Visitar
Jardim das Daninhas, a exposição da artista
Rosana Palazyan, na Casa França Brasil, que comentei
em meu último post, me levou em uma viagem de memória a um jardim que já tive. Final dos anos 1970, uma casa de pescador em
Arraial do Cabo, que então era apenas uma aldeiazinha de Cabo Frio; a uns vinte passos da areia do mar; uma praia, a
Prainha, uma pequena enseada com agua quase morna e ondas fracas, de piscina; a casa montada em uma pirambeira que muito tempo depois virou uma favela; e um quadrado de uns 100 m2 de areia e pedra na frente da casa, onde pensamos um jardim japonês mas onde fizemos, com a ajuda de uma caseira muito decidida,
Dona Elza, um "jardim caipira".
A inspiração foi
Monteiro Lobato. Em um dos livros sobre o Sítio ele fala de jardins com plantas fora de uso, e das
zínias (
zinnias elegans), que à época que ele escreveu estavam desaparecendo dos jardins, por terem saído de moda. Dentro dos padrões estéticos da época em que ele escreveu, as zínias eram vistas como flores "loucas", rústicas e até defeituosas (acho que meio mutantes, pois nasciam pequenas flores, com pétalas e tudo, nas corolas; e nasciam flores de cores diferentes em um mesmo pé).
Talvez Monteiro Lobato tenha visto as zínias como viu as pinturas da Anita Malfatti, não sei; sei que não vou nunca mais achar o texto que li na infância, mas quando tive meu primeiro pedaço de terra para fazer um jardim, pedi à obsequiosa D.Elza que nos arranjasse zinias, e ela o fez, e jardim foi por um tempo um reduto daquelas flores obsoletas, mutantes e decadentes, um triunfo do eugenismo às avessas.
O jardim já tinha um pé de figo (não é a figueira, árvore grande que está em algumas ruas do Rio e sempre cai em temporais, destruindo carros; era um arbusto e que produzia intermitentemente figos, comestíveis, para minha surpresa), e
chuchu, que se alastrava e tomava conta de grande parte do terreno (Arraial é um cabo, não é serra, mas o dito popular que diz de moças que "dão mais que chuchu na serra" é absolutamente verdadeiro, o chuchu se espalha como pessoas fogosas).
Um dia D.Elza nos trouxe uma muda de um arbusto, um "mato",
caruru, ela disse, e é comestível; eu achei muito parecido com urtiga, o caruru que eu conhecia era a
comida da Bahia, achei que ela estivesse planejando me envenenar, mas finalmente descobri que o tal caruru é uma erva daninha, invade tudo, resiste a seca e mal tratos, e é realmente comestível, é gostoso até, cozido ou no vapor, como um espinafre.
E uma caramboleira mirrada, mas que dava muitas
carambolas que atraíam as crianças da vizinhança que pulavam a cerca para roubá-las. Erva cidreira,
boldo, este último muito útil nas ressacas depois de muitas cervejas e caipirinhas na praia, o que era nossa rotina dos sábados.
Tudo misturado: jardim, horta, farmácia, como nos jardins de roça.
O jardim mudava muito, pois a terra não era boa e a água era escassa. Juro que uma vez tivemos até uma babosa ou outra planta com folhas duras, pontudas e com um espinho na ponta, como lanças; enfeitada com cascas de ovo (quem nunca viu isso? cada folha recebe, na ponta, uma casca inteira de ovo, uma produção, quebrar os ovos apenas pela ponta para esvaziar as cascas e colocás-la perfeitas, como brancas bolas de um Natal que dura o ano inteiro).
Dona Elza sempre com uma novidade da região e uma planta nova, acompanhada dos três filhos, bem crianças ainda, e do marido, Seu A., um louro meio bronco que trabalhava no único empregador da cidade, a Companhia Álcalis, uma estatal deficitária, e fazia bicos. Um dos bicos foi como pedreiro para as primeiras coisas que incrementei na casa: uma varanda, uma entrada para o carro... e ela, D.Elsa, sem medo de trabalho, ajudava o marido a virar a massa, a assentar as lajotas.
Por um tempo, as zínias deram vez às
maria-sem-vergonha (coitadas, estas gostam da umidade da mata atlântica, na falta d'água de Arraial elas sofriam), aos jacintos, a umas rosas murchas e muito espinhosas...
A fase dos jacintos foi interessante. Além do aspecto mitológico (
Jacinto da mitologia grega morreu vítima de uma disputa amorosa entre
Apolo e
Zéfiro), os jacintos me levavam a minha casa de infância, onde um canteiro no jardim era plantado com jacintos; e o empregado da casa também se chamava Jacinto; e quando minha mãe dava as ordens: "
Jacinto, não esqueça de molhar os jacintos", as crianças morriam de rir. As flores eram como chagas, de uma folhagem verde rompiam linguas amarelas e vermelhas, como o sangue que brotou da testa do Jacinto original quando Zéfiro, enciumado de Apolo, desviou o disco com que os amantes brincavam e o tranformou em instrumento de morte.
Bom, estes eram os jacintos de antigamente, e acreditem ou não, nos canteiros da Rosana Palazyan, lá estava um jacinto igual a estes, os da minha infancia e o do jardim em Arraial; quando pesquiso na internet vejo que hoje jacinto, ou
hyacintu, é outra coisa, uma planta bonita com muitas flores azuis, poderosa, talvez geneticamente incrementada, nada da rusticidade que eu associava a um mortal que despertou paixões em um Deus e em um Vento.
Tivemos também uma que se chamava de bambu japonês ou renda portuguesa ou algo assim, parece uma samambaia mas é uma trepadeira, precisa de umidade, tem alguns espinhos nos galhos que se enroscam e se expandem, mas as folhas são lindas como um rendado, uma filigrama, e lá estava também no jardim da Rosana Palazyan.
Na época não sabíamos (como prever o futuro?) que aquela cidadezinha que eu conheci com 20 mil habitantes ia sofrer muitas transformações, e ao meu ver para pior. A inauguração da
Ponte Rio-Niterói, em 1974, talvez tenha sido a causa primeira; ou a fama de uma cidade meio contra-mão que era "um Paraíso" e à qual se chegava deixando o caminho de Cabo Frio por uma estrada que ficava coberta pelas dunas em períodos de vento mais forte; talvez o estilo de vida rústico, os terrenos baratos, a ausência de repressão, a população acolhedora...
Arraial cresce, em meados dos anos 1980 se emancipa de Cabo Frio, torna-se um município autônomo, acho que a primeira obra do novo prefeito foi fazer um Portal para a cidade, obra predileta das administrações municipais pelo Brasil afora, absolutamente inútil mas com grande visibilidade. A cidade cresce desordenadamente, se faveliza.
A Álcalis, que tinha sido criada no Governo Vargas para produção de barrilha, e onde além do Seu A. trabalhava também grande parte dos moradores da cidade (outra parte, pescadores, ou donos de comércios rudimentares ou bares), é vendida, na onda de privatizações do Governo Collor; a nova administração da empresa faz reestruturações, demissões, e segue aos trancos e barrancos até que mais recentemente fecha as portas. Mas antes mesmo disso tudo, Seu A. começa a beber, fica desempregado, o casal se separa; eu passo a ouvir cada um deles, separadamente, falar mal do outro, e assim fico sabendo de histórias sórdidas e muito complicadas.
Conheço outras pessoas e passo para um outro arranjo para a administração da casa, que também foi reformada, não é mais aquela casinha de pescadores, D.Elza já não é mais caseira, mas continua como vizinha e eu continuo acompanhando a família, vendo os filhos de D.Elza que crescem, adolescentes, deixam a escola, para uma vida sem perspectiva de emprego, para um outro mundo, que chega a Arraial e transforma a cidade idílica em uma miniatura de cidade grande, com furtos, drogas.
Um dos filhos, T., uma linda criança hiperativa que matava passarinhos com baladeiras, que torturava ratos do mato, que criava ovos de cobra e pescava de mergulho, cresceu em um adolescente lindo e
gauche. Olhos verdes, de um verde lindo, como um mar, como uma água estagnada, e um sorriso mau. Pequenos furtos, envolvimento com drogas (não, ainda não era o
crack, talvez maconha e cocaína), um dia a notícia: foi morto, junto com outros colegas de praia, de drogas e de furtos, todos crianças que eu cansei de ver, na praia, brincando e soltando pipa. Como as ervas do meu jardim, da casa que um dia vendi, de um passado que sobrevive apenas em fotos cada vez mais desbotadas.