quinta-feira, 29 de março de 2012

Dobras e vincos, magia

Gabriela é uma artista portuguesa que, por estes mistérios do mundo globalizado, está no Brasil e no Parque Lage como está em NYC e em Portugal, mas cujo trabalho remonta a lembranças de infância, a cheiros e vivências de um mundo talvez perdido talvez reencontrado pela arte.
Gabriela me pede um texto sobre seu trabalho, penso, penso, e escrevo. Gosto do trabalho, gosto do jeito polido e discreto de Gabriela, gosto de conhecer mais sobre os artistas portugueses, tão perto de nós e ao mesmo tempo tão distantes, gosto de me sentir em uma viagem que talvez tenha começado séculos atrás, afinal o mundo globalizado do contemporâneo começou com as navegações portuguesas, com o "navegar é preciso". Pertos e distantes, faço meu dever de casa, um texto, vejo as imagens dos trabalhos de Gabriela, as dobras e vincos, e penso que as ondas dos tecidos que Gabriela representa em suas pinturas são as ondas e mares que, navegados, conquistados, trouxeram a nós, Império dos Trópicos, a sede do absoluto, a magia.
É preciso.
Sim, é. É preciso, mesmo que nos afoguemos neste mar impreciso, mas é preciso, totalmente.
Aqui vai meu texto sobre o trabalho de Gabriela:





A Fábrica de Magia


Visitar A Fábrica foi sempre um momento mágico para a menina. O pai comandava tudo, de sua sala. Na parede, reproduções de pinturas clássicas, santos, paisagens, naturezas mortas. O silêncio reverente, a calma e o aroma de mentol, de lavanda, de tempo, da sala do pai contrastavam com o barulho ritmado, o movimento incessante e o cheiro acre das salas das máquinas, onde gigantescas bobinas comandavam a dança do tecido: enrolar, desenrolar, cortar, vincar, enrolar, desenrolar... A Fábrica era toda em tons de cinza sob um sol ibérico, mas o tecido era multicor, e ao se movimentar nas bobinas adquiria novos reflexos, tonalidades vibrantes, brilhos como o de pedras preciosas, de penas de pavão, de carpas imperiais, de borboletas dos trópicos. As bobinas se movimentavam em seu ritmo, com vida própria, e os finos fios eram, por este movimento, unidos, trançados, transformados em luz, em cor. Em magia.

Muito tempo depois, as bobinas da infância de Gabriela Simões Henriques (há décadas substituídas por outras tecnologias) voltam a se mover e a criar beleza, através do trabalho da artista. Não mais fios produzindo tecidos, não mais tecidos que enrolam, desenrolam, e sim: tela, papel, pincel, pigmentos, utilizados por Gabriela para, em suas pinturas, trazer ao espectador o encantamento sentido nas visitas à Fábrica e nunca esquecido. A menina talvez não soubesse, mas hoje a artista sabe, que o ritmo e o movimento das bobinas são arte, e uma arte mais viva que a que a menina via nos passeios aos museus ou nas reproduções na sala do pai na Fábrica.

Em algumas das pinturas de Gabriela, as bobinas se mostram quase que realistas, com sugestões de volume; às vezes se dissolvem, aparecendo como movimento; e em outras como pura cor, luz, ou matéria pictórica, em abstrações. Como se aqueles momentos na Fábrica não coubessem em um só trabalho, em uma só técnica, em uma só linguagem; e que vivência infantil cabe inteira em uma só linguagem?

(A artista termina uma pintura, e olha para ela. No cavalete, a pintura retribui o olhar, e vê a artista. A menina também está presente no ateliê, e olha a pintura, e olha a artista, e fica feliz. Ao longe, talvez se ouça o ritmo de máquinas, ou será o Carnaval nos trópicos cheios de magia e borboletas azuis onde a artista agora mora?) 



Um comentário:

dade amorim disse...

Gosto da mistura verdade/fantasia, gosto do jeito como escreve e dos temas que trata.

Abraço