“Admirava as pinturas medíocres, bandeiras de portas, cenários, telões de saltimbancos, letreiros, iluminuras populares; a literatura antiquada, (...) romances do tempo da avó, contos de fadas, almanaques infantis, óperas antigas, refrões simplórios, ritmos singelos.” Uma estação no inferno, A.Rimbaud (citado por Eco, U. em “A História da Feiúra”)
Revisando as pinturas que fiz a partir de 2009, anoto algumas características que me parecem comuns. Um exercício, busco ver estas muitas dezenas (centenas) de telas como um conjunto, em sua diversidade de temas e procedimentos, à semelhança da minha série Polkianas, exposta no Largo das Artes em fevereiro de 2011, onde as 35 pequenas telas se agrupam em uma só pintura.
Esta é exatamente uma primeira característica que está presente em meu trabalho: Ele se desenvolve em séries, se agrupa em polípticos, séries que não se encerram e que são sempre retomadas. Serialidade, repetição, multiplicidade, camadas. Obsessão em dividir, em contar as partes e em agrupá-las, em propor elementos em quantidades precisas, em números ímpares, o 3, o 7, o 12+1 (este uma metáfora da Última Ceia)... Pedaços de mundo que se agrupam em um todo, um todo que é bem maior que a soma das partes, uma completeza que está sempre em aberto.
Trabalho cada pintura em camadas, sobrepondo formas, manchas, técnicas, matérias, universos. Sobreponho citações de imagens da História da Arte e cito procedimentos de pintura, “estilos”: os gestuais da action-painting, as cores fortes do fauve, as pinceladas do expressionismo abstrato... Os polka-dot do Sigmar Polke, as Vanitas do Philippe de Champaigne, os rostos e corpos que se desfazem como no Francis Bacon... A coexistência entre estas camadas nem sempre é pacífica, em muitos trabalhos me interessa mesmo o embate entre mundos pictóricos: o abstrato-orgânico versus o geométrico-metálico.
Recorrentes em meu trabalho são as imagens do kitsch, em especial o kitsch religioso: sagrados corações, coroas de espinhos, mantos de nossa senhora aparecida, as Vanitas. Fora do contexto de uma pintura sacra ou mística, no meu trabalho estes elementos não significam transcendência, ao contrário, estão pairando sobre a aridez de um mundo inóspito.
Utilizo uma paleta exuberante, tons fortes, cores falsas, berrantes, tons neon, tintas metálicas, superfícies cheias, texturas, matéria, pigmentos, excesso de acontecimentos. Passo longe do clean. Tudo-ao-mesmo-tempo-agora. Uma teatralidade de ópera: nos autorretratos eu sou eu e sou o Rei Sol, o Cardeal Richelieu, nas paisagens o trampolim de Icaraí é como um palco, há uma história que está sendo contada mas o que é fixado é o momento entre duas falas, o silêncio que precede a ária, a expectativa do salto mortal sem a rede de proteção.
Deixo muito espaço para o acaso, para o aleatório, para o erro. A mancha, o escorrido, o sem-controle. O feio. Trabalho com incertezas, muitas vezes buscando os limites da percepção: manchas que são figuras humanas ou não, paisagens apenas sugeridas, imagens dúbias, espaços dúbios.
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Sobre o que falam estas pinturas? São paisagens, vanitas, retratos e autorretratos.
As paisagens são praias com o esqueleto de uma construção, um trampolim. São ruínas de usinas nucleares, um mirante abandonado no alto de uma serra, pedaços da arquitetura modernista de Brasília. São cenários de um mundo destruído ou em destruição, onde o tempo está congelado. O apocalipse nuclear já veio e nós ainda não notamos.
As vanitas repetem à exaustão uma cena clássica: sobre uma mesa, um crânio ladeado por um vaso com flores e uma ampulheta: em uma série com 50 pinturas dissequei a pintura de Philippe de Champaigne. Em outras pinturas, as caveiras de príncipes e imperatrizes dançam, esqueletos dos Habsburgos e dos Bragança. Crânios aparecem, ou se escondem no limite da percepção, em paisagens, em retratos. Memento mori, a vida como um teatro.
Retratos de ídolos mortos ou eternamente vivos, de estátuas de museu de cera, de crianças com lábios leporinos. Paródia de um expressionismo, de um Francis Bacon ou de um Lucian Freud ou de um Graham Sutherland – mas as carnes à mostra são de plástico, as cores são de um cenário de teatro, o sangue é puro Alizarim Crimson 346 Acrilex.
Dos retratos aos autorretratos, a teatralidade se exacerba: eu sou personagens, meu verdadeiro eu está na superfície, na tinta metálica que reflete o espectador, no rosa-neon que desmascara a seriedade do expressionismo. Um cardeal, um pintor com uma taça de vinho e uma tela em branco, um jogador de futebol e seu duplo, um homem com o coração exposto, com os olhos fechados, com os dentes arreganhados como um cão de guarda. Como o Rei Sol. Teatro.
Vendo o conjunto, observo que um tema se mostra presente em todo o meu trabalho: a transitoriedade. Não quero falar da morte de um indivíduo, da minha morte, da morte de alguém querido, não quero falar de um ponto de vista psicológico, não busco ser triste, não quero ser sério, ser deprimente. Luto, talvez; mas não melancolia. Não quero ser óbvio fazendo uma pintura sóbria em tons fechados: as minhas caveiras dançam, as cores explodem, busco exatamente este contraste. Busco falar da transitoriedade da vida e do Universo, dos papéis neste teatro de sombras. Nada é absoluto, as certezas se dissolvem em tinta e em pedaços de História, as imagens se apagam e reaparecem, as camadas se somam e ao fundo se vê restos de vidas neste palimpsesto em que vivemos.
“We are dying, we are dying, we are all of us dying
and nothing will stay the death-flood rising within us
and soon it will rise on the world, on the outside world.”
The Ship of Death, D.H.Lawrence