Era Carnaval, eu era uma criança. A melhor lança-perfume era a Rodo metálica, um cilindro dourado esguichando um líquido frio perfumadamente enjoativo. As crianças ganhavam a sua quota de Rodo metálica, os adultos adoravam, cheiravam, caiam, pediam para as crianças uma prise no lenço de linho, as crianças não entendiam qual a graça daquilo tudo. Eu matava formigas, saúvas, tanajuras com o jato de minha Rodo metálica, ou jogava aquele jato gelado na nuca de uma menina. Um dia imitei os adultos e fiquei cheirando um lenço gelado de Rodo metálica, achei horrível.
Era Carnaval, a cerveja era quente, não dava tempo de gelar, a gente comprava nos bares a garrafa grande de 600ml e bebíamos no gargalo, quente mesmo, eu não era mais uma criança e queria ser um adulto mas a melhor parte era quando íamos mijar juntos e trocávamos cerveja quente no gargalo, éramos muito jovens e não tinha problema em nada, mesmo quando nos beijamos no banheiro sujo do boteco bebendo cerveja quente enquanto mijávamos, depois voltamos cada um para a sua namorada, suados, era Carnaval.
Era Carnaval, a cerveja que nunca gelava e uma peixada, panelas cheirosas na cozinha, pirão, arroz de cuxá, quem sabe o que é isso? minha namorada olhou para mim, eu beijei o pescoço dela, linda, como uma fruta silvestre, taperebá açai cupuaçu, ela riu e deu um gole grande na sopa de peixe, me beijou e passou com a língua a sopa para a minha boca, ficamos nos beijando e trocando de bocas aquela peixada e eu pensei, agora sou um adulto, não preciso mais matar formigas com a minha Rodo metálica, é meio nojento mas a vida de adulto é toda ela nojenta.
Era Carnaval, e falaram no auto-falante do clube no meio do desfile, um carro, um Galaxie pegando fogo, no estacionamento, era o nosso, fomos correndo, um cigarro mal apagado talvez. e lá estava o carro pegando fogo como uma carruagem do deus Apolo, era Carnaval.
Um Carnaval destes eu falei, chamei, gritei, é impossível que o Carnaval acabe hoje, na terça-feira, eu quero eu desejo eu imploro a todos os meus amigos, amanhã minha casa está aberta para continuarmos o Carnaval que eu não acredito que possa acabar. No dia seguinte acordei perplexo, falei com minha família sobre a bobagem que eu tinha feito, a noite fechamos a casa e apagamos as luzes, vimos chegar vários carros, os que acreditaram em mim, buzinaram, pararam na porta, a campainha, e nós silenciosos dentro de casa.
Arraial do Cabo, o Bloco do Feijão, outros Carnavais onde parece que se vai encontrar outro grande amor mas aos poucos se vê que o amor é escasso. Pouco. Pessoas que nem lembro o nome, mas que beijei bem, e pessoas que lembro bem o nome mas que foram para outros universos, vou beijar-te agora não me leve a mal, tudo é Carnaval. E depois dormindo na rede sempre estendida na varanda.
Um Carnaval, ainda faziam bailes no Theatro Municipal, desfiles de fantasia de luxo ou originalidade. Faziam corso, circulando com os carros, a gasolina era barata. Nos blocos e bandas, as pessoas trepavam transavam faziam amor faziam sexo, meu amigo que hoje é avô dizia contava enumerava quantas bocas. Eu não. Vou beijar-te agora.
No Bloco do Feijão é assim, os homens se vestem de mulher e as mulheres se vestem de homens. O segredo é, não sei qual é o segredo. Só sei que o mascarado ou mascarada tirou a máscara de clóvis, abriu a roupa de losangos e nos beijamos, e era lindo, como eu, e a noite foi nossa. Era Carnaval.
No dia seguinte, na varanda da casa, contei minha história de amor no Carnaval. Ninguém acreditou. Eu sei como é isso, na verdade nem eu acreditei mesmo.