O cenário: Prédio neoclássico em ponto nobre do Rio, construído na década de 1920, por encomenda de Otávio Guinle, pelo arquiteto francês Joseph Gire, autor do Copacabana Palace e outros marcos históricos do Rio: o edifício A Noite, o Hotel Glória, o Palácio Laranjeiras, a mansão da ilha de Brocoió, o embarcadeiro da praça Mauá, entre outros. Um prédio com tudo o que uma construção de luxo da época tinha direito: vista para o mar, amplos espaços, pé-direito alto, simetrias, ornatos em mármore e ferro forjado, sancas, nichos, molduras douradas, tacos de madeira nobre, elevadores amplos, elevador de serviço com grades de ferro, daqueles tão comuns em Paris e, no último andar, uma chambre-de-bonne para cada apartamento. Um prédio surpreendentemente bem conservado em um Brasil e um Rio que odeiam as memórias do passado. Neste prédio, um apartamento que mantém os acabamentos luxuosos e que, recém-comprado, passará por uma planejada reforma para adequá-lo às necessidades de seus novos moradores.
Os personagens: artistas plásticos/performers/músicos, um deles a proprietária do apartamento.
A ação: Ocupar o local com instalações, performances, pinturas, esculturas, desenhos, ambientes, fotografias, propostas, vídeos, músicas, danças... por um final de semana inteiro
Cenas:
Inicialmente tímidos diante do espaço, os artistas negociam seus espaços com os organizadores, apresentam suas propostas, discutem a logística, fazem incursões ao apartamento de cobertura do prédio (fechado há 25 anos) e ao bar próximo ao prédio, onde o croquete apresentado como autêntico do Alemão de Petrópolis é a sensação.
Aos poucos os trabalhos vão tomando forma, as propostas se modificam à medida em que se sente melhor o espaço, em que a interação entre trabalhos aponta para outros caminhos.
Uma semana, cinco dias úteis de preparação, de uma 2a. até uma 6a.feira. Alguns trabalham em casa, e os que preparam suas instalações no local estranham: será que só nós estamos trabalhando? onde estão os outros? será que vai dar certo? será que o resultado final vai ser um conjunto harmônico, vai "ter uma cara" ou vai ser um agregado de divergências?
O convívio estabelece alianças, cria amizades, propicia troca de informações, troca de energia. Descansa-se trabalhando, ou visitando o trabalho dos outros artistas. Para os lanches ou o chopp do final do expediente, o Bar da Praia bomba como talvez nunca tenha bombado. Segunda-feira, terça-feira...
Sexta-feira no início da tarde, a maioria dos trabalhos está completa ou em fase final de instalação, mas a tal visão de conjunto ainda não se faz, talvez o barulho de artistas trabalhando ou conversando, talvez o lixo ainda por tirar, talvez os trabalhos que ainda não estão montados, uma certa sensação de uma coisa anárquica... Vou para casa, um banho, descansar um pouco antes da festa de abertura...
...e ao chegar no apartamento vejo que, aparentemente como uma mágica, a luz se fez: a exposição flui, os trabalhos dialogam, se integram, se reforçam, há uma organização no que parecia um caos, há linhas de leitura que fazem "um desvio para o azul", "um desvio do rosa para o vermelho" e outros percursos, há até um bar na cozinha do apartamento com um eficiente barman preparando a melhor caipirinha de morango que jamais bebi em minha vida.
Mágica? não, sincronicidade, e a atuação discreta e agregadora dos organizadores/curador.
(Sonho com possível percurso: ao se abrir a porta do elevador, o tapete persa com corte de silhuetas de corpos humanos e uma misteriosa fotografia de um rosto-meio-vegetal dão as boas-vindas. No palaciano hall do apartamento uma cascata de pérolas, que pode ser uma arquitetura desconstruída ou uma infiltração, e sugestões de paisagem anacrônica pintadas nos nichos dourados das paredes se somam em uma minúscula gruta que expõe as entranhas do prédio em pérolas e pigmento azul.
Desviando para o vermelho, passamos por uma saleta obsessivamente cor-de-rosa com pequenos faunos desafiando a gravidade e chegamos a outra sala com uma parede pintada com gestos também cor-de-rosa e uma cascata de maçãs vermelhas caindo das gavetas de um armário; um pano vermelho entra pela parede e se conseguirmos seguir por este pequeno buraco chegaremos a uma biblioteca ocupada por uma bateria e outros instrumentos de percussão, e uma pequena escultura; na parede, uma pintura feita de contas brilhantes e coloridas; na estante, uma coleção de pratos de porcelana pintados reconta a História do Brasil.
De novo no hall, o percurso para o azul leva a uma paisagem sugerida por discretas linhas em um enorme campo de azul brilhante, que confronta uma parede ocupada por uma dança erótica em traços livres de tinta azul, leves como as azaléias brancas de papel em vasos em frente à varanda; desta sala, o verdadeiro acesso à biblioteca; ou o acesso a outra sala dominada por gigantesco animal feito de pedaços de móveis antigos e penas e plumas brancas, onde um pequeno desenho da paisagem externa em uma parede preta é companheiro de instalações que fazem brotar da parede o interior de um processo construtivo moderno, vergalhões e tijolos.
Volta-se ao hall marcado pelas pérolas, e o largo corredor/galeria que leva à antiga cozinha é palco de uma massiva instalação com fotos do desabitado apartamento de cobertura e com material recolhido em lixo. No meio do corredor, portas de correr levam a uma antiga sala de banquetes, hoje o espaço de performances, marcado por pinturas/desenhos que fazem referência a corpos.
Pelo apartamento, telas exibem videos, um deles mostra uma mulher de burca andando compulsivamente pelos corredores vazios do que parece o mesmo apartamento mas talvez seja outro apartamento no prédio; outro mostra um estranho despertar; mendigos à volta de uma fogueira; e outras imagens perturbadoras.
Em uma pequena saleta, uma parede com buracos e textos de filósofos mostra como "filosofar com um martelo"; já em um dos banheiros, delicados desenhos feitos com lágrimas e maquilagem escorrida, um diálogo com as pérolas, com as flores de papel; com as pequenas placas de gesso que se esgueiram em diversos lugares mostrando desenhos da paisagem externa, de detalhes do interior ou do exterior do apartamento e os pequenos retratos sobre pedaços de fórmica de pessoas desconhecidas mas possíveis, reais, como os fantasmas, como o fantasma da mulher de burca que vagueia pelos corredores, como os pombos mortos no apartamento de cobertura, como as asas brancas que se estruturam em pedaços de móveis, e se volta ao início e se retorna em outro percurso, agora já um percurso mental de links e reflexões.)
No fim de semana a visitação é grande, no cair da tarde o apartamento se transforma em uma happy-hour, à noite é uma festa. Mesmo com a concorrência de outros eventos importantes no Rio: exposições do Hélio Oiticica no Corredor Cultural, Santa Teresa de Portas Abertas... e a concorrência desleal do que é o evento mais importante para o Rio, um fim de semana com sol gostoso chamando para as praias.
Gratificante.
E também um exercício de despreendimento, de viver o efêmero: domingo à noite as portas se fecham, segunda-feira tudo está desmontado, daí a alguns dias as equipes de pedreiros entrarão, quebrando paredes, trocando azulejos, substituindo a fiação elétrica que passa com fios envoltos em papel dentro de tubos de ferro, atualizando as instalações hidráulicas que se entopem com o acúmulo de décadas...
A partir de agora, só os registros da ocupação. Só a memória.
Artistas:
Abel Duarte
Alessandro Sartore
Aleteia Daneluz
Bob N
Bruna Lobo
Claudia Bakker
Edu Monteiro
Evandro Machado
Fernando de La Rocque
Gimena Mello
Hugo Richard
Jozias Benedicto
Kunja Bihari
Leo Ayres
Luar Maria
Luiza Crosman
Marcelo Rocha
Matias Mesquita
Moises Alcuna
Natali Tubenchlak
Nora Stephens
Orlando Mollica
Pontogor
Rafael Inacio
Robson
Sandra Schechtman
Simone Michelin
Ursula Tautz
Virginia Paiva
Ze Carlos Garcia
Organização:
Aleteia Daneluz
Bob N
Barman:
Ricardo
meus registros em foto
Registros em vídeo:
FaceArte publica uma versão resumida deste texto
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
Cenas de uma ocupação
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2 comentários:
Saudações Jozias, parabéns por esta grande projeto.
Steven
Voce escreve tao bem Jozias, matei as saudades com o seu blog. beijos
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