, um workshop de dia inteiro com o escritor Luiz Ruffato, na Estação das Letras.
Como preparação para a atividade, os participantes deveriam levar um texto, de preferência um conto, com até 6000 caracteres (ah meu Deus, sempre este stress de contar toques), e isso em uma semana que para mim foi cheia de trabalhos, cursos e eventos, além de uma inesperada noitada de 5a.feira depois da abertura de uma exposição. É bom sair, em companhia agradável, beber, chegar em casa com o dia claro; mas a 6a.feira, o dia em que eu contava para burilar meu texto, se tornou muito curta. Paciência.
Eu vasculhei meus arquivos no computador, incrível, tantos textos inacabados ou enormes, muito acima das duas laudas. Muitos fragmentos, para desenvolver ou dar um sentido só tendo uma 6a.feira de 48 horas. Muitos textos "fortes", politicamente incorretos, e eu não quero repetir a experiência de ter sido tão patrulhado na Oficina de Crônicas que fiz no início do ano.
Finalmente, um texto que é um fragmento de um trabalho maior, um romance que planejei em meu exílio em Brasília e que deixei de lado ao voltar ao Rio. O título (provisório, claro) do romance é "Doce B. e o Tigrão". Risos, o efeito meio cômico é o desejado mesmo.
E o trecho com mais 12 mil caracteres, incluindo espaços, tem as cartas que o narrador troca com sua sogra e seu irmão, e que narram sua adaptação em uma nova vida, tentando esquecer sua tragédia; e que pouco a pouco são substituídas por emails que são a transição do narrador para novos interesses, e a preparação para a entrada em cena de um novo personagem, o Tigrão. Ufa.
Dito assim, difícil fazer caber o texto nos 6 mil caracteres, mas foi o que fiz na 6a.feira: cortar, cortar, cortar. Cortar o irmão, no romance faz muito sentido mas neste conto que estou produzindo não acrescenta, só dispersa. Resumir as cartas a apenas três, três momentos chave na nova vida que o narrador procura desesperadamente. Finalizar com o que no romance está em outro trecho, a descrição da tragédia.
E, ao final, ver que faz sentido. Nada como trabalhar com restrições de número de toques e com deadlines.
Tarefa cumprida, meu texto impresso a tempo, protegido da chuva e também no pen-driver para maior segurança, aqui estou eu.
Li pouco, muito pouco, do escritor Luiz Ruffato. Apenas o livro da coleção Amores Expressos, Estive em Lisboa e Lembrei de Você, muito bom. E agora, motivado pela expectativa do workshop, comecei a ler seu principal livro, Eles eram muitos cavalos. Uma pauleira. Um livro que se começa e não se consegue parar, um clima de tensão constante; um mosaico, um caleidoscópio, uma cidade e seus personagens, cada personagem falando em sua própria linguagem e tudo se somando em uma cacofonia de uma São Paulo, uma megalópolis que poderia ser qualquer outra, ou não.
Treze alunos, doze textos (uma moça não conseguiu escrever, diz; outra ia ceder para ela um dos dois textos que trouxe, mas desiste). Tiradas as cópias dos textos, cada um começa a ler o seu; vem os comentários, inicialmente tímidos, cortezes; depois mais incisivos, mas sempre pertinentes. Ruffato é um bom moderador, mais que isso, é um leitor muito sagaz, nesta primeira leitura, rápida, ele extrai do texto as fragilidades, as inconsistências e os pontos positivos; não dói, pelo contrário, é desafiante ouvir que meu texto, de certa forma feito meio que "nas coxas", pode ser melhorado, com um trabalho de alguma reescrita.
Os textos lidos vão de uma densa viagem interior sobre um relacionamento a uma seca descrição de uma tarde em um bar de periferia; entre estes extremos, textos que dão vontade de continuar a ler, ou que são pesados mas que podem servir de base para um novo trabalho; ou que são totalmente perfeitos em seu humor e o que poderia ser (ou não) memória de um final de adolescência e passagem para a vida adulta.
O trabalho flui bem, o medo que eu tinha de não se conseguir ler e comentar todos os textos se mostra infundado, terminamos apenas 10 minutos depois do horário marcado, e ainda tive o prazer de, no breve intervalo para o almoço, comer um quibe na mesa do escritor e ouvir alguns causos interessantes de Minas Gerais.
Três dos participantes do workshop já são veteranos desta atividade com o Ruffato, e a qualidade de seus textos mostra isso, esta evolução. Bom, vou reescrever meu texto, e volto no próximo com outro texto mais bem trabalhado.
E algumas lições que levo para casa, a partir do que nos disse Luiz Ruffato:
a) Ler muito
b) Buscar interlocutores, outros escritores com os quais me identifico
c) Escrever sempre
d) Disciplina
e) Reescrever
f) Tentar sempre compreender que história está tentando ser contada
E o meu conto? Em princípio, Três Cartas e uma Memória. Vou reescrever, e quando achar que está razoável, publico aqui no blog.
Enquanto isso, disciplina; e as lições acima valem também para pintura. O que faz a pintura é o que faz o bom texto: trabalho, trabalho disciplinado e prazeroso, que envolve o corpo e alimenta o espírito, que exige estar sempre ligado, sempre buscando os interlocutores, na literatura e na história da arte.
Um árduo caminho, uma escada íngreme e estreita, a sensação do ar cada vez mais rarefeito e o prazer de (1) chegar lá (2) ver que ainda há mais escada para escalar, e que o "lá" é sempre além.


Clique aqui para ler as crônicas que produzi na Oficina de Crônicas, Dever de Casa e Carnaval de Antigamente.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Bárbara & Gordon & Rebecca

Últimos dias para correr e ver duas exposições, no Rio, que estão se encerrando, uma delas  nesta semana e a outra na próxima.
As duas exposições estão em dois polos do Corredor Cultural do Rio de Janeiro, entre elas uma andada em uma linha quase reta de menos de um quilômetro, passando pelo Arco do Teles, onde sempre eu escuto os gemidos de Bárbara dos Prazeres.
Bárbara morava na rua, nos anos 1800, abrigada sob o mesmo Arco dos Teles sob o qual eu caminho em meu circuito artístico. O Arco, que milagrosamente escapou quase incólume da especulação imobiliária que arrasou o Rio de Janeiro. Antes da especulação imobiliária, o arrasa-quarteirões para o desmonte do morro do Castelo, e a construção da Av.Pres.Vargas; lá mesmo, na atual Praça XV (o antigo Largo do Paço, o Largo do Terreiro do Polé), desfigurado, asfixiado com a Perimetral, vendo depois surgir o espigão da Universidade Cândido Mendes no pátio do Convento do Carmo.
O Arco escapou, se olhamos só para baixo, pois em cima dele se plantou um edifício horrível, acho que pela força de Bárbara dos Prazeres, que lá morava e ainda mora, e cujos suspiros de gozo eu sempre ouço.
Ouço mesmo, não é força de expressão. Eu sei. Eu a sinto, em baixo do Arco, e o Largo do Paço cheio de movimento diurno, navios chegam, a família Real no Paço, o comércio na Rua Larga, marinheiros chegam e saem a todo o momento no atracadouro, o Príncipe de Bragança é um jovem audacioso e sensual, depois a jovem Imperatriz é uma Habsburgo, depois, depois...
Bárbara, em seu posto, sob o Arco, é o verdadeiro centro de tudo; talvez uma noite mesmo o impetuoso Bragança tenha ido gozar entre as coxas quentes de Bárbara; mas se não ele, os nobres e os marinheiros, os embaixadores e os clérigos, os jovens e os velhos, certamente, gozaram, e alimentaram com seu gozo os gemidos que eu hoje ainda ouço.
O que ficou na história não é muito simpático a Bárbara. Eu sei, mentiras perpetuadas. Os historiadores são uns porcos chauvinistas, contam a história do ponto de vista dos vencedores, dos machos, dos caretas. Uma questão de gênero, que só apareceu recentemente.
Assim, dizem os historiadores que ela era uma bruxa, que matou o marido e os amantes, que tinha sífilis (bom, isso bem provável, pelo estilo de vida, se fosse hoje certamente seria HIV+) e/ou lepra, e que raptava crianças abandonadas para matá-las em rituais satânicos, bebendo o sangue dos enjeitados para conseguir a cura de suas mazelas. Uma serial-killer avant la lettre, talvez. De linda dos Prazeres passou a ser vista como vampira, tornou-se "a Onça" dos pesadelos das crianças, até que simplesmente desapareceu, morta certamente, mas continuou por décadas a frequentar os pesadelos dos cariocas.
Eu sei, para mim tudo mentira, quando eu passo pelo Arco do Telles vindo do Espaço Cultural do Paço e indo para o CCBB, ela sussurra em meus ouvidos, eu a ouço, a sinto; peço sua bênção; quando bebo um chopp ou um vinho em algum vernissage na área sempre deixo algum trago para ela; e agradeço a ela por eu estar de novo, ali, mais uma vez; não a vejo, ainda, mas um dia quem sabe?
Ela, para mim, é a verdadeira dona do Arco do Telles; foi ela quem o preservou da especulação imobiliária , ela cuida de tudo. Assim, para mim foi ela quem fez com que, em pleno 2010, duas exposições muito importantes, e inéditas no Rio, se encontrassem nas duas extremidades do "seu" corredor: Desfazer o Espaço, de Gordon Matta-Clark, no Paço Imperial, e Rebelião em Silêncio, de Rebecca Horn, no CCBB. Não é pouca coisa, é de primeira.
Gordon Matta-Clark desenvolveu seu trabalho, jovem, nos anos 1970, e morreu prematuramente em 1978, com 35 anos. Tem o frescor da juventude, e mais ainda, de quem foi jovem naquela década mágica, quando ser jovem era mais do que um adjetivo (o jovem artista), ser jovem era ser o motor do mundo, em um mundo das gerações anteriores que caía aos pedaços em tanto conformismo, no auge da Guerra Fria; e um mundo que seria dos jovens, só seria salvo pelos jovens na medida em que eles recusassem os paradigmas das gerações anteriores.
(tudo isso aconteceu, talvez Matta-Clark nem imaginasse, ao fazer seus trabalhos, que seria possível tanta mudanca, tantas conquistas e ao mesmo tempo tantos retrocessos: a liberação feminina aconteceu, as minorias ganharam visibilidade, a ecologia passou a ser discutida seriamente, a Guerra Fria se acabou, o Muro de Berlin caiu, a internet possibilitou comunicação universal instantânea, veio a globalização com novas formas de dominação; o terrorismo internacional tem poderes de submeter até as grandes potências; o fundamentalismo e o obscurantismo não diminuiriam, pelo contrário, são mais fortes e poderosos; o circuito da arte incorporou no mainstream o que antes era radical; o radical se banalizou).
Matta-Clark fazia intervenções, mas não eram intervenções banais. Ele simplesmente cortava uma casa ao meio; depois retirava parte dos alicerces de uma das metades da casa; e esta caía um pouco, na lateral, oblíqua, na medida apenas para expor a fenda entre as partes, como uma coisa sobre-humana e ao mesmo tempo tão simples; e o interior da casa, visto através da fenda, recebia sol, luz, como nunca.
Ele levava sol, luz, a lugares e conceitos escuros, ele levava um novo olhar e uma nova forma de vida, utópica e possível, a um meio artístico e um establishment que se caracterizavam pelo conservadorismo mais arraigado.
Arte é vida, e para o artista americano, arte é penetrar nas brechas, é propor e viabilizar alternativas; não é pintar telas abstrato-expressionistas para as penthouses dos Rockefellers ou para os lobbies das grandes Corporações. Ao realizar suas efêmeras intervenções, em escalas gigantes e com meios precários, com gigantescos esforços físicos, o artista questionava sobre a ocupação do espaço urbano e a destruição da memória das cidades, a mesma especulação imobiliária que, por exemplo, até hoje faz tudo para destruir o Rio de Janeiro.
Uma arte política, uma atuação política. Em 1971 o artista boicotou a Bienal de São Paulo, e assinou manifesto contra a ditadura brasileira que respaldava a mostra.
Além das intervenções urbanas, Matta-Clark atuou em experiências culinárias, estudos de Alquimia, dança, performance, desenho e fotografia; e sempre dentro deste espírito questionador sobre os espaços, a urbanização, a inserção, os moradores de rua, o desperdício, a sustentabilidade, a arte.
A rebelião de Rebecca Horn se faz em silêncio, em sutilezas, um trabalho que apresenta questões ao espectador, que é levado a um mundo de dualidades, de pequeno/grande, dentro/fora, amor/ódio, lirismo/máquina, de repetições e de inesperado.
Nascida em 1944, apenas um ano depois de Matta-Clark, a artista foi uma das pioneiras na utilização da tecnologia em arte, nos anos1970. Seus primeiros trabalhos consistiam de performances com máscaras, próteses e objetos feitos com penas de aves; que evoluíram para impressionantes instalações e esculturas cinéticas, feitas em e para lugares carregados com grande importância histórica e política. Assim foi em 1994, em Viena, com a Torre dos Sem-nome, quando a artista cria um monumento para os refugiados das guerras da península balcânica, uma torre com violinos mecânicos.
A partir de filmagens feitas para documentar suas performances, Rebecca passou a utilizar também a linguagem do vídeo, e daí ao cinema, chegando em 1990 a criar e dirigir um longa-metragem, Buster’s Bedroom, com recursos de cinema profissional e a participação dos atores Donald Sutherland e Geraldine Chaplin. Este filme e vários outros da obra cinematográfica da artista podem ser vistos nesta exposição.
Na magnífica rotunda do CCBB, O Universo em uma Pérola, uma enorme escultura em movimento, construída por dois espelhos separados por funis de ouro. Ao olharmos nossa imagem no jogo de reflexos, paradoxalmente o que parece se mover não são os espelhos, não é nossa consciência, e sim as paredes do prédio, provocando estranheza ou mesmo causando vertigem.
É uma exposição para ser vista com tempo, com vagar, não é uma exposição para uma leitura dinâmica (pensando bem, que exposição seria adequada para uma leitura dinâmica?).
Tempo para poder ver todos os filmes, e também para "espreitar" os objetos da artista, que "acordam" e funcionam aleatoriamente, de tempos em tempos. De repente, uma máquina-borboleta enclausurada em uma redoma de vidro faz um pequeno voo; um leque de penas se abre; um piano pendurado do teto, com as pernas para cima, começa a ser tocado mecanicamente; uma "máquina de pintar" joga manchas de tinta em uma parede... Espreitar, ser surpreendido; pensar sobre.
E também para pensar sobre os muitos pontos em comum e os muitos pontos divergentes entre os trabalhos dos dois artistas, trabalhos totalmente contemporâneos. Como o trabalho político tão radical do Matta-Clark nos anos 1970 foi interrompido por sua morte; enquanto que a maior longevidade da artista alemã possibilitou um desenvolvimento do trabalho, utilizando recursos do sistema; como hoje o sistema aceita, e até incorpora, procedimentos outrora visto como radicais e contestadores; talvez até diluindo sua força de contestação.
O precário dos filmes em Super 8 do artista americano e a super-produção do longa-metragem de Rebecca Horn falam talvez da mesma coisa; mas a contundência é bem diversa. Mesmo como peça de museu, como documentário apenas, as experiências de Matta-Clark remetem a um momento de mudança; talvez esta mudança, a possível, tenha ocorrido; e talvez só nos reste olhar o mundo globalizado se balançando como dois espelhos separados por funis de ouro.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sobre escrever um blog

Escrever um blog é como mandar mensagens ao mar dentro de garrafas.
Quem me lê, alguém me lê, hoje ou em 20, 30 anos, alguém algum dia lerá meu pedido de socorro, minha súplica, alguém algum dia lerá (mais que isso, entenderá) a mensagem do náufrago solitário?
Mas os náufragos solitários não se apertam, eles escrevem mensagens para eles mesmos. Eles tem que fazer isso, ou descer à animalidade, à selvageria, à vitória da entropia.
Nada mais nobre do que a rotina de um náufrago. Acorda, toma um banho de água, salgada mesmo, que jeito; fazer a barba é impossível; sair para trabalhar pode ser escrever nos restos de papel e nas tintas improvisadas alguma mensagem, as garrafas um dia se acabam, é preciso ser preciso, não desperdiçar textos, usar as poucas garrafas para textos significativos; jogá-las ao mar pode ser um ritual, imagino que o final do expediente do náufrago; depois disso uma happy-hour, um brinde ao dia de trabalho, meio difícil o álcool, os poucos barris de amontilado que vieram no naufrágio também se acabam; mas o náufrago sobrevive dia após dia mesmo sem o papel sem a tinta sem as garrafas vazias sem o álcool; as mensagens vão rareando pela falta do meio físico e se tornando mensagens telepáticas no ar. A desmaterialização do suporte, diria um crítico de arte.
A internet é maravilhosa, além de nos dar (a nós, os náufragos solitários) a tribuna, o espaço para mandar nossas mensagens, ela nos possibilita acompanhar o andamento das garrafas flutuantes em um mar de megabytes.
Eu consulto e vejo: quantos visitantes novos em meu blog, quantas páginas lidas, como chegaram lá; gráficos, histogramas, tendências, é bom para acompanhar um blog de milhões de acessos, para um blog que se propõe a ser jornalistico. Para mim, a média diária de 40, 50 acessos é fantástica, eu tento pensar em 50 pessoas, em cada uma delas, entrando em meu blog e lendo o que eu escrevo; algumas delas gostam, poucas delas deixam comentários, outras odeiam, revoltadas, mas a maioria simplesmente navega (como eu navego em muitos outros blogs), lê um pedaço do texto, divaga nos links, curte (ou não) as imagens.
O texto: uma opção que eu fiz é por um texto anti-internet. Sempre que alguém revisa meu texto diz, em canetas vermelhas: parágrafos muito longos, muitos adjetivos, reduzir. Eu sei. Eu sei. Eu sei e não acredito nisso. Meu texto é chato mas é meu.
As poucas vezes em que tive que submeter meu texto a restrições de "no máximo 2000 caracteres incluindo espaços" eu pude ver como sou prolixo (palavra que tem lixo em seu radical).
Eu escrevia e escrevia, aí usava o "contar palavras" do Word e via que tinha ultrapassado, muito, muito, meu limite; e saía cortando. Fácil, mata adjetivos (uso muito), mata as divagações (uso muito), tenta ser um Hemingway com as frases curtas, conciso, eu heim, tou fora, não quero ser um E.H., ele se matou e eu espero sobreviver à ruína, à depressão e às caipivodkas.
OK, vamos manter o texto, e os leitores enfadados?
Minha leitora preferencial é minha mãe. Claro. Nos seus 83 anos de vida ativíssima, ela me cobra se eu deixo de escrever um tempo, ela se refere ao meu blog como a minha "coluna", lembrança talvez de um tempo de jornalismo de resistência, quando ela assinava colunas em jornais e presidia sindicatos de jornalistas lutando contra a ditadura. Ela me cobra detalhes, eu falei da ajudante dela, Dona Deusa, para exemplificar os 6 graus  de separação; ela me falou da outra ajudante, irmã de D.Deusa, a Dona Loura, que ficou triste por não ter sido citada. OK, falamos sobre a D. Loura também. Parênteses.
(Dona Loura, em Teresina Piauí Brasil também tem 6 graus de separação entre ela e a Madonna, sim a cantora performer multimidia em London e agora em NYC, a saber: Madonna -- Jesus Luz -- D.Christiane mãe de Jesus Luz -- Virginia Paiva pintora e que tinturava seus cabelos com Christiane -- minha mãe D.Genu --- D.Deusa --- D.Loura, irmã de D.Deusa. OK. D.Loura, that's it.)
O texto flui e eu tenho muitas personalidades, uma delas é o Bukowski, bebendo e escrevendo, escrevendo e bebendo, ao invés do Jozias Benedicto sou o Jozias Bukowski e meus textos cobertos de álcool e cheirando a suor vão direto para a editora. Bullshit.
É uma de minhas personalidades fakes. Não a real. Sim, e tenho outras personalidades fakes.
Eu na verdade não curto o Bukowski, deus o tenha, curto a personalidade do B. mas ler seus textos é triste. São chatos, muito chatos. Como não curto alguns outros representantes da estética do "loco demais", o Williams Burroughs, por exemplo; ele, a vida dele, o máximo; a voz rouca dele em um CD com a Laurie Anderson, também o máximo; mas ler o Naked Lunch (ou ver o filme do Cronenberg) é totalmente boring. Talvez eu seja um leitor careta e tenha parado nos escritores do absinto.
Parece que eu sou um louco, talvez seja, ou um naif sobre o blog, mas isso eu não sou. Penso sobre isso, sobre o que é ser um blogueiro, sobre o formato blog em comparação a outras formas de veiculação de pensamentos, e penso em ser de uma certa forma, o anti-blog.
Minha referência é Proust, não é Hemingway, não são os jornais on-line. Um louco eu sou, mas OK, meus 40-50 leitores diários podem nem concordar mas pelo menos clicam no meu blog, no meu texto chato e com parágrafos enormes.
Como eu acompanho meus leitores, acho gratificante os que vem ler minhas mensagens nestas garrafas virtuais de http:. E acho muito engraçado os que vem enganados.
Vejo nos gráficos de acompanhamento do blog que um best-seller para meu blog são pesquisas sobre "churrasqueira". Engraçado, mesmo.
Uma pessoa que se beneficiou da recente ascensão da classe C ou D, com a bolsa família, subsídios para construção, resolve fazer uma churrasqueira; com a internet subsidiada, ele procura no Google, digita a chave de pesquisa "projetos de churrasqueira" ou algo assim. Claro; ele quer apenas construir uma churrasqueira na sua laje ou em seu quintal para os chopps de sábado; e aí é direcionado para meu blog, onde comento as fotografias de churrrasqueiras, um trabalho do artista Leonardo Videla; tudo a ver ou nada a ver; imagino o carinha da classe C dizendo nada a ver mas ao mesmo tempo exposto à arte do Leo Videla, vendo nas fotos do Leo que talvez churrasqueiras em lages talvez possam ser arte, que talvez arte possa ser vida e que vida talvez possa ser arte; talvez aos poucos impregnado com a arte que se esconde a cada encruzilhada de um Googele para assaltar o visitante incauto.
Outro best-seller de meu blog é o texto sobre as aquarelas da Margaret Mee. Provavelmente os leitores vão em busca de reforço para a sensação de que elas (as aquarelas) são o máximo. São sim, como aquarelas, ilustração botânica; eu mesmo acho que fui fundo demais em meu texto em dizer que sim, ok, bonitas, mas não são arte, são ilustração; aí, imagino os leitores decepcionados, xingando o Google e me xingando também.
Arte é isso, pela margem, pelas bordas. Faço arte ao driblar o Google. Faço arte em meu blog, tosco, barroco, pós-moderno, mostro que na internet é possivel se manter uma linguagem pré-internet. Enfim.
Quem são meus leitores, além de minha mãe? Acho o máximo quando estou em um lugar, exemplo, o MAM na abertura da exposição da Cristina Canale, e pessoas me dizem que leram meu blog. Pode até ser mentira, mas se elas se sentem compelidas a mentir ao invés de ignorar, para mim o resultado é positivo. Isso me basta. Acho o máximo quando pessoas me tratam como se meu blog fosse formador de opinião, como se fosse um validador, como se eu não gostei de uma exposição sobre a qual eu não falei. Nada disso.
Vejo muita coisa, gosto de muita coisa, vivo muita coisa em minha rotina de náufrago; mas não sou um jornalista, não sou um crítico, não sou um historiador, não sou um cronista.
Algumas das coisas que vejo, apenas algumas, independente da qualidade, da permanência, da viabilidade, da procedencia... despertam em mim a vontade, a ansia de escrever... poucas, apenas algumas, me levam a este teclar que adentra a madrugada ate a conclusao de um texto publicado enfim.
Saber que estou jogando garrafinhas com mensagens neste mar da internet, e que, como o custo de armazenamento dos gigabytes diminui a cada momento (há teorias para isso, dizem que a cada ano a capacidade dobra com o mesmo custo, ou seja, o custo cai à metade), estas garrafinhas virtuais ficarão muito muito tempo circulando em um mar de bits e bytes, que envolve nossa vida e mudou o mundo, dos relacionamentos aos conceitos sobre o que é a Arte.
Isso é bom, uma revolução, e quero estar vivo na pequena ilha e poder continuar mandando as mensagens de  náufrago em outras mídias, em outros contextos, em outros universos.
(casos documentados de náufragos que, após anos de mensagens em garrafas, foram encontrados - não por causa das garrafas mas de acasos que fazem as navegações, todos os tipos de navegações - e não quiseram deixar a ilha, a solidão, pediram apenas mais tinta, papel, garrafas, barris de amontilado... e continuaram suas rotinas de acordar, banho, escrever mensagens, jogá-las ao mar em garrafas).
Como viver.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

O céu da pintura

Pintor gosta de pintura.
Eu sou pintor, além de blogueiro obsessivo, mas não sou sectário. Adoro exposições como a do Gordon Matta-Clark e a da Rebecca Horn, as esculturas do Thomas Schütte que vi em maio no Reina Sofia, a coleção de 140 pequenas esculturas do Amilcar de Castro que vi no CCBB-BSB e depois na Silvia Cintra, os parangolés do Hélio Oiticica, os desenhos da série trágica do Flávio de Carvalho.
Mas exposições de pintura lavam minha alma, a minha e a de muitos pintores amigos meus, ficamos babando diante de pinturas boas comentando, só entre nós, como o dialeto de alguma seita, entre dentes, frases do tipo: "que brancos...", "óleo ou acrílica?", "essa pequena mancha magenta escorrida", "os lilases...", enfim. Os que passam por perto não devem entender nada, mas nós nos entendemos, em nosso dialeto e no roer das unhas sempre com um pouco de tinta, nós, os pintores, os que adoram pintura.
Principalmente quando o MAM abre seus salões para uma individual da Cristina Canale (Arredores e Rastros) e para uma exposição chamada "Se a pintura morreu o MAM é um céu", ambas com curadoria do Luiz Camillo Osorio, a coletiva com pinturas de Daniel Senise, Luiz Zerbini, Adriana Varejão, Jarbas Lopes, Vania Mignone, Eduardo Berliner e Gustavo Speridião.
Eu não ia à inauguração, juro que não ia, estava em casa, em meu ateliê provisório, fazendo o que? pintando, todo sujo com as tintas que vão para a tela mas teimam em escorrer em mim e na cerâmica branca, com gosto de gesso-cré e de pigmento na boca, com telas e telas secando indefinidamente ao sol que já se pôs. Mas o convite veio e foi irresistível.
Escreve Luiz Camillo, na apresentação da coletiva: "A morte da pintura é um tema recorrente. Quase tanto como sua insistente sobrevivência, suas muitas metamorfoses e reinvenções contemporâneas. Nossa memória visual está marcada pela história da pintura. Cada gesto de um pintor-artista recria e repotencializa sua tradição. Enquanto formos capazes de nos surpreender diante de uma pintura ela existirá e incorporará sua morte como estímulo vital. (...) O nosso objetivo é o de por em foco os vários caminhos da pintura contemporânea, com ênfase nos desdobramentos da figuração depois de incorporada a abstração no imaginário pictórico. Uma pintura na qual a figura cria vínculos improváveis e alimenta nossa capacidade de fabulação visual. Uma figura intoxicada pelas muitas formas de produção de imagens contemporânea – fotografia, HQ, cinema e, como não poderia deixar de ser, a própria história da arte – e que sem duplicá-las nos faz pensar sobre o visível, nos faz parar para olhar e perder tempo, em um mundo cada vez mais acelerado visualmente."
E a exposição está assim, forte, impecável. Claro que não esgota o assunto, poderia se fazer muitos e muitos outros recortes, incluir outros pintores da cena atual (muitos deles estavam lá, presentes, na abertura da exposição), mas o objetivo nem é o de fazer uma antologia completa; e sim fazer uma boa exposição; conseguiu; me faz parar a cada obra, maravilhado. Algumas pinturas eu só conhecia em reprodução, pequenas, e vê-las ao vivo, imensas, faz toda a diferença, é o caso de duas das telas do Zerbini ("O Hamlet Contemporâneo não segura a caveirinha" e o retrato do Barrão). E é bom, sempre é bom rever as fantásticas pinturas dos anos 1980 do Daniel Senise, como também ser envolvido pela força dos azulejos craquelados, manchados de sangue, da Adriana Varejão. Ver como o Berliner é o mesmo e é sempre diferente a cada tela, e como pinta bem! Gustavo Speridião também impressiona, gosto especialmente das apropriações dos cartazes da Casa Cruz; e o clima de mistério das pinturas da Vania Mignone tem histórias não contadas e um emprego de cor que acerta, pela sobriedade, ao realçar o mistério. E para mostrar que pintura não se faz só com tintas e tela, as enormes colagens, tramas, trançados, com rostos de banners de propaganda eleitoral do Jarbas Lopes são pintura, da boa; brincam com a percepção do espectador com sua dubiedade, deixando também um mistério, de outro tipo.
Gosto da pintura da Cristina Canale desde o tempo de Geração 80, e é muito bom ver nestas obras recentes (de 7 ou 8 anos para cá) como sua pintura cresceu, como sua técnica se aprimorou e sua narrativa se tornou mais densa e também mais misteriosa.
Poética, nas sugestões de plantas, nos animais, nas imagens de fotografias que são como memórias de infância se desvanecendo.
Ousada, nas cores, no sobrepor de imagens, no fazer e destruir. Pintura é isso, é abdicar de posições conquistadas, é ter a humildade de destruir "partes boas" em função de um todo que só existe na cabeça do pintor; é criar, do nada, Universos.
Um amigo meu (pintor, claro) comenta algo sobre uma tela em "feios verdes", que só a Cristina tem coragem de usar; e que com ela os verdes feios ficam maravilhosos; dialogam com uma pequena área laranja na borda superior da tela; é a "conversa de pintor", eu respondo falando sobre outra tela onde os brancos são tão diferentes, são várias áreas de brancos, só que cada branco é completamente individual, diferente dos demais; depois falamos sobre as áreas em violeta claro em outra tela, são espessas, o óleo tem volume e brilho como de esmalte, de asas de um besouro adorado como um deus no antigo Egito.
A boa pintura é assim, nos faz viajar até a infância, até um mítico Egito, até o Jardim primeiro, até o futuro mais impensado, tudo, simples assim, como mágica, a partir de manchas de cor sobre uma superfície. Simples. E tão difícil.
Mas a noite estava apenas começando.
Um pit-stop na Cobal do Humaitá, mais bebidas (sim, o coquetel do MAM tinha caipivodkas deliciosas e, sinal de sucesso, lá estava D.Graça, a penetra oficial que chancela os bons eventos), comida tex-mex. Bom, todos riram quando eu disse que era a primeira vez que eu ia à Cobal do Humaitá, de que mundo este blogueiro veio? Mas é verdade pura, e foi bom contar com guias fabulosos que destrincharam o cardápio e me aconselharam com as bebidas e comidas. Voltaram a rir quando eu falei que também nunca tinha ido a nossa próxima parada, o Bar/Clube Fosfobox. Pois é, onde eu estava, em que mundo? mesmo descontando o tempo que morei em Brasília, aqui no Rio eu trabalhava demais, estava sempre cansado ou casado ou mergulhado em pintura ou em livros, não necessariamente nesta ordem.
Enfim, o Fosfobox, para a 10a. edição da festa GANG BANG, do Saulo Laudares, que desta vez convidou o artista Raul Mourão para mostrar vídeos (300 vídeos!) e o DJ Diogo Reis.
A cada semana, sempre às quartas-feiras ("a quarta-feira é o novo sábado"), a cada edição com um DJ e um artista convidados, esta festa se transformou em um point de encontro dos artistas, em especial artistas visuais.
Esta edição, então, foi excepcional, uma festa, em todos os sentidos, para todos os sentidos.
Como a boa pintura, que é uma festa para o olhar e que por sinestesia se transforma em uma festa para todos os sentidos.
Podemos sentir o cheiro das flores gigantescas na tela da Cristina Canale, dos abricós de macaco do Zerbini; podemos ouvir ruídos estranhos das figuras estranhas do Eduardo Berliner; podemos sentir na pele a aspereza ou o liso da tinta que se acumula em camadas e camadas da pinturas da Cristina; e mesmo sentir na boca o gosto doce do sangue e enjoativo das carnes cruas que brotam dos azulejos da Adriana Varejão.
Eu gosto de pintura.


Fotos da inauguração em registro do Fotógrafo Odir Almeida no www.soartecontemporanea.com