terça-feira, 13 de julho de 2010

Bárbara & Gordon & Rebecca

Últimos dias para correr e ver duas exposições, no Rio, que estão se encerrando, uma delas  nesta semana e a outra na próxima.
As duas exposições estão em dois polos do Corredor Cultural do Rio de Janeiro, entre elas uma andada em uma linha quase reta de menos de um quilômetro, passando pelo Arco do Teles, onde sempre eu escuto os gemidos de Bárbara dos Prazeres.
Bárbara morava na rua, nos anos 1800, abrigada sob o mesmo Arco dos Teles sob o qual eu caminho em meu circuito artístico. O Arco, que milagrosamente escapou quase incólume da especulação imobiliária que arrasou o Rio de Janeiro. Antes da especulação imobiliária, o arrasa-quarteirões para o desmonte do morro do Castelo, e a construção da Av.Pres.Vargas; lá mesmo, na atual Praça XV (o antigo Largo do Paço, o Largo do Terreiro do Polé), desfigurado, asfixiado com a Perimetral, vendo depois surgir o espigão da Universidade Cândido Mendes no pátio do Convento do Carmo.
O Arco escapou, se olhamos só para baixo, pois em cima dele se plantou um edifício horrível, acho que pela força de Bárbara dos Prazeres, que lá morava e ainda mora, e cujos suspiros de gozo eu sempre ouço.
Ouço mesmo, não é força de expressão. Eu sei. Eu a sinto, em baixo do Arco, e o Largo do Paço cheio de movimento diurno, navios chegam, a família Real no Paço, o comércio na Rua Larga, marinheiros chegam e saem a todo o momento no atracadouro, o Príncipe de Bragança é um jovem audacioso e sensual, depois a jovem Imperatriz é uma Habsburgo, depois, depois...
Bárbara, em seu posto, sob o Arco, é o verdadeiro centro de tudo; talvez uma noite mesmo o impetuoso Bragança tenha ido gozar entre as coxas quentes de Bárbara; mas se não ele, os nobres e os marinheiros, os embaixadores e os clérigos, os jovens e os velhos, certamente, gozaram, e alimentaram com seu gozo os gemidos que eu hoje ainda ouço.
O que ficou na história não é muito simpático a Bárbara. Eu sei, mentiras perpetuadas. Os historiadores são uns porcos chauvinistas, contam a história do ponto de vista dos vencedores, dos machos, dos caretas. Uma questão de gênero, que só apareceu recentemente.
Assim, dizem os historiadores que ela era uma bruxa, que matou o marido e os amantes, que tinha sífilis (bom, isso bem provável, pelo estilo de vida, se fosse hoje certamente seria HIV+) e/ou lepra, e que raptava crianças abandonadas para matá-las em rituais satânicos, bebendo o sangue dos enjeitados para conseguir a cura de suas mazelas. Uma serial-killer avant la lettre, talvez. De linda dos Prazeres passou a ser vista como vampira, tornou-se "a Onça" dos pesadelos das crianças, até que simplesmente desapareceu, morta certamente, mas continuou por décadas a frequentar os pesadelos dos cariocas.
Eu sei, para mim tudo mentira, quando eu passo pelo Arco do Telles vindo do Espaço Cultural do Paço e indo para o CCBB, ela sussurra em meus ouvidos, eu a ouço, a sinto; peço sua bênção; quando bebo um chopp ou um vinho em algum vernissage na área sempre deixo algum trago para ela; e agradeço a ela por eu estar de novo, ali, mais uma vez; não a vejo, ainda, mas um dia quem sabe?
Ela, para mim, é a verdadeira dona do Arco do Telles; foi ela quem o preservou da especulação imobiliária , ela cuida de tudo. Assim, para mim foi ela quem fez com que, em pleno 2010, duas exposições muito importantes, e inéditas no Rio, se encontrassem nas duas extremidades do "seu" corredor: Desfazer o Espaço, de Gordon Matta-Clark, no Paço Imperial, e Rebelião em Silêncio, de Rebecca Horn, no CCBB. Não é pouca coisa, é de primeira.
Gordon Matta-Clark desenvolveu seu trabalho, jovem, nos anos 1970, e morreu prematuramente em 1978, com 35 anos. Tem o frescor da juventude, e mais ainda, de quem foi jovem naquela década mágica, quando ser jovem era mais do que um adjetivo (o jovem artista), ser jovem era ser o motor do mundo, em um mundo das gerações anteriores que caía aos pedaços em tanto conformismo, no auge da Guerra Fria; e um mundo que seria dos jovens, só seria salvo pelos jovens na medida em que eles recusassem os paradigmas das gerações anteriores.
(tudo isso aconteceu, talvez Matta-Clark nem imaginasse, ao fazer seus trabalhos, que seria possível tanta mudanca, tantas conquistas e ao mesmo tempo tantos retrocessos: a liberação feminina aconteceu, as minorias ganharam visibilidade, a ecologia passou a ser discutida seriamente, a Guerra Fria se acabou, o Muro de Berlin caiu, a internet possibilitou comunicação universal instantânea, veio a globalização com novas formas de dominação; o terrorismo internacional tem poderes de submeter até as grandes potências; o fundamentalismo e o obscurantismo não diminuiriam, pelo contrário, são mais fortes e poderosos; o circuito da arte incorporou no mainstream o que antes era radical; o radical se banalizou).
Matta-Clark fazia intervenções, mas não eram intervenções banais. Ele simplesmente cortava uma casa ao meio; depois retirava parte dos alicerces de uma das metades da casa; e esta caía um pouco, na lateral, oblíqua, na medida apenas para expor a fenda entre as partes, como uma coisa sobre-humana e ao mesmo tempo tão simples; e o interior da casa, visto através da fenda, recebia sol, luz, como nunca.
Ele levava sol, luz, a lugares e conceitos escuros, ele levava um novo olhar e uma nova forma de vida, utópica e possível, a um meio artístico e um establishment que se caracterizavam pelo conservadorismo mais arraigado.
Arte é vida, e para o artista americano, arte é penetrar nas brechas, é propor e viabilizar alternativas; não é pintar telas abstrato-expressionistas para as penthouses dos Rockefellers ou para os lobbies das grandes Corporações. Ao realizar suas efêmeras intervenções, em escalas gigantes e com meios precários, com gigantescos esforços físicos, o artista questionava sobre a ocupação do espaço urbano e a destruição da memória das cidades, a mesma especulação imobiliária que, por exemplo, até hoje faz tudo para destruir o Rio de Janeiro.
Uma arte política, uma atuação política. Em 1971 o artista boicotou a Bienal de São Paulo, e assinou manifesto contra a ditadura brasileira que respaldava a mostra.
Além das intervenções urbanas, Matta-Clark atuou em experiências culinárias, estudos de Alquimia, dança, performance, desenho e fotografia; e sempre dentro deste espírito questionador sobre os espaços, a urbanização, a inserção, os moradores de rua, o desperdício, a sustentabilidade, a arte.
A rebelião de Rebecca Horn se faz em silêncio, em sutilezas, um trabalho que apresenta questões ao espectador, que é levado a um mundo de dualidades, de pequeno/grande, dentro/fora, amor/ódio, lirismo/máquina, de repetições e de inesperado.
Nascida em 1944, apenas um ano depois de Matta-Clark, a artista foi uma das pioneiras na utilização da tecnologia em arte, nos anos1970. Seus primeiros trabalhos consistiam de performances com máscaras, próteses e objetos feitos com penas de aves; que evoluíram para impressionantes instalações e esculturas cinéticas, feitas em e para lugares carregados com grande importância histórica e política. Assim foi em 1994, em Viena, com a Torre dos Sem-nome, quando a artista cria um monumento para os refugiados das guerras da península balcânica, uma torre com violinos mecânicos.
A partir de filmagens feitas para documentar suas performances, Rebecca passou a utilizar também a linguagem do vídeo, e daí ao cinema, chegando em 1990 a criar e dirigir um longa-metragem, Buster’s Bedroom, com recursos de cinema profissional e a participação dos atores Donald Sutherland e Geraldine Chaplin. Este filme e vários outros da obra cinematográfica da artista podem ser vistos nesta exposição.
Na magnífica rotunda do CCBB, O Universo em uma Pérola, uma enorme escultura em movimento, construída por dois espelhos separados por funis de ouro. Ao olharmos nossa imagem no jogo de reflexos, paradoxalmente o que parece se mover não são os espelhos, não é nossa consciência, e sim as paredes do prédio, provocando estranheza ou mesmo causando vertigem.
É uma exposição para ser vista com tempo, com vagar, não é uma exposição para uma leitura dinâmica (pensando bem, que exposição seria adequada para uma leitura dinâmica?).
Tempo para poder ver todos os filmes, e também para "espreitar" os objetos da artista, que "acordam" e funcionam aleatoriamente, de tempos em tempos. De repente, uma máquina-borboleta enclausurada em uma redoma de vidro faz um pequeno voo; um leque de penas se abre; um piano pendurado do teto, com as pernas para cima, começa a ser tocado mecanicamente; uma "máquina de pintar" joga manchas de tinta em uma parede... Espreitar, ser surpreendido; pensar sobre.
E também para pensar sobre os muitos pontos em comum e os muitos pontos divergentes entre os trabalhos dos dois artistas, trabalhos totalmente contemporâneos. Como o trabalho político tão radical do Matta-Clark nos anos 1970 foi interrompido por sua morte; enquanto que a maior longevidade da artista alemã possibilitou um desenvolvimento do trabalho, utilizando recursos do sistema; como hoje o sistema aceita, e até incorpora, procedimentos outrora visto como radicais e contestadores; talvez até diluindo sua força de contestação.
O precário dos filmes em Super 8 do artista americano e a super-produção do longa-metragem de Rebecca Horn falam talvez da mesma coisa; mas a contundência é bem diversa. Mesmo como peça de museu, como documentário apenas, as experiências de Matta-Clark remetem a um momento de mudança; talvez esta mudança, a possível, tenha ocorrido; e talvez só nos reste olhar o mundo globalizado se balançando como dois espelhos separados por funis de ouro.

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