Observei em minha vida recente um paradoxo: quando eu morava em Brasília e vinha ao Rio e a São Paulo com o tempo contado, conseguia ver todas as exposições de arte importantes nas duas cidades, além das (poucas) em Brasília. Agora que voltei a morar no Rio, vejo que não consigo me manter atualizado no movimento de exposições na cidade, e também minhas idas a São Paulo estão sendo mais raras.
Para romper este paradoxo, só outra invenção dos gregos, a maratona. E retomei o hábito de dedicar um dia inteiro para ver todas as exposições, ou quase todas, e depois cair na cama morto de cansaço. Valeu à pena, já que eu corria sério risco de perder algumas boas exposições, em seus últimos dias .
Comecei pelo CCBB, que abriu sua Sala A Contemporânea com uma boa instalação da artista Mariana Manhães. São, máquinas, robôs, que se movimentam, gemem, chiam, mostram imagens, um high-tech que é low-tech, com fios, curcuitos, conexões e engrenagens a vista. Impossível não lembrar das máquinas da Rebecca Horn na mesma sala há algumas semanas; irônicas máquinas, nos trabalhos das duas artistas; mas também muitas diferenças, na elegância apolínea da alemã e na brasilidade macunaímica (se é que posso usar estes termos quando falo de mecanismos) da instalção da Mariana.
Ainda no CCBB, retrospectiva da Anita Malfatti, com cerca de 120 obras. Um mistério para mim, a trajetória da artista paulista: das obras fortes do início de sua carreira até os anos 1920, para o trabalho com boa técnica mas insípido e kitsch do restante da carreira. O turning point teria sido o famoso artigo de Monteiro Lobato, Paranóia ou Mistificação; mas o artigo é de 1917 e vemos ainda bons trabalhos de Anita até meados dos anos 1920. Uma leitura feminista talvez aponte como causa o massacre da mulher: família burguesa empobrecida com a morte precoce do pai, uma menina com problemas físicos de nascença (atrofia no braço e mão direita), portanto "incapaz" para um bom casamento, tem que se sustentar através de aulas e de pinturas submetidas ao gosto dos compradores. Muitas outras leituras são possíveis, e nunca este mistério fica tão evidente como em uma retrospectiva.
Na Casa França Brasil, A Céu Aberto, uma exposição com a proposta de criar novos espaços expositivos na instituição, voltados para o exterior do magnífico prédio. Uma frase do artista Leonilson, "Observar e dar chance à minha curiosidade", dá o mote da exposição, que é bem feliz em sua proposta. Os demais artistas são Geléia da Rocinha, Paulo Vivacqua e Smael. Já nos espaços internos, instalações do Chelpa Ferro e do Cadu Costa, exploram a sonoridade.
A instalação do Chelpa é uma versão da apresentada na Galeria Progetti, e a do Cadu é uma gigantesca caixa de música/órgão de foles, com martelos (ferramentas comuns), que, acionados pelo espectador através de um mecanismo giratório, provocam um som de avalanche. Tenho um trabalho do artista, Pour Elise, onde a música de uma caixinha de música é transformada em uma gravura; e vejo neste gigantesco mecanismo como o artista explora sempre de forma precisa e eficaz as ideias de sua pesquisa.
No Centro Cultural dos Correios, revejo a exposição Goeldi, O Encantador das Sombras. Rever é uma maneira de dizer, vi esta exposição em Brasília, no Centro Cultural da Caixa, em uma versão reduzida; aqui, é como ver uma nova exposição: com muito mais obras, a montagem se utiliza muito bem do amplo espaço da instituição, são feitas oficinas e apresentações didáticas, há um catálogo não muito extenso mas muito bem produzido. E os highlights para mim são a remontagem do ateliê do artista, primorosa, com matrizes de gravuras, instrumentos de trabalho e até, requintes, jornais da época; e a exibição do filme "O Guarda-Chuva Vermelho", feito pela artista Lygia Pape como um tributo ao gravador, ela, também uma artista com xilos maravilhosas. Sim, e o fantástico trabalho do Goeldi, os urubus, os guarda-chuvas, as caveiras, os peixes, os jogadores de cartas e os ladrões, os urubus, um mundo tenebroso e ameaçador, onde o perigo, a morte, vem dos cantos, dos becos escuros, das chuvas, dos objetos que revoam carregados por um vendaval.
Na Galeria LGC Arte Contemporânea, a exposição de Frederico Dalton, Exceções Recorrentes, com curadoria do artista Oswaldo Carvalho. As questões apresentadas pelo artista são muito atuais, por exemplo: "O que significa realmente ser “minoria” hoje?", "A arte ainda pode ser considerada uma situação de exceção?" e ao tratar estes temas usando midias contemporâneas porém ultrapassadas - projeção de slides - o artista faz um contraponto a uma arte integrada, que se coloca sistematicamente up-to-date. Um pouco "vai Carlos, ser gauche na vida", um pouco o low-tech que certamente dialoga com a Mariana Manhães, com o Cadu e o Chelpa Ferro, todos em um círculo de menos de 200m de diâmetro; como dialoga com o Matta-Clark, no Paço há pouco mais de um mês. Mas ao meu ver o parentesco é maior com o artista americano, ao privilegiar os destituídos, as exceções, as minorias, o fusca que se move como uma borboleta, os projetores de slides, o não à obsolescência planejada, ao high-tech, ao mundo pasteurizado onde parece que cada vez mais se está sem alternativa. Uma exceção pode ser uma alternativa, ainda mais se é recorrente.
Uma andada do Corredor Cultural até a área da Praça Tiradentes. O Centro do Rio é mesmo delicioso, principalmente em um dia de sol, mas sem calor; se podemos parar nos camelôs e dar asas à imaginação, se o Halls que em todos os lugares custa 1 real aqui sai por 2 por 1 real, bem, só pode ser mercadoria roubada, mas enfim, encho minha mochila com Halls, o pretinho, o que engasga mais, e chego totalmente engasgado a minha próxima parada:
Largo das Artes, rever a exposição do Gilvan Nunes. O espaço do Largo é talvez o mais maravilhoso dos espaços de galerias de arte cariocas, com a vantagem que é autêntico, não é um loft-Disney. E agora com um algo a mais, o andar de baixo é ocupado por um sebo dos bons que tem um café/restaurante delicioso.
Bom, mas para os artistas, qualquer artista, é um desafio, aquele espaço enorme, o pé direito alto, a área central onde cabe até uma montagem de Aída, com elefantes e tudo. E o Gilvan se saiu super-bem deste desafio, ocupou muito bem o espaço; são pinturas enormes, muito coloridas; serigrafias obssessivamente cheias; pequenas telas; tudo muito bonito, dá vontade de rever, de ter. Lindas pinturas, matéricas, coloridíssimas, ornamentos; algo como uma Milhazes-rascante; as pinturas com apropriações de bibelôs são um achado; e saí da exposição sentindo que tem tudo a ver, o Centro da Cidade, o Saara, o colorido desta cidade tropical e destas pinturas que tudo incorporam e tudo transfiguram em tinta e gesto.
Na Gentil Carioca, Fabiano Gonper, “Do Sujeito. Do Poder. Da Arte”, com desenhos, videodesenhos, fotografias, obras gráficas e uma escultura. Um bom trabalho, coerente, antenado. As pessoas são desenhadas como contornos, esculpidas como manchas bidemensionais; nas obras gráficas o preto invade as figuras, e as relações de poder ficam evidenciadas.
Na Durex, o artista plástico Mauro Espíndola apresenta a exposição "Nactividade", com desenhos e pinturas que lidam com questões de identidade, particularidade e universalidade, a partir de fotografias. Um trabalho bonito e pleno de significados. As relações entre fotografia e memoria, entre pintura e fotografia, entre permanente e efêmero, entre o indivíduo e a família/sociedade, estão muito presentes e são bem resolvidas.
Na Caixa Cultural, uma exposição sobre os móveis do arquiteto Sérgio Rodrigues, bem montada e bem interessante. Gosto dos móveis e tudo o mais do arquiteto, para mim eles tem a cara dos anos 1960, da revista Senhor, do clube Costa Brava, da Garota de Ipanema (o filme), de uma espontaneidade (a Cadeira Mole) que depois foi atropelada pelos anos 1970, pela contra-cultura, pelos hippies, pelas drogas, pelo Pop. E o arquiteto se renova, trocou o jacarandá pelas madeiras certificadas, e está tudo lá, na exposição.
Metrô até Copacabana, uma parada para ver Sergio Allevato na Artur Fidalgo. À primeira vista são aquarelas de botânica; mas olhando bem, o artista enxerta nas formas vegetais outras formas, de personagens da Disney, da Hanna Barbera, da Hello Kitty.
Outras estações de metrô e chego em Ipanema, revejo as Galerias Amarelonegro e Laura Marsiaj, mas, exausto, deixo a Galeria Laura Alvim para outro dia.
Na Amarelonegro, além das coleções de múltiplos que são mostradas por demanda, a boa coletiva Além do Horizonte – Paisagens Contemporâneas, com curadoria da Daniela Name e obras de artistas contemporâneos relacionadas à paisagem: Álvaro Seixas, Bob N, Bruno Miguel, Danielle Carcav, Deborah Engel, Estela Sokol, Gisele Camargo, Leo Ayres, Luiza Baldan, Pedro Varela, Rafael Alonso e Raul Leal. Bons artistas, um bom conjunto e uma boa montagem, aproveitando bem o novo espaço da Galeria.
Na Laura Marsiaj, a exposição “Fechar os Olhos Para Ver”, da Ana Miguel, traz frases gravadas, gravuras e objetos, a temática e as soluções bem próprias do trabalho da artista, me sinto um pouco como a Alice, uma criança enorme em um mundo estranho. No Anexo, em "A Casa Sem Paisagem", Daniel Murgel mostra trabalhos que discutem relações do comportamento do homem com seu habitat, a casa. As duas exposições dialogam entre si, embora bem diferentes, a sutileza da Ana é contraponto à assertividade do Daniel, e se complementam neste diálogo.
Cansado, encerro minha maratona, mas sei que muita coisa ficou de fora e que na semana que vem o dever me chama. Ou o prazer, dá na mesma.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
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2 comentários:
Um interessante roteiro a ser percorrido. Você tem razão quando estamos fora, visitamos tudo. No Rio, vamos adiando e perdemos algumas belas exposições. Vou me preparar para ir ao centro. Abraço Marcio
Parabéns por multiplicar informações sobre a cultura na nossa cidade. Obrigado por suas observações sobre "Exceções Recorrentes".
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