Um convite irrecusável, apesar da logística de acordar cedo e tudo o mais. Sair no Cordão do Bola Preta, em seu aniversário de 93 anos, mas não no chão e sim com "a Diretoria", em um carro, irrecusável... e o Bola Preta é a abertura do Carnaval carioca, mesmo com os blocos antecipados de 6a.feira, um Carnaval que nestes anos cada vez mais se transformou em um mega-evento (como tudo na sociedade do espetáculo).
Convite irrecusável, lá estamos nós, minha paranóia me faz arquivar em casa o iPhone e levar um celular simplezinho, pouco dinheiro, documentos só o essencial. Bobagem, depois eu vi. Pois lá estamos, no caminhão com som e boca-livre de cerveja, água, maçãs e preciosos sanduíches, para quem madrugou às 6 da matina e ralou muito até que às 10h o cordão finalmente se movimentou. Um mar de pessoas, a Av.Rio Branco enchendo o cálculo é 1 milhão e meio de pessoas, mas às 10h as ruas perpendiculares também estavam todas cheias, a estimativa é de 2 milhões ou 2 milhões e meio. Um pouco de saudade de quando a passeata dos 100 mil enchia a mesma Rio Branco, mas o Cordão anda, chega de saudade, estamos aqui de cima dos carros e a multidão cada vez maior.
(antes, esperando a concentração, conversando com Rafa, 27 anos, sorriso lindo, um biólogo que estuda direito e quer fazer direito ambiental, e que veio de Sampa para o Carnaval no Rio sem lenço sem documento, na segunda-feira a noite ele tem uma hospedagem mas até lá ele, jovem, circula e curte o Carnaval no Rio e as pessoas, não vai dormir, na mochila tudo o que precisa e no sorriso tudo o que tem, eu sei como é ficar dois ou três dias de Carnaval sem dormir, já fiz isso, e digo, Rafa, faz isso sim, você está na idade de fazer isso, um dia teu sorriso vai se fechar e você vai saber como a vida é pesada e como o Carnaval é isso, a
vanitas, a carne que se vai e nos prepara para a morte, mas isso é um segredo que não te digo, não quero estragar teu primeiro Carnaval no Rio, este peso é meu e ainda não divido com você, mas se nos encontrarmos de novo, quem sabe? mas a multidão é cruel, a camisa azul-turquesa do time da URSS logo se perde no campo visual de quem está vendo tudo de cima, e perco)
Perco para ganhar ou perder definitivamente. Padrões, bolas pretas sobre fundo branco, losangos, grupos fantasiados, rosa sobre verde, rosa sobre negro. Um grupo de negros parrudões faz a fantasia que os artistas adoram: simples camisetas brancas com furos circulares, as bolas pretas são a cor da pele. Correto, sensual, inesquecível.
O Cordão segue. De cima, acompanhamos pessoas lindas, ou que para nós são lindas, grupos de rapazes, grupos de moças, grupos que bebem cerveja no latão, vodka, sacolé de cachaça, e seguem o cordão, se beijam, se abraçam, cantam. Como nos carnavais de antigamente, o Corso da Avenida, no mesmo lugar da Avenida é um Corso do terceiro milênio, mandamos beijos para os que estão na planície e eles nos mandam beijos. Como um corso, eu cheguei a sair em corsos no Carnaval dos anos 1960, ninguém fala sobre isso mas os corsos morreram com o aumento do preço da gasolina nos anos 1970, a OPEP acabou com os corsos e era tão bom, circular, a gente usava uma pic-up Ford, um motorista paciente, jovens cantando, a pic-up ia e vinha sempre pelo mesmo percurso, às vezes parava e a gente saía e ia beijar na boca alguém de outro carro ou mijar juntos no banheiro se olhando nos olhos, tudo é carnaval, mas tudo isso acabou, estou aqui no Carnaval de 2012 e não existe mais corso mas o Cordão do Bola Preta está lindo e vivo, e as pessoas cantam, gritam: "quem não chora não mama, meu bem..."
Eu canto também, e grito, de cima vejo as pessoas sensualizadas e eu também estou sensualizado, queria descer mas elas me olham pois estou no carro, se eu descer acaba esta magia e vou ter que ir para a realidade de um sexo rápido em uma esquina, como já fiz tantas vezes. "Lugar quente é na cama, ou então, no Bola Preta".
Uma diferença em relação aos eventos mais antigos (bom, eu desfilei em escola de samba, saí nas Bandas de Ipanema heróicas, curti muitos anos o Bloco do Feijão em Arraial do Cabo etc), eu acho, na verdade duas diferenças: a primeira, hoje tudo é um mega-evento, a Banda de Ipanema onde conheci o amor de minha vida nos anos 1970, tinha talvez 50, 100, 200 mil pessoas, hoje tem 2 milhões, acho que tudo embola: metrô, banheiros, tudo, mas não tem jeito de voltar atrás.
Ah sim e outra diferença é que hoje são todos japoneses, 2 milhões de japoneses, que tiram suas fotos com o celular, se colocam a disposição para as fotos, o tempo todo posando. Não tenho problema em relação a isso, tirei muitas fotos com o celular velho, vou tentar postar aqui no blog, mas... É uma nova cultura, a dos japoneses, que só sabem se as férias foram boas quando vêm as fotinhas, rsrsrsr então tudo bem...
Enfim enfim enfim
Lugar quente é sim, no Bola Preta!!!!!!
Enfim, enfim. Um dia lindo, céu azul, sol gostoso. É bom, foi bom. Acabou e dá vontade de sair de novo, ano que vem, no outro ano, para sempre, talvez encontrar de novo o sorriso aberto de alguém que está sem pouso, só curtindo seu primeiro Carnaval, e talvez guardar de novo, dele, o meu segredo: que a carne se vai.