segunda-feira, 6 de abril de 2009

Uma aula do Ivan Serpa


Um dia, o Ivan trouxe um exercício para os alunos das aulas que ele dava nas noites de 2as.feiras, no Centro de Pesquisa de Arte, na Rua Paul Redfern, em Ipanema, no início dos anos 1970. A turma da tarde era a que nós (os então "alunos jovens") chamávamos de "a aula das Madames" (mas foi nesta turma que foi descoberto o tardio e grande talento de Grauben do Monte Lima, Maria Luísa Serra de Castro e outras). Já a aula da noite era uma festa: os jovens artistas e os aspirantes a artistas; as pessoas que apareciam para assistir uma aula e às vezes saiam chorando e não mais voltavam; alguns que apareciam esporadicamente mas já eram alunos de longa data do Ivan; algumas personalidades excentricas ou fronteiriças... E para os que ficavam após encerrada a aula, mais conversas, discussões; uma rodada de chá de jasmim feito pela querida Jenny, sobre a qual falarei em outro post; Bruno Tausz ia levar o Ivan em casa, em seu fusca; e em sua volta, mais chá, mais conversas sobre arte; os livros de arte, tesouros comprados na Livraria Leonardo da Vinci, passavam de mão em mão ou eram fotografados em slides e viravam "audio-visuais", nossa janela para o mundo das artes internacionais em uma época pré-internet; a noite era uma criança; eu era vizinho, em meu primeiro apartamento (alugado) no Jardim de Allah, assim não tinha hora para voltar para casa; Ipanema era uma vila e o Rio uma cidade sem problemas de segurança, onde se podia tomar chopp em pé em um boteco, ao lado de Leila Diniz.

Naquela aula, o exercício trazido pelo Ivan era: "vamos todos pintar em jornal". E devíamos recolher jornais, pintar sobre eles, recobrindo as palavras, ou deixando parte delas, aproveitando as imagens ou ocultando-as, páginas simples ou páginas duplas, temas livres, usando os temas dos jornais ou criando novos temas, novas relações, novas cores. Um exercício de composição, depois entendi, e parente direto dos "flans" do Antonio Manuel (que tantos trabalhos fez em conjunto com o Ivan). Na época, o objetivo do exercício passou meio despercebido da maioria, acho eu. (Emil Forman pintou sobre jornais à moda dele, interferindo sutilmente com cores pálidas de aquarela e lápis de cor nas reportagens e fotos de jornais populares); eu tentei umas coisas conceituais como o que eu fazia na época, aproveitando textos e imagens levemente politizadas (era o império dos anos de chumbo); outros foram para as apropriações expressionistas... enfim.
Mas durante uns meses todos nós "pintavamos em jornal" (o diálogo era comum entre nós: "o que você tem feito?" - "ah, tenho pintado muito em jornal"). Nas aulas, cada um de nós levava dezenas de jornais pintados, e mostrava para o Ivan e para o restante da turma, um a um, como se estivesse mostrando obras primas, e ouvia os comentários, às vezes ácidos, mas sempre pertinentes.

Um dos alunos (para nós, jovens à época, era "um senhor" - devia ter talvez menos que a minha idade hoje) se empolgou muito com os trabalhos dos jovens artistas; ele tinha uma loja no centro da cidade, no Saara, acho que alguma coisa de móveis e decorações, e a cada semana levava as dezenas de jornais pintados para expor e vender (a um preço bem acessível) em sua loja. Eu realmente não me lembro se alguém comprou algum dos jornais pintados e assinados como obra por jovens artistas então desconhecidos; de repente alguém tem, sem saber, no quarto de despejo, uma "técnica mista", assinada, datada, que poderá alcançar um preço até razoável em um leilão.
Depois de alguns meses, quando a febre do "pintar em jornal" estava no auge, em outra aula da noite, Ivan falou: "agora chega de pintar em jornal..." e lançou outro exercício...
Para mim, até hoje, abril ("the crudest month" para T.S.Eliot)
tem duas datas que fazem lembrar Ivan: hoje, dia 6 de abril, ele, nascido em 1923, faria 86 anos; e no dia 19 de abril estaremos a 36 longos anos daquele quente abril de 1973 quando ele se foi, vítima da fragilidade física do seu coração tão generoso, deixando todos nós meio órfãos.

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