quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma foto de celular

São Paulo, noite de abertura da SP-arte, o Pavilhão Bienal no Ibirapuera cheio, o espumante Salton servido sem parcimônia. Entre os milhares de pessoas que passam pelos stands, um sorriso tímido e irônico, um olhar forte, roupa preta, uma camiseta com estampa de caveira, uma vanitas. É ela, a cantora? pergunto. Sim.
Vou até ela, que já se afasta do stand, falo seu nome, meio envergonhado pois já não sou mais um adolescente para agir como um fã, pergunto se posso tirar uma foto  com meu celular, uma foto dela comigo, pedindo desculpas por agir como um adolescente fã enamorado.
Ela sorri e com a voz muito rouca diz que sem problemas, que já está acostumada, eu me enrolo todo na operação do celular para tirar a foto, não é o nervosismo do encontro, é que eu sou meio atolado com estas coisas de tecnologia, digo, ela, paciente diz que também é (claro que é uma mentira piedosa), finalmente consigo tirar a foto que minutos depois está no Facebook, para gáudio e inveja das centenas de amigos: eu e ela.
Agradeço, gaguejo, pois não é bem isso o que eu queria dizer, apenas “obrigado”, queria dizer que eu a conheço muito, desde o primeiro LP quando ela era muito magrinha e com cabelos encaracolados, desde quando ela fez a tatuagem com a figura de um cometa, desde quando eu pulava com S. no Canecão ao som da guitarra que ela tocava com o charme de tirar a mecha do cabelo negro que sempre voltava a cobrir sua testa, queria dizer mais, que minha avó e a avó dela trocavam receitas quando grávidas de nossas mães, em outra cidade, outro Universo, outro século, outra dimensão de tempo e de hiperespaço, queria dizer tanta coisa dentro do “muito obrigado” que falo com um sorriso e um beijo em cada lado da face, tão cariocas (os paulistas dão apenas um beijo, as faces direitas). E ela desaparece entre os corredores sinuosos do Pavilhão Bienel lotado de gente.
No Hotel, procuro no iPod e lá está, entre as 5673 músicas armazenadas, Fullgás, Marina Lima, o LP inteiro. Adormeço ouvindo as guitarras e a voz rouca que embalaram nossa tardia adolescência, um tempo quando tínhamos um futuro, e este futuro era o momento presente eternizado na voz rouca que chega a mim não mais nos sulcos do vinil e sim de um chip, da voz rouca que está além de qualquer tecnologia, eterna como eternos são os mitos e os amores de adolescência.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Um objeto, um só

As chuvas no Rio trouxeram traumas emocionais mesmo aos não diretamente atingidos. Presos em engarrafamentos, vendo a água subir, ou ouvindo barulhos de desabamentos; e cada um tem uma história para contar; casas boas, prédios de classe média, barracos, todos dão graças ao sol que apareceu hoje, feriado de Tiradentes.
Uma fantasia que sempre aparece nestas horas de catástrofe (afinal, 2012 está logo aí) é o que eu levaria, salvaria, se pudesse levar apenas um objeto, um só, e deixar o resto do acumulado em uma vida de colecionador desabar ou ser levado pelo tsunami.
Uma pintura? um livro? uma foto? um CD? uma roupa?
Por categoria é até mais fácil, mas é dificil imaginar que em um momento de tragédia eu possa sair levando uma pintura de 1,80x1,80m, a minha Beatriz Milhazes. OK, uma pintura um pouco menor e um livro, também difícil sair com meu São Sebastião sem flechas, do Glauco Rodrigues, e ainda o Proust completo, me abrigando com esta bagagem em um CIEP sperlotado.
Mas hoje eu consegui equacionar esta questão tão dificil.
O objeto, o único objeto que eu levaria comigo em um caso de tragédia, de inundações, de holocausto, de guerra nuclear (bom, este cenário voltou a estar em voga, com o Lula flertando com o Ahmadinejad) é a minha taça para vinho do Porto.
Será que eu imagino que em um hipotético campo de concentração teria vinho do Porto à disposição para que eu usasse a taça? não sei, não imagino muito, mas esta taça é especial. De cristal, claro. Numerada, a minha é a 001756, número gravado em seu bojo, com a chancela do Instituto do Vinho do Porto. Construída segundo as especificações da ISO sei-lá-que-número, tem um detalhe magistral, a haste reta que liga o pé firme à taça bojuda tem uma parte arredondada, ergométrica: o lugar onde colocar, descansar, o polegar da mão do degustador que apoia o pé da taça com a palma da mão e aspira os aromas que sobem, etéreos, celestes. Um triunfo, uma obra prima de ergonomia e de enologia.
Como ela veio para mim é toda uma história.
Um convite para uma degustação de vinhos do Porto, em um dia normal, de trabalho, uma 4a.feira talvez, acho que 2002 ou 2003, RSVP, no Consulado de Portugal, aquela casa magnífica em Botafogo. Respondi que sim, claro, e lá fui eu em meio à chuva ainda fraca. Lá, para minha surpresa, meu nome estava na lista do jantar mas também estava indicado para a degustação, que seria um evento mais exclusivo. OK, maravilha, e lá estou eu em uma mesa, rodeado de enólogos importantes, em frente ao meu amigo o enólogo Marcelo Copello, e me anunciam que serão degustados 40 e tantos vinhos do Porto. Respiro fundo, penso que vou ter que voltar dirigindo mas tudo bem, a chuva cai mais forte ainda.
E recebo a minha taça.
A casa é linda, a mesa tem uns trinta degustadores, são distribuídas as fichas onde temos que anotar as observações, os sommeliers são portugueses, lindos e eficientes, e começa a tarefa. Como em toda degustação, há os baldes onde podemos cuspir o degustado, sem ingerir; eu respiro fundo e digo para mim mesmo, "bobo você, eu não vou cuspir nada, vou beber tudo, claro, os quarenta e tantos vinhos do Porto de primeira qualidade".
Vinho do Porto é um mundo, diferente destas coisas pausterizadas que se compra em Free-Shop. Branco, ruby, tawny, LBV. Uma história, lendas, e nós alí, naquela mesa comprida, já no trigésimo vinho, a chuva cai mais forte, o teto é alto e barroco, uma música suave ao fundo; meus companheiros de mesa parecem vampiros quando sorriem pois os dentes alvos estão tingidos pelo Porto, eu devo estar assim também, claro, um vampiro, mais um entre eles, sorrio comigo mesmo e vou para a quadragésima taça de um Porto este já bem encorpado, registro na ficha "maravilha!", aromas de séculos, dos Bragança, de um Portugal que está aqui presente nestes azulejos, relâmpagos ou só sustos? o último vinho, a última ficha a preencher, acho que cheguei na nota 100 ou um pouco menos, enfim...
A perfeição, isso é que eles atingiram, os Porto, somando a técnica centenária com a natureza perfeita, precisa, e ali está: a perfeição.
Terminou a degustação e agora é o jantar. Como sempre, eu saio devagar e conversando, as pessoas correm e quando chego no salão do jantar as mesas estão todas ocupadas. Posso desistir e ir embora, mas sou obstinado, converso com a mestre de cerimônias, Cristina, que me pede milhões de desculpas, alguns penetras acho eu, eu trouxe da sala da degustacão minha taça ainda com vinho, enfim, de repente estou acomodado na mesa principal, ao lado do Cônsul e da diretoria do Instituto do Vinho do Porto, e a Flávia Quaresma chega para falar sobre o jantar harmonizado com os vinhos, não só os Porto mas os espumantes portugueses que são brutos, ótimos e rústicos, e os vinhos do Alentejo, e no final mais vinho do Porto.
Estou na mesa da Diretoria, e com uma atenção maior que a que é dada aos mortais. Isto siganifica: mais álcool, mais flertes, troca de cartões, nada de concreto mas muita promessa, olhares e toques, aromas e suspiros, como na degustação.
A esta altura a chuva é um dilúvio, estou completamente bêbado, por opção minha, claro, a sobremesa portuguesa é altamente calórica mas é perfeita para mais um Porto. Eu beijo reverente a Flávia Quaresma pelo prazer que ela nos proporcionou, a noite vai se encerrando e ainda dou uma carona até o Leblon para Cristina, a mestra de cerimônias; eu alto, bêbado, completamente. Bom, ainda não havia Lei Seca.
No dia seguinte acordo ressacado, respiro fundo e penso, eu optei por isso, como eu iria ser parcimonioso em uma situação destas? Ligo para o trabalho, dou uma desculpa furada, o carro teve problema, enfim.
A taça veio em meu bolso e ela não teve problema nem ressaca, cristal é outra coisa, ela brilha e foi para o lugar dela, a estante onde está minha adega, minha pobre adega com poucas ou nenhuma estrelas.
Depois disso ela continua brilhando. Ela me aponta que há algo além, mais alto, além do dia a dia, algo que vem da tradição e que se renova, algo que buscamos e está sempre além e que nos faz continuar vivos, na busca da perfeição.
Meu objeto.
Minha perfeição.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Retornando ao meu jardim caipira

Visitar Jardim das Daninhas, a exposição da artista Rosana Palazyan, na Casa França Brasil, que comentei em meu último post, me levou em uma viagem de memória a um jardim que já tive. Final dos anos 1970, uma casa de pescador em Arraial do Cabo, que então era apenas uma aldeiazinha de Cabo Frio; a uns vinte passos da areia do mar; uma praia, a Prainha, uma pequena enseada com agua quase morna e ondas fracas, de piscina; a casa montada em uma pirambeira que muito tempo depois virou uma favela; e um quadrado de uns 100 m2 de areia e pedra na frente da casa, onde pensamos um jardim japonês mas onde fizemos, com a ajuda de uma caseira muito decidida, Dona Elza, um "jardim caipira".
A inspiração foi Monteiro Lobato. Em um dos livros sobre o Sítio ele fala de jardins com plantas fora de uso, e das zínias (zinnias elegans), que à época que ele escreveu estavam desaparecendo dos jardins, por terem saído de moda. Dentro dos padrões estéticos da época em que ele escreveu, as zínias eram vistas como flores "loucas", rústicas e até defeituosas (acho que meio mutantes, pois nasciam pequenas flores, com pétalas e tudo, nas corolas; e nasciam flores de cores diferentes em um mesmo pé).
Talvez Monteiro Lobato tenha visto as zínias como viu as pinturas da Anita Malfatti, não sei; sei que não vou nunca mais achar o texto que li na infância, mas quando tive meu primeiro pedaço de terra para fazer um jardim, pedi à obsequiosa D.Elza que nos arranjasse zinias, e ela o fez, e jardim foi por um tempo um reduto daquelas flores obsoletas, mutantes e decadentes, um triunfo do eugenismo às avessas.
O jardim já tinha um pé de figo (não é a figueira, árvore grande que está em algumas ruas do Rio e sempre cai em temporais, destruindo carros; era um arbusto e que produzia intermitentemente figos, comestíveis, para minha surpresa), e chuchu, que se alastrava e tomava conta de grande parte do terreno (Arraial é um cabo, não é serra, mas o dito popular que diz de moças que "dão mais que chuchu na serra" é absolutamente verdadeiro, o chuchu se espalha como pessoas fogosas).
Um dia D.Elza nos trouxe uma muda de um arbusto, um "mato", caruru, ela disse, e é comestível; eu achei muito parecido com urtiga, o caruru que eu conhecia era a comida da Bahia, achei que ela estivesse planejando me envenenar, mas finalmente descobri que o tal caruru é uma erva daninha,  invade tudo, resiste a seca e mal tratos, e é realmente comestível, é gostoso até, cozido ou no vapor, como um espinafre.
E uma caramboleira mirrada, mas que dava muitas carambolas que atraíam as crianças da vizinhança que pulavam a cerca para roubá-las. Erva cidreira, boldo, este último muito útil nas ressacas depois de muitas cervejas e caipirinhas na praia, o que era nossa rotina dos sábados.
Tudo misturado: jardim, horta, farmácia, como nos jardins de roça.
O jardim mudava muito, pois a terra não era boa e a água era escassa. Juro que uma vez tivemos até uma babosa ou outra planta com folhas duras, pontudas e com um espinho na ponta, como lanças; enfeitada com cascas de ovo (quem nunca viu isso? cada folha recebe, na ponta, uma casca inteira de ovo, uma produção, quebrar os ovos apenas pela ponta para esvaziar as cascas e colocás-la perfeitas, como brancas bolas de um Natal que dura o ano inteiro).
Dona Elza sempre com uma novidade da região e uma planta nova, acompanhada dos três filhos, bem crianças ainda, e do marido, Seu A., um louro meio bronco que trabalhava no único empregador da cidade, a Companhia Álcalis, uma estatal deficitária, e fazia bicos. Um dos bicos foi como pedreiro para as primeiras coisas que incrementei na casa: uma varanda, uma entrada para o carro... e ela, D.Elsa, sem medo de trabalho, ajudava o marido a virar a massa, a assentar as lajotas.
Por um tempo, as zínias deram vez às maria-sem-vergonha (coitadas, estas gostam da umidade da mata atlântica, na falta d'água de Arraial elas sofriam), aos jacintos, a umas rosas murchas e muito espinhosas...
A fase dos jacintos foi interessante. Além do aspecto mitológico (Jacinto da mitologia grega morreu vítima de uma disputa amorosa entre Apolo e Zéfiro), os jacintos me levavam a minha casa de infância, onde um canteiro no jardim era plantado com jacintos; e o empregado da casa também se chamava Jacinto; e quando minha mãe dava as ordens: "Jacinto, não esqueça de molhar os jacintos", as crianças morriam de rir. As flores eram como chagas, de uma folhagem verde rompiam linguas amarelas e vermelhas, como o sangue que brotou da testa do Jacinto original quando Zéfiro, enciumado de Apolo, desviou o disco com que os amantes brincavam e o tranformou em instrumento de morte.
Bom, estes eram os jacintos de antigamente, e acreditem ou não, nos canteiros da Rosana Palazyan, lá estava um jacinto igual a estes, os da minha infancia e o do jardim em Arraial; quando pesquiso na internet vejo que hoje jacinto, ou hyacintu, é outra coisa, uma planta bonita com muitas flores azuis, poderosa, talvez geneticamente incrementada, nada da rusticidade que eu associava a um mortal que despertou paixões em um Deus e em um Vento.
Tivemos também uma que se chamava de bambu japonês ou renda portuguesa ou algo assim, parece uma samambaia mas é uma trepadeira, precisa de umidade, tem alguns espinhos nos galhos que se enroscam e se expandem, mas as folhas são lindas como um rendado, uma filigrama, e lá estava também no jardim da Rosana Palazyan.
Na época não sabíamos (como prever o futuro?) que aquela cidadezinha que eu conheci com 20 mil habitantes ia sofrer muitas transformações, e ao meu ver para pior. A inauguração da Ponte Rio-Niterói, em 1974, talvez tenha sido a causa primeira; ou a fama de uma cidade meio contra-mão que era "um Paraíso" e à qual se chegava deixando o caminho de Cabo Frio por uma estrada que ficava coberta pelas dunas em períodos de vento mais forte; talvez o estilo de vida rústico, os terrenos baratos, a ausência de repressão, a população acolhedora...
Arraial cresce, em meados dos anos 1980 se emancipa de Cabo Frio, torna-se um município autônomo, acho que a primeira obra do novo prefeito foi fazer um Portal para a cidade, obra predileta das administrações municipais pelo Brasil afora, absolutamente inútil mas com grande visibilidade. A cidade cresce desordenadamente, se faveliza.
A Álcalis, que tinha sido criada no Governo Vargas para produção de barrilha, e onde além do Seu A. trabalhava também grande parte dos moradores da cidade (outra parte, pescadores, ou donos de comércios rudimentares ou bares), é vendida, na onda de privatizações do Governo Collor; a nova administração da empresa faz reestruturações, demissões, e segue aos trancos e barrancos até que mais recentemente fecha as portas. Mas antes mesmo disso tudo, Seu A. começa a beber, fica desempregado, o casal se separa; eu passo a ouvir cada um deles, separadamente, falar mal do outro, e assim fico sabendo de histórias sórdidas e muito complicadas.
Conheço outras pessoas e passo para um outro arranjo para a administração da casa, que também foi reformada, não é mais aquela casinha de pescadores, D.Elza já não é mais caseira, mas continua como vizinha e eu continuo acompanhando a família, vendo os filhos de D.Elza que crescem, adolescentes, deixam a escola, para uma vida sem perspectiva de emprego, para um outro mundo, que chega a Arraial e transforma a cidade idílica em uma miniatura de cidade grande, com furtos, drogas.
Um dos filhos, T., uma linda criança hiperativa que matava passarinhos com baladeiras, que torturava ratos do mato, que criava ovos de cobra e pescava de mergulho, cresceu em um adolescente lindo e gauche. Olhos verdes, de um verde lindo, como um mar, como uma água estagnada, e um sorriso mau. Pequenos furtos, envolvimento com drogas (não, ainda não era o crack, talvez maconha e cocaína), um dia a notícia: foi morto, junto com outros colegas de praia, de drogas e de furtos, todos crianças que eu cansei de ver, na praia, brincando e soltando pipa. Como as ervas do meu jardim, da casa que um dia vendi, de um passado que sobrevive apenas em fotos cada vez mais desbotadas.

terça-feira, 6 de abril de 2010

No Jardim de Ervas Daninhas

Jardim das Daninhas, a exposição da artista Rosana Palazyan, na Casa França Brasil, transforma a imponente alfândega de Grandjean de Montigny em um bucólico jardim ou pracinha, com caminhos entre canteiros de plantas, casulos de borboletas que se abrem e um realejo que toca e revela sortes em pequenos papéis coloridos.
Mas à medida em que caminhamos entre os canteiros e lemos as frases delicadamente bordadas com fios de cabelos ou impressas nos papéis da sorte, penetramos em uma realidade cruel, de comunidades periféricas, de moradores de rua, de vítimas de violência, de marginalizados de toda a sorte.
A arte, para Rosana, é uma ferramenta de transformação social, e ao dar a voz em seu trabalho aos marginalizados da sociedade, a artista contribui para um diálogo e um caminho de integração dos mesmos.
Na performance O Realejo este diálogo se faz de uma forma bem emocional. O som do realejo nos leva a um passado mítico, e a sorte que tiramos em um papel colorido nos indicaria talvez um futuro brilhante ou um amor transformador; no entanto, o papel traz apenas parte de um depoimento de um morador de rua ("...mas a gente não é louco. A gente tá falando sozinho porque a gente tá coordenando a mente..." foi a sorte que eu tirei).
Na instalação No Lugar do Outro, uma sala totalmente branca tem um pequeno móvel "de hospital", e dezenas de frágeis casulos brancos na perede; alguns casulos se abriram (na verdade, em uma performance na inauguracão da exposição foram abertos por biólogos) e deles saíram, como borboletas, delicados bordados com fragmentos pessoais de moradores de rua entrevistados.
(Uso a palavra "entrevistados" para os moradores de rua que participaram do projeto por um defeito de linguagem, o correto talvez fosse falar não de "entrevistados" mas de co-autores do trabalho da artista, é o que eu acho; mas o circuito de arte ainda, mesmo hoje, preza a "autoria" de um trabalho)
Finalmente, Por Que Daninhas, que acompanha os canteiros, com relicários que funcionam como placas indicativas das espécies, mas tem plantas e frases bordadas com fios de cabelos, que questionam o próprio conceito de "erva daninha". A erva daninha seria uma planta que é considerada , e que precisaria ser destruída, se não iria acabar por invadir e tomar todo o jardim; o que Rosana mostra é que este conceito é ideológico, sujeito a modas; algumas das chamadas daninhas são bonitas, porém não estão na moda, e assim acabam por ser dizimadas; e a artista aplica esta metáfora à própria organização do corpo social, em uma mensagem de integração contra a marginalização.
A exposição é muito bonita, e alia um conteúdo político a uma forma estética bem precisa e sensível.

Em edições anteriores do Realejo, inclusive na Bienal de SP, o realejo conta com um periquito amestrado, que retira a sorte com o bico e a entrega ao espectador. Aqui no Rio, um tal  Secretário Especial de Promoção e Defesa dos Animais censurou a participação do pássaro; a gaiola do realejo ficou vazia e o homem do realejo, totalmente passado, dizia apenas que "o periquito não pode vir"...
... É irônico, eu acho: esta censura, o próprio conceito de uma Secretaria de Estado de Defesa dos Animais que "defende" os animais acima da integridade de uma obra de arte, é uma característica bem marcante de nosso tempo, este tempo de supremacia total de uma ideologia do politicamente correto, de um neo-conservadorismo do Estado que, em tática para mascarar os verdadeiros problemas, ataca pequenos problemas, passando através da mídia a sensação de que se está resolvendo alguma coisa.
Assim, proíbe-se o periquito amestrado na performance do realejo, censura-se os desenhos do Nelson Leirner feitos sobre fotos da Anna Geddes, persegue-se os "mijões" nos blocos de rua no Carnaval (enquanto nos mesmos blocos os batedores de carteira e mesmo assaltantes a mão armada "trabalham" livremente).
É irônico, já que ao meu ver a exposição trata exatamente disso, ao questionar uma ideologia dominante que define seres como daninhos para, marginalizando-os ou exterminando-os, perpetuar seu poder.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cachorros azuis são eternos

Não o conheci; eu estava em Brasília quando ele frequentava o Parque Lage, meus amigos me falavam dele, do livro, e me falaram de sua morte. Rodrigo de Souza Leão.
Hoje, leio o livro (Todos os Cachorros são Azuis), emprestado por minha amiga Virgínia, que o conheceu bem. O livro que leio é precioso, tem dedicatória em uma letra tremida (“À Vivi, um pouco do meu caos. beijo amigo do Rodrigo 02/04/09”), que engraçado, sincronicidade talvez, a dedicatória é datada exatamente de um ano atrás, eu estava um bom tempo com o livro que Virgínia me emprestou e exatamente hoje, 02/04/2010 o abri para ler e já estou quase terminando, de um fôlego só. Sem parar, uma escrita que prende, que envolve, que entra no corpo do leitor até a medula.
O Rodrigo (que não conheci mas agora conheço um pouco mais) está presente em cada palavra, em cada página deste livro, pequeno mas profundo; ele, ou o personagem, que engoliu um grilo aos 15 anos, que já adulto engoliu um chip, que quebrou a casa para salvá-la de cupins gigantes;  e seus alter-egos ou amigos imaginários ou amigos reais ou companheiros de internação, Baudelaire e Rimbaud. Personagens, Lembra-Vovó, a Senhora de Todos os Gritos, o Temível Louco, com seis assassinatos/estupros no prontuário, mas que temia o personagem/o autor pois lhe parecia com o Pai, que o espancava. O medo, a loucura, a prisão, a liberdade, os remédios.
Eu já estava tomando tanto remédio, que estava com aquela baba elástica bobina e viscosa, como dizia o escritor.
Um livro pequeno, 78 páginas, mas profundo, como os abismos da mente, como a consciência de se estar louco ou no limiar, como o saber que nesta caverna o sol não entra, como o saber que desta caverna não se sai vivo. Da vida. Da loucura. Da vida não se sai vivo.
A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício. Liberdade, só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não existe.
Leio sem parar, é um livro pequeno, as 78 páginas são lidas rapidamente. Hoje, feriado, um dia de sol no Rio, fui à praia, encontrei amigos, bebi uma deliciosa caipirinha de kiwi com gengibre e limão; mas à noite minha viagem é na clínica onde o personagem/Rodrigo foi internado, eu também estou nesta clínica e sou seu companheiro, seu amigo imaginário como Baudelaire e Rimbaud, e sei que só vou sair deste cubículo, desta prisão, como Rodrigo, para um mundo que nos dá uma falsa sensação de liberdade.
Como Rodrigo, morto tão jovem, que talvez tenha saído deste mundo e desta falsa sensação de liberdade para  a verdadeira liberdade, para o não-ser.
Ainda continuo na jaula. A minha boca está fechada com uma mordaça. Meus pés estão presos. A música sai de mim e volta, não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo.
Rodrigo, eu também.
"É junho. / Tem festa junina no hospício. / A quadrilha dos loucos está em fila. Os que tomam Gardenal não falam. Outros tomam Haldol. Outros são dependentes químicos. Outros estão doidos por uma cachaça e jogam sinuca de bico. Ninguém quer entrar na fila pra dançar. Nenhum psicótico quer dançar. Nenhum oligofrênico quer deixar de dar cabeçadas na parede. Mas Rimbaud está contente e dança sem tristeza."


Mais:
Rodrigo manteve um blog, lowcura, até sua morte, de um enfarte, em 02/07/2009. O último post é de 25/06. Clique aqui para o blog
Site muito bom, com muitas informações sobre Rodrigo, clique aqui
Rodrigo colaborava com vários sites, o Revista Agulha um deles, outros são a Germina e a Revista Zunai
Além do Todos os Cachorros são Azuis, Rodrigo publicou, em 2001, um livro de poemas, Há flores da Pele (Editora Trema)
Boa entrevista com Rodrigo, feita pelo Ramon Mello, clique aqui. Ramon é um jovem poeta, estou lendo seu livro Vinis Mofados, muito bom, em breve falarei dele no blog