As chuvas no Rio trouxeram traumas emocionais mesmo aos não diretamente atingidos. Presos em engarrafamentos, vendo a água subir, ou ouvindo barulhos de desabamentos; e cada um tem uma história para contar; casas boas, prédios de classe média, barracos, todos dão graças ao sol que apareceu hoje, feriado de Tiradentes.
Uma fantasia que sempre aparece nestas horas de catástrofe (afinal, 2012 está logo aí) é o que eu levaria, salvaria, se pudesse levar apenas um objeto, um só, e deixar o resto do acumulado em uma vida de colecionador desabar ou ser levado pelo tsunami.
Uma pintura? um livro? uma foto? um CD? uma roupa?
Por categoria é até mais fácil, mas é dificil imaginar que em um momento de tragédia eu possa sair levando uma pintura de 1,80x1,80m, a minha Beatriz Milhazes. OK, uma pintura um pouco menor e um livro, também difícil sair com meu São Sebastião sem flechas, do Glauco Rodrigues, e ainda o Proust completo, me abrigando com esta bagagem em um CIEP sperlotado.
Mas hoje eu consegui equacionar esta questão tão dificil.
O objeto, o único objeto que eu levaria comigo em um caso de tragédia, de inundações, de holocausto, de guerra nuclear (bom, este cenário voltou a estar em voga, com o Lula flertando com o Ahmadinejad) é a minha taça para vinho do Porto.
Será que eu imagino que em um hipotético campo de concentração teria vinho do Porto à disposição para que eu usasse a taça? não sei, não imagino muito, mas esta taça é especial. De cristal, claro. Numerada, a minha é a 001756, número gravado em seu bojo, com a chancela do Instituto do Vinho do Porto. Construída segundo as especificações da ISO sei-lá-que-número, tem um detalhe magistral, a haste reta que liga o pé firme à taça bojuda tem uma parte arredondada, ergométrica: o lugar onde colocar, descansar, o polegar da mão do degustador que apoia o pé da taça com a palma da mão e aspira os aromas que sobem, etéreos, celestes. Um triunfo, uma obra prima de ergonomia e de enologia.
Como ela veio para mim é toda uma história.
Um convite para uma degustação de vinhos do Porto, em um dia normal, de trabalho, uma 4a.feira talvez, acho que 2002 ou 2003, RSVP, no Consulado de Portugal, aquela casa magnífica em Botafogo. Respondi que sim, claro, e lá fui eu em meio à chuva ainda fraca. Lá, para minha surpresa, meu nome estava na lista do jantar mas também estava indicado para a degustação, que seria um evento mais exclusivo. OK, maravilha, e lá estou eu em uma mesa, rodeado de enólogos importantes, em frente ao meu amigo o enólogo Marcelo Copello, e me anunciam que serão degustados 40 e tantos vinhos do Porto. Respiro fundo, penso que vou ter que voltar dirigindo mas tudo bem, a chuva cai mais forte ainda.
E recebo a minha taça.
A casa é linda, a mesa tem uns trinta degustadores, são distribuídas as fichas onde temos que anotar as observações, os sommeliers são portugueses, lindos e eficientes, e começa a tarefa. Como em toda degustação, há os baldes onde podemos cuspir o degustado, sem ingerir; eu respiro fundo e digo para mim mesmo, "bobo você, eu não vou cuspir nada, vou beber tudo, claro, os quarenta e tantos vinhos do Porto de primeira qualidade".
Vinho do Porto é um mundo, diferente destas coisas pausterizadas que se compra em Free-Shop. Branco, ruby, tawny, LBV. Uma história, lendas, e nós alí, naquela mesa comprida, já no trigésimo vinho, a chuva cai mais forte, o teto é alto e barroco, uma música suave ao fundo; meus companheiros de mesa parecem vampiros quando sorriem pois os dentes alvos estão tingidos pelo Porto, eu devo estar assim também, claro, um vampiro, mais um entre eles, sorrio comigo mesmo e vou para a quadragésima taça de um Porto este já bem encorpado, registro na ficha "maravilha!", aromas de séculos, dos Bragança, de um Portugal que está aqui presente nestes azulejos, relâmpagos ou só sustos? o último vinho, a última ficha a preencher, acho que cheguei na nota 100 ou um pouco menos, enfim...
A perfeição, isso é que eles atingiram, os Porto, somando a técnica centenária com a natureza perfeita, precisa, e ali está: a perfeição.
Terminou a degustação e agora é o jantar. Como sempre, eu saio devagar e conversando, as pessoas correm e quando chego no salão do jantar as mesas estão todas ocupadas. Posso desistir e ir embora, mas sou obstinado, converso com a mestre de cerimônias, Cristina, que me pede milhões de desculpas, alguns penetras acho eu, eu trouxe da sala da degustacão minha taça ainda com vinho, enfim, de repente estou acomodado na mesa principal, ao lado do Cônsul e da diretoria do Instituto do Vinho do Porto, e a Flávia Quaresma chega para falar sobre o jantar harmonizado com os vinhos, não só os Porto mas os espumantes portugueses que são brutos, ótimos e rústicos, e os vinhos do Alentejo, e no final mais vinho do Porto.
Estou na mesa da Diretoria, e com uma atenção maior que a que é dada aos mortais. Isto siganifica: mais álcool, mais flertes, troca de cartões, nada de concreto mas muita promessa, olhares e toques, aromas e suspiros, como na degustação.
A esta altura a chuva é um dilúvio, estou completamente bêbado, por opção minha, claro, a sobremesa portuguesa é altamente calórica mas é perfeita para mais um Porto. Eu beijo reverente a Flávia Quaresma pelo prazer que ela nos proporcionou, a noite vai se encerrando e ainda dou uma carona até o Leblon para Cristina, a mestra de cerimônias; eu alto, bêbado, completamente. Bom, ainda não havia Lei Seca.
No dia seguinte acordo ressacado, respiro fundo e penso, eu optei por isso, como eu iria ser parcimonioso em uma situação destas? Ligo para o trabalho, dou uma desculpa furada, o carro teve problema, enfim.
A taça veio em meu bolso e ela não teve problema nem ressaca, cristal é outra coisa, ela brilha e foi para o lugar dela, a estante onde está minha adega, minha pobre adega com poucas ou nenhuma estrelas.
Depois disso ela continua brilhando. Ela me aponta que há algo além, mais alto, além do dia a dia, algo que vem da tradição e que se renova, algo que buscamos e está sempre além e que nos faz continuar vivos, na busca da perfeição.
Meu objeto.
Minha perfeição.
malga | Santa Helena
Há 4 dias
Um comentário:
Que beleza. Abraço Marcio
Postar um comentário